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Meritocrata x antirracista: direita e esquerda disputam legado de Luiz Gama

Especial Monumentos -  Busto do jornalista e abolicionista Luiz Gama, no Largo do Arouche - Keiny Andrade/UOL
Especial Monumentos - Busto do jornalista e abolicionista Luiz Gama, no Largo do Arouche Imagem: Keiny Andrade/UOL

Guilherme Henrique

Colaboração para o UOL, de São Paulo

01/08/2021 04h00

Prestes a ganhar as telas do cinema e recém-nomeado doutor honoris causa pela USP (Universidade de São Paulo), que não o aceitou em vida, o jornalista e advogado Luiz Gama (1830-1882) tem seu legado de figura central na luta abolicionista disputado tanto pela direita quanto pela esquerda.

De um lado do campo político, ele é pintado como um símbolo da meritocracia e surge como alternativa a Zumbi dos Palmares por supostamente se afastar do marxismo. Do outro lado, ele é tido como defensor dos direitos humanos.

Luiz Gama x Borba Gato

Nascido em Salvador (BA) e vendido como escravo aos dez anos por seu pai a um contrabandista de escravos, que o levou a São Paulo, Gama completou sua alfabetização aos 17 anos. No ano seguinte, fugiu. Depois disso, foi assistente de Furtado Mendonça, chefe de polícia e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Foi impedido pela legislação da época de estudar na instituição, mas aprendeu sobre leis participando das aulas como ouvinte.

Apesar de conquistar a liberdade de mais de 500 escravizados nos tribunais, Gama só foi reconhecido como advogado 133 anos após sua morte. Quando morreu, a comoção foi tamanha que, segundo estudiosos, o cortejo tinha 40 mil pessoas, cerca de 10% da população da capital na época.

Gama foi a primeira pessoa negra a ter uma estátua em sua memória em São Paulo, em 1931. Hoje, o busto do advogado é só um dos cinco a retratar pretos e pardos na cidade, que abriga 367 monumentos, segundo o Instituto Pólis. Um deles, a do bandeirante Borba Gato, foi incendiado na semana passada, o que estimulou o debate sobre a manutenção de homenagens a figuras históricas ligadas à escravidão e ao extermínio de indígenas.

Gama de direita: autodidata que venceu na vida

Para o vereador paulistano Fernando Holiday (Novo-SP), Gama é alguém que construiu a própria trajetória e é menos inflamatória que outros ícones negros.

Ele venceu na vida para se tornar advogado autodidata, o que demonstra também um sentido de meritocracia. Ele se utilizou das leis da época para libertar centenas de escravos, em um período no qual o racismo era institucionalizado. Em relação às outras personalidades que a esquerda usa como figuras históricas do movimento negro, Luiz Gama não é uma figura revolucionária no sentido marxista da palavra
Fernando Holiday

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Fernando Holiday, vereador de São Paulo (NOVO-SP)
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Já Sérgio Camargo, que imprimiu uma gestão de ruptura com o movimento negro na presidência da Fundação Cultural Palmares, Gama é "exemplo dignificante para negros e brasileiros em geral". "É a antítese do que a esquerda vitimista defende para os negros", escreveu em sua conta no Twitter em maio do ano passado.

Outro que endossa esse pensamento é Paulo Cruz, professor de filosofia, influencer digital e figura de destaque em círculos da direita. "Gama era filiado ao Partido Liberal e pregava a liberdade sem insurreição. A frase 'O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa' é tomada pelos liberais como um direito à propriedade privada [o corpo]", explicou.

Gama de esquerda: enfrentou racismo estrutural

Autor da Lei 13.629/2018, que declara Gama patrono da abolição da escravidão do Brasil, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-BA), diverge deste pensamento. Para ele, o abolicionista é exemplo de combate às elites conservadoras de seu tempo.

A direita reivindica Luiz Gama de forma oportunista, porque sabe que ele é uma inspiração para os dias atuais. Mas isso dá a dimensão de seu tamanho para a história brasileira, ninguém pode se contrapor a seu legado
Orlando Silva

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Orlando Silva, deputado federal
Imagem: Najara Araújo/Câmara dos Deputados

Outro admirador de Gama é o professor Dennis Oliveira, da ECA-USP (Escola de Comunicação de Artes da Universidade de São Paulo), responsável pelo pedido feito ao conselho da instituição para dar a ele o título de doutor Honoris Causa. Em junho, ele foi o primeiro negro brasileiro a receber a honraria na universidade. O docente diz que figuras da direita querem aproveitar a ascensão do ícone do abolicionismo para emplacar uma versão distorcida da história.

"Como ele está aparecendo mais, recebendo prêmios e homenagens, querem colocar em sua história algo que não é verdade. Todas as batalhas que o Luiz Gama enfrentou, inclusive o seu apagamento histórico, foram frutos do racismo estrutural, algo que só mudou por ações dos movimentos negros", diz.

Contraposição a Zumbi

Personalidades da direita ainda contrapõem Gama a Zumbi dos Palmares (1655-1695), porque o líder do Quilombo dos Palmares é enaltecido pelo movimento negro como símbolo de resistência à escravidão.

Em 2011, essa reverência foi parar no calendário nacional. Naquele ano, a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) sancionou uma lei que instituiu o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, data da morte de Zumbi. A ideia é opor o 13 de maio, quando se comemora a assinatura da Lei Áurea. A crítica é que a tinta da caneta da princesa Isabel, uma mulher branca, escondeu o sangue da luta de muitos abolicionistas negros.

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Busto do jornalista e abolicionista Luiz Gama foi a primeira estátua a retratar uma pessoa negra que a cidade de São Paulo teve, em 1931
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Curiosamente, o presidente da Fundação Palmares é um dos mais ferrenhos detratores do líder da comunidade que dá nome à instituição. "Zumbi é herói da militância vitimista e rancorosa. Escravizava negros. Heróis verdadeiros são André Rebouças e Luiz Gama", disse Camargo, em maio deste ano.

Em discurso no plenário da Câmara dos Deputados, o deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ), fiel escudeiro do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), já louvou a princesa Isabel e Luiz Gama, mas nada de Zumbi.

A exaltação à figura de Gama é também uma resposta ao protagonismo que a esquerda dá a Zumbi. Tentaram criar um mito em cima dele
Fernando Holiday

Paulo Cruz adota uma postura cautelosa. "Ele foi o que foi: um homem de seu tempo, que lutou pelo que acreditava. Não dá para atribuir ideias abolicionistas a ele nem acusá-lo de escravagista", diz.

Para o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em história e teoria do direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha, opor Zumbi e Gama é um erro, uma vez que os registros históricos mostram que a luta pela abolição foi feita por muitas pessoas. "A oposição entre Gama e Zumbi não se sustenta. É como se Zumbi fosse o guerreiro, e a guerra travada pelo Luiz Gama tenha sido branda, suave, o que é um tremendo equívoco", completa.

Resgate histórico

A atuação de Gama tem sido resgatada por meio do estudo de documentos históricos. Lima, por exemplo, descobriu registros que mostram como o advogado, ainda em início de carreira, obteve nos tribunais a liberdade para 217 negros escravizados em 1869. O pesquisador reuniu cerca de 5.000 páginas que dão conta da produção literária de Gama e, nos próximos meses, serão publicados pela editora Hedra.

O historiador observa que dificilmente Gama se veria como fruto da meritocracia, pois ele fez parte de comunidades negras das cidades paulistas de Santos, Jundiaí, Campinas e São Paulo e teve ajuda de pessoas decisivas para alcançar os postos que ocupou. "Essa trajetória mostra uma rede de auxílio, com favores e solidariedade, o que desmistifica a ideia da direita de que ele venceu só por mérito próprio", diz.

Lígia Ferreira, professora do Departamento de Letras da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), também tem resgatado a obra do advogado e jornalista. Ela é cética sobre a aderência de Gama a pautas da direita.

"Estudo a obra de Luiz Gama há mais de 20 anos e ele sempre manteve valores republicanos, algo que é inquestionável e que a direita nem sempre apoiou, por exemplo", diz a autora de "Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro" (Edições Sesc São Paulo).

Para além das pesquisas de Ferreira, Lima e outras ações acadêmicas, Gama estará em agosto nas telas de cinema em um filme dirigido por Jefferson De ("M-8 - Quando a Morte Socorre a Vida").

Como seria Gama hoje?

Direita e esquerda não disputam apenas o passado de Gama mas também o que ele defenderia se estivesse vivo. Para o deputado Orlando Silva, ele "estaria nas trincheiras da democracia e de combate ao bolsonarismo".

Já Holiday acredita que o abolicionista engrossaria movimentos liberais. "Ele defendia as liberdades individuais, algo que a direita liberal preconiza. Acredito que ele poderia estar, sim, vinculado a esse campo, e defendendo a meritocracia", diz.

Para Paulo Cruz, "a tendência ao individualismo exacerbado na direita liberal atual" faria com que Gama se juntasse ao grupo. O pesquisador do Max Planck Institute afirma que talvez essa seja a visão mais próxima, já que Gama criticava a desigualdade em seus textos e artigos. "Ele aplaudia a luta camponesa e sem-terra e até contribuía para os anarquistas italianos em São Paulo", diz.