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Médica cria 'prontuário afetivo' e descreve gostos de pacientes com covid

Médica Isadora Jochims viu iniciativa como maneira de humanizar atendimento de pacientes que esperam UTI Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Bruna Barbosa

Colaboração para o UOL

01/04/2021 20h02Atualizada em 01/04/2021 20h02

A médica reumatologista Isadora Jochims, de 35 anos, começou a trabalhar nos leitos de covid-19 apenas no último final de semana, mas em pouco tempo já foi uma das responsáveis por inovar no atendimento do Hospital Universitário de Brasília (HUB), no Distrito Federal.

Para criar uma abordagem mais pessoal com os pacientes, a profissional criou o chamado "prontuário afetivo", que em vez de listar atualizações de saúde dos internados, enumera alguns pontos de sua personalidade, como músicas e esportes favoritos.

Nos leitos de pacientes que estão sedados aguardando por UTIs, a médica começou a fixar folhas de papel sobre o que cada pessoa mais gostava, baseado em relatos da família. Em um deles escreveu: "Gosta de barulho de água, Raul Seixas e música sertaneja raiz".

De acordo com ela, foi o suficiente para mudar o ambiente da enfermaria, além de criar vínculo entre paciente e profissional de saúde.

"Estava passando, fazendo o boletim diário com a família e no final me veio isso de perguntar algum afeto do paciente. Falei: 'se reduzisse a sedação e a pessoa despertasse, o que você acha que ele gostaria de ouvir?' Do outro lado ouvi uma risada gostosa, porque é algo inesperado", lembrou Isadora.

Na primeira ligação, a médica ouviu que o paciente ficaria muito feliz de ouvir que o Palmeiras havia se consagrado campeão quando acordasse. No decorrer do dia, conheceu um pouco mais sobre cada um daqueles que estavam impossibilitados de contar a própria história.

Isadora inseriu as informações em um prontuário virtual, acessado pelos médicos, causando estranheza na equipe. Depois, reunindo folhas de papel e o pincel atômico de uma colega enfermeira, fixou as informações em cada um dos leitos.

"Passou um tempo, já estavam tocando Raul Seixas, as pessoas estavam rindo, brincando sobre a questão do futebol, conversando entre eles e com os pacientes. Quando colocamos moda de viola para o paciente, que estava com sedação mais leve, vimos que a frequência cardíaca subiu um pouco, teve algumas reações. A equipe comemorou, sorriu. Mudou o ambiente", contou.

Arte relacional como cura

Ao UOL, Isadora explicou que a proposta da ideia, parte da chamada arte relacional, é levar o ateliê para o ambiente cotidiano, que no caso dela foi a enfermaria de covid-19 do Hospital Universitário de Brasília.

"Você não tem o objeto de arte em si, você tem a proposição artística que provoca uma mudança nas relações do indivíduo naquele ambiente com coisas que tem ali naquele momento", disse.

Para a médica, o afeto traz melhorias na assistência médica. E ela comemora que tenha dado exemplo para outras pessoas, com uma colega enfermeira replicando o prontuário afetivo na unidade de saúde em que trabalha.

Isadora explicou que, para os profissionais da área, receber as informações afetivas sobre cada paciente mostra que não estão tratando apenas de "um corpo", humanizando o atendimento.

"Quando um paciente pode conversar, você sabe a história dele, ele te conta. Mas quando ele está sedado, não. Algo que também me chama muita atenção é a reação da família. Por conta do isolamento, ficam sem informação [da pessoa], sem contato. Quando fazemos uma pergunta dessas, de uma informação afetiva, sentem um cuidado maior", avaliou.

A médica conta que uma das pacientes sedadas gostava das "unhas feitas". A informação fez com que uma técnica de enfermagem reparasse que ela estava com esmalte desgastado. A profissional então pegou um pouco de acetona e limpou as unhas da mulher.

"São cuidados que vão além da rotina diária por conta dessa mudança no vínculo com o paciente", apontou.

Apesar de ter colocado a intervenção artística em prática, Isadora contou ter tido receio de aplicar o prontuário afetivo, já que uma das formas de proteção dos profissionais acaba sendo se afastar do paciente.

"Se o paciente vai a óbito você tem o sofrimento. Mas o vínculo melhora a assistência. E o que ouvi de relato foi que dá um ânimo a mais no cuidado, um gás. É questão de humanizar", disse.

Na unidade em que a médica trabalha, são 40 leitos de enfermaria, com cerca de quatro pacientes em estado grave aguardando por UTI. Estes permanecem sedados.

Narrativa de guerra

Isadora contou que uma das motivações em praticar as intervenções dentro do hospital foi o fato de estar cansada das afirmações de que estamos vivendo "uma guerra".

Para a médica, com esse tipo de narrativa, certos pontos acabam não sendo humanizados como deveriam. De acordo com ela, os profissionais da saúde não estão em uma guerra, mas sim cuidando de vidas em uma pandemia.

"É o mesmo quando falam que somos heróis. Não somos, não somos soldados, não temos super poderes, temos vida, família, precisamos de condições de trabalho e também estamos sofrendo. Então, quando falo isso que não estamos em uma guerra, é porque não somos movidos a ódio. Somos movidos a amor. Tento buscar essa humanização até mesmo na narrativa da pandemia", pontuou.

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