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SP: Polícia mata mais jovens na capital que homicídio e latrocínio somados

Wagner Souza/Futura Press/Estadão Conteúdo
Imagem: Wagner Souza/Futura Press/Estadão Conteúdo

Douglas Porto e Luís Adorno

Do UOL, em São Paulo

23/03/2021 02h00

Para adolescentes e jovens adultos que vivem em São Paulo, as ruas da capital tendem a ser mais perigosas. Dependendo do bairro e da cor de pele, o risco aumenta.

De acordo com relatório apresentado hoje pelo Comitê Paulista pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), entre 2015 e 2020, morreram 504 jovens até 19 anos vítimas de homicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais seguidas de morte.

No mesmo período e na mesma faixa etária, que inclui crianças e adolescentes, a capital paulista acumulou 581 óbitos cujo autores foram policiais militares e civis. Ou seja, em cinco anos, a polícia de São Paulo matou mais jovens do que somados todos os outros tipos de mortes violentas.

"Temos mais ocorrências na capital porque é onde fica concentrada a presença da própria Policia Militar e dos batalhões, principalmente da Rota (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar), que é o mais violento da PM", diz Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos da infância e juventude e membro do Grupo Tortura Nunca Mais.

"Outra questão é a necessidade de levarmos em conta as mortes cometidas por polícias fora de serviço, trabalhando como seguranças em supermercados ou em agências bancárias."

O relatório foi presidido pela deputada estadual Marina Helou (Rede), que vê refletido o racismo estrutural da sociedade. "A chave para que a gente saia dessa situação é a prevenção, com educação e saúde. É inaceitável que a gente esteja assassinando o nosso futuro", diz.

Foco da polícia nos jovens

Guilherme Silva Guedes é parte dessa estatística. Foi assassinado a tiros em uma mata na zona sul de São Paulo, em junho do ano passado. De acordo com a Polícia Civil, foi morto por um sargento da PM (Polícia Militar) e por um ex-policial militar condenado por uma chacina anterior.

O jovem morava com a avó materna, Antonina Arcanja da Silva, que relembra dele com carinho. Diz que era um jovem brincalhão, que gostava de estar com a cachorra da família, Charlotte, e ouvir funk.

De acordo com Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nesse período, foram 3.165 assassinatos na faixa de 0 a 19 anos no estado de São Paulo.

Desse total, 4 a cada 10 mortes violentas de crianças e adolescentes são de autoria da polícia. Os dados mostram que tem uma enorme concentração de ações policiais contra os jovens, mostrando que há seletividade na ação da polícia. A polícia está focando nos adolescentes.
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Esse dado pode ser maior. "Cerca de 23% das mortes causadas pela polícia não têm informação de idade. Ou seja, não sabemos quantos são adolescentes. Quando 23% dos BOs nem sequer trazem a idade das vítimas, tem algo estranho", afirma.

O comitê é uma iniciativa da Alesp com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e o governo do estado. Foi criado em 2018 com o objetivo de reduzir o número dessas mortes violentas.

4 a cada 10 mortes pela polícia

Segundo o relatório, entre 2015 e 2020, foram mortas 21.335 vítimas de homicídio, latrocínio e lesão corporal. Desse total, 18.758 tinham a idade informada, sendo distribuídos em:

  • De 0 a 19 anos: 1.912 mortos - 9% do total
  • De 20 a 29 anos: 5.192 - 24% do total
  • 30 anos ou mais: 11.654 - 55% do total
  • Sem idade: 2.577 - 12% do total

Ainda foram 5.123 mortes por intervenção policial, dos quais 3.982 tinham informação de idade:

  • De 0 a 19 anos: 1.253 mortos - 24% do total
  • De 20 a 29 anos: 1.716 mortos - 33% do total
  • 30 anos ou mais: 1.013 mortos - 20% do total
  • Sem idade: 1.171 mortos - 23% do total

Se separado por 100 mil habitantes, a cada 10 mortes na faixa etária entre 15 e 19 anos, 4 são de autoria da polícia em 2020.

"É estarrecedor. Os policiais que deveriam ser os protetores, os defensores, os garantidores, acabam sendo os principais algozes. Geralmente dizem que são confrontos, mas não confrontos. A maioria desses casos são de execuções sumárias", diz o advogado Ariel de Castro Alves.

O que mais aponta o relatório

  • A partir dos 15 anos, negros são 62% dos mortos, embora sejam 42% da população dessa faixa etária;
  • De 0 a 14 anos, negros são 52% das vítimas de homicídio, latrocínio e lesão corporal. Já dos 15 aos 19 anos passam a ser 88%;
  • Entre as meninas de 15 a 19 anos, 43% eram não negras e outras 57% eram negras;
  • Entre os meninos de até 14 anos, 77% das vítimas eram negros e outros 23% eram não negros;
  • Na faixa etária de 15 a 19 anos, 68% das vítimas eram negras e outras 32% eram não negras;
  • Entre 15 e 19 anos, a cada 10 mortes por latrocínio por 100 mil habitantes, 8 são negros;
  • Por intervenção policial, 5 a cada 10 vitimados são negros.

"Além de um reflexo da atuação policial frente à população negra, os números revelam a extrema vulnerabilidade a que nossos jovens negros estão sujeitos. Muitas vezes presos ou mortos em situações questionáveis, nas quais dificilmente algum agente de segurança pública será responsabilizado posteriormente", diz Caroline Ramos, advogada e consultora voluntária da Educafro.

O que diz o governo?

Por meio de nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que "o compromisso das forças policiais de São Paulo é com a proteção da vida e a segurança da população". Disse, também, que "em 2020, mesmo com os desafios impostos pela pandemia, o trabalho conjunto das polícias paulistas permitiu a redução da maioria dos indicadores criminais no estado e na capital".

Na verdade, os dados criminais do estado fecharam 2020 com alta no número de vítimas de homicídios dolosos (com intenção de matar), fortalecimento da organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) no estado, de acordo com investigações da Polícia Civil e denúncias do MP (Ministério Público), além de crescente nos roubos a banco.

Ainda de acordo com a SSP, "as ocorrências de morte por intervenção policial envolvendo crianças e adolescentes caíram quase pela metade entre 2015 e 2020 no estado de São Paulo. A redução foi de 49%".

"Paralelamente, o estado também reduziu taxas de mortalidade para grupo de 100 mil habitantes para os grupos de crianças de 0 a 14 anos e 15 a 19 anos, 0,02 e 4,28, respectivamente. Ambas são menores do que a atual taxa estadual de homicídios dolosos por 100 mil habitantes, que é de 6,49/100 mil habitantes", acrescentou a pasta.

A secretaria afirmou, também, que "a busca pela excelência na prestação do serviço policial é permanente, assim como a redução do número de mortes em confronto. O número de ocorrências desta natureza vem caindo de maneira consistente ao longo dos últimos oito meses, o que permitiu uma redução de 6,1% na comparação entre os anos de 2020 ante 2019".

"O confronto não é opção dos policiais, que ao chegarem às ocorrências, são confrontados por criminosos armados e que investem contra eles. A polícia paulista trabalha para prender e levar à Justiça aqueles que infringem a lei", afirmou a SSP.

Em 2020, 197 policiais civis, militares e técnico-científicos foram demitidos ou expulsos. Ou seja, em média, um policial foi retirado do quadro de funcionários a cada quase dois dias.