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Condenação inédita por racismo e injúria traz novo olhar para crime racial

Ato pró-democracia em São Paulo - TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Ato pró-democracia em São Paulo Imagem: TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Djalma Campos

Colaboração para o UOL, em São Paulo

28/03/2021 04h00Atualizada em 29/03/2021 12h41

A condenação de Gustavo Metropolo, ex-aluno da FGV (Fundação Getúlio Vargas), pelos crimes de injúria racial e racismo, além de inédita na Justiça brasileira, pode se tornar uma referência para outros casos que envolvam questões raciais no país, segundo especialistas ouvidos pelo UOL.

Metropolo foi condenado por chamar de escravo o estudante de administração pública João Gilberto Lima. Em setembro de 2017, ele enviou a um grupo de WhatsApp uma foto do estudante acompanhado da frase: "Achei esse escravo aqui no fumódromo! Quem for o dono avisa!".

Professora de direito da PUC-SP, a advogada Lucineia dos Santos diz que a condenação do estudante por crime de racismo é uma decisão rara desde a promulgação da Lei há 32 anos, ainda durante o governo de José Sarney (1985/1989).

Em seu texto, a lei prevê punição para "crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional" e "pena de reclusão de dois a cinco anos".

"No Brasil, é [um resultado] raríssimo. Aliás, é uma decisão inédita desde a vigência da Lei 7716/1989", afirma Santos, que pesquisa sobre direitos humanos e faz a declaração com enfoque na dupla condenação.

A causa, afirma, é polícia e Justiça terem dificuldade de classificar casos com fundo racial. Exemplo disso, acrescente, é a morte por asfixia de João Alberto Silveira Freitas, no Carrefour de Porto Alegre (RS), em novembro passado. "Este caso não foi acolhido na delegacia como crime de racismo."

Ninguém vai agredir uma pessoa negra fazendo referência de discriminação racial durante tais agressões. Muitas vezes, quando claramente está configurado o racismo, é aplicada a injúria racial, cuja pena além de ser inferior ao crime de racismo ainda admite fiança
Lucineia dos Santos professora de Direito da PUC-SP

Antes de atender a reportagem do UOL por telefone, a advogada Priscila dos Santos, presidente da comissão de política criminal e penitenciária da OAB/SP, ingressava em uma delegacia para registrar o caso de uma professora que teve memes racistas com sua imagem disparados por um aluno no WhatsApp. Para ela, a sentença ao ex-aluno da FGV é atípica.

É simbólico e muito triste que tenhamos que esperar tanto tempo pra responsabilizar pessoas por esta prática. O racismo mata, prende pessoas e nós não responsabilizamos os culpados por este crime abjeto. Sempre passamos a mensagem de que não é algo tão grave assim, e de que se trata de uma ofensa contra a honra de uma pessoa"
Priscila dos Santos, presidente da comissão de política criminal e penitenciária da OAB/SP

Advogada diz ver condenação como um "respiro de esperança". "Começamos a entender o que o racismo faz com a sociedade", afirmou Priscila.

Foto e mensagem de whatsapp com mensagem racista enviada em grupo de estudantes da FGV chama estudante de escravo - Reprodução - Reprodução
Foto e mensagem de whatsapp com mensagem racista enviada em grupo de estudantes da FGV chama estudante de escravo
Imagem: Reprodução

Neste caso, a juíza Paloma de Assis Carvalho, da 14ª Vara Criminal de São Paulo, acolheu a tese do Ministério Público de que Metropolo cometeu, ao mesmo tempo, os crimes de racismo e de injúria racial porque a ofensa foi disparada pela internet. O primeiro, porque sua mensagem atinge a comunidade negra em geral. O segundo, por ser direcionada à honra de João Gilberto.

Ele foi condenado a 2 anos e 4 meses de prisão, em regime aberto. A pena foi substituída por prestação de serviços à comunidade e pagamento de cinco salários mínimos à vitima.

Interrogado no início de março, o ex-aluno negou a autoria da foto que chegou ao grupo. De acordo com a FGV, porém, ele admitiu ser autor das mensagens uma Comissão de Conduta da Fundação Getúlio Vargas em 2018. Ele se desligou da instituição de ensino e hoje estuda em outra universidade. A reportagem do UOL entrou em contato com a defesa de Metropolo, mas não recebeu resposta.

Para Daniel Bento Teixeira, advogado de João Gilberto e coordenador do programa de Litigância Estratégica do Ceert (Centro de Estudo das Relações de Trabalho e Desigualdade), o caso é emblemático e deve servir de base entendimento para outros casos que envolvam crimes raciais.

"Conseguimos criar um precedente de condenação por dois crimes raciais: racismo e injúria racial. Se é raro ter uma condenação, neste caso temos duas. Isso é fundamental para uma mudança na cultura jurídica, reconhecendo a gravidade de crimes raciais. E, particularmente, sobre a questão da internet, ambiente onde proliferam casos deste tipo hoje em dia".

A professora da PUC-SP concorda que essa sentença pode guiar decisões de outros atos racistas. Mas ela é cética quanto a uma mudança brusca de panorama.

"Este caso pode ser referência para outros julgamentos semelhantes, mas não deve virar norma no Judiciário. É preciso mencionar também sobre a necessidade do ingresso de um maior número de negros enquanto magistrados. Este é um fator de suma importância no combate ao racismo."

Para João Gilberto, que faz terapia desde 2018, a decisão é uma conquista. "A combinação racismo e injúria é muito significativa. É muito relevante", disse.

Outro evento a ser comemorado pelo estudante está prestes a ocorrer. Neste semestre, ele concluirá o curso de administração pública na FGV.

Nunca tive dúvidas sobre a necessidade de denunciar o crime. A gente vive um racismo velado. Por isso, espero que este caso, de forma geral, sirva de exemplo e estímulo para as pessoas denunciarem novas situações de racismo e também do ponto de vista jurídico, que passem a olhar tudo de uma forma diferente
João Gilberto Lima, estudante de administração pública