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Dois anos de seca põem em xeque bacia dos rio Paraná e Prata

Trecho quase seco do rio Paraná na cidade de Rosario, na Argentina, em julho de 2021 - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas
Trecho quase seco do rio Paraná na cidade de Rosario, na Argentina, em julho de 2021 Imagem: Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas

Rodolfo Chisleanschi

Do Mongabay

11/09/2021 04h00

Desde 2019, as águas da bacia dos rios Paraná-Prata vivem um ciclo de declínio que já é o mais longo da história.

As variações climáticas e as atividades humanas —desmatamento, atividade agropecuária, infraestruturas e dragagem— explicam a situação. Ninguém calcula as consequências em longo prazo.

Não chove. E, quando chove, é com tal timidez que não chega para compensar uma espera que começou em junho de 2019 e, dois anos depois, se transformou em uma enorme preocupação.

A bacia dos rios Paraná-Prata sofre desde então uma seca com efeitos que ficam evidentes à primeira vista e consequências que ninguém se atreve a predizer.

O Paraná, eixo central de uma bacia fluvial que cobre quase 3 milhões de quilômetros quadrados, se encontra em uma situação que assusta os que vivem em suas margens e alarma os cientistas.

De uma ponta a outra de seu curso —3.940 quilômetros, das serras no Sudeste do Brasil até próximo da cidade de Buenos Aires, capital da Argentina, depois de banhar terras do Paraguai—, o nível das águas mostra um declínio raramente visto antes.

"Quanto ao tempo de duração, é a vazante mais importante já registrada", indica Gustavo D'Alessandro, presidente do Conselho Hídrico Federal argentino. "A de 1944 foi a mais marcante, porque chegou a -0,80 metro no porto de Barranqueras, no Chaco [Argentina], mas, se a situação continuar assim, em outubro poderemos superá-la e chegar a -1,35 metro", diz.

Braço - JUAN MABROMATA/AFP - JUAN MABROMATA/AFP
Imagem aérea registrada em 19 de agosto de 2021 mostra braço do rio Paraná quase seco próximo a Itati, Corrientes (Argentina)
Imagem: JUAN MABROMATA/AFP

Com uma vazão média de 16 mil metros cúbicos por segundo em tempos normais (atualmente não supera 7.000), a dinâmica do Paraná possui uma variabilidade natural que provoca ciclos de secas e inundações que podem ser anuais, mas também abranger décadas inteiras.

Em traços gerais, considera-se que a primeira metade do século 20 foi um período de chuvas escassas, ao contrário do que ocorreu na segunda metade. A grande diferença é que as condições mudaram de forma tão radical nos últimos cem anos que é muito possível que a capacidade de recuperação do rio também seja outra.

Embora não exista um consenso sobre a origem da situação atual, os cientistas concordam em alertar que o futuro será sombrio se não forem modificados comportamentos fundamentais relacionados ao tratamento do rio e das terras de toda a bacia.

Efeito do La Niña e das atividades humanas

Juan Burós é engenheiro civil e subgerente da área de Sistemas de Informação e Alerta Hidrológico do Instituto Nacional da Água (INA) da Argentina.

Há 38 anos, ele percorre e conhece cada trecho do rio: "Em 1944, a vulnerabilidade era menor, porque ao redor do Paraná vivia muito menos gente. Desde então até hoje, houve mudanças notórias".

Atualmente a economia argentina depende do Paraná muito mais do que há 78 anos. A ampliação da fronteira agrícola foi pronunciada, e essa mudança do uso do solo potencializa os extremos de vazantes e cheias.
Juan Burós, engenheiro civil e gerente do INA

As causas que provocam a situação atual são tema de discussão entre a comunidade científica. "São muitas questões de diferentes magnitudes que vão se somando", diz Cecilia Reeves, bióloga integrante da área Humedales para la Vida no Taller Ecologista, organização socioambiental com sede em Rosario, a maior cidade à margem do rio.

"A vazante chega porque há menos chuvas em toda a bacia, do Brasil até o rio da Prata, um fenômeno climatológico derivado do evento La Niña, que começou em agosto de 2020", afirma Reeves.

Ela acrescenta: "Quem estuda a mudança climática diz que isso faz parte dessa mudança; outros afirmam que não. A verdade é que o grau crescente de desflorestamento e os incêndios na Amazônia fazem que a selva transpire menos, e assim não se formam os chamados 'rios voadores' que geram as chuvas. Mas também não podemos traçar uma linha direta de causa e efeito em relação à vazante".

Pilares - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas
A vazante deixou descobertos grossos pilares ao longo do rio; a diferença de cor marca onde fica a linha em épocas normais
Imagem: Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas

Como amostra da discordância, Burós relativiza a importância que pode ter La Niña, fenômeno com epicentro no oceano Pacífico que reduz a umidade do ar e, em consequência, a quantidade de chuvas no continente: "Quando La Niña foi declarada oficialmente, já estávamos com cinco meses de vazante. Em nossa região, esses fenômenos castigam mais quando são intensos. Agora são brandos ou mornos, e as perspectivas futuras indicam neutralidade ou uma Niña suave. Acredito que as causas locais têm mais importância que as globais", afirma.

Por isso, Gustavo D'Alessandro insiste que a mão do homem "sem dúvida agravou a situação". O Paraná é há muitos anos uma calha fragmentada pelas represas (só em território brasileiro são 20), a intervenção humana através de obras de infraestrutura e a dragagem permanente para facilitar o tráfego fluvial.

Para construir a Ponte Rosario-Victoria foi preciso criar aterros e modificar o curso do rio, um tipo de ação que altera a tipologia do sistema e o torna mais vulnerável diante de novas atividades. As planícies aluviais ficam mais expostas e toda a sua estrutura biótica sofre as consequências.
Cecilia Reeves, bióloga

Mesmo que alguns motivos tenham maior incidência que outros, o resultado é uma alteração do clima que não só está provocando a atual redução dos níveis da bacia e pôs em alerta os países envolvidos —a baixa umidade do solo aumenta de forma notável o perigo de incêndios, de Mato Grosso e o Pantanal, no Brasil e Paraguai, até o Delta argentino—, como prenuncia mais complicações no futuro.

A variabilidade climática está muito potencializada em relação a décadas passadas e podemos esperar mudanças cada vez mais bruscas. Temos que nos acostumar e estar preparados para enfrentar os dois extremos, porque vão nos ameaçar de forma permanente.
Juan Burós, engenheiro civil e gerente do INA

Montar possíveis cenários climáticos e hidrológicos é a tarefa diária de Inés Camilloni, doutora em ciências da atmosfera pela Universidade de Buenos Aires.

Suas pesquisas permitem que ela confirme o diagnóstico sobre a radicalização do clima, embora com um acréscimo interessante: "Se os fluxos mínimos tenderão a ser menores e os máximos, maiores, a estimativa indica que a intensidade das vazantes poderá aumentar de 10% a 15%, enquanto a das cheias aumentará só 5%", explica em sua análise.

E se não chover?

Guillermo Lanfranco é gerente de comunicação da Aguas Santafesinas, empresa encarregada de tornar potável a água extraída do Paraná e alguns de seus afluentes, e conhece uma das consequências mais notáveis que podem sofrer os moradores ribeirinhos se esse declínio se acentuar.

"Hoje as bombas de sucção trabalham forçadas, com muita pressão mecânica para manter a oferta necessária, mas, se o nível do rio ainda diminuir, é possível que tenhamos que ajustá-la. Nunca havíamos vivido uma situação parecida", diz ele com clareza no documentário "Bajo Río", realizado pela Universidade de Rosario.

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Trecho seco do rio Paraná na cidade de Rosario, na Argentina, em julho de 2021
Imagem: Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas

A energia elétrica apresenta seus próprios problemas. Embora nos últimos dias de julho os responsáveis pela central elétrica de Itaipu, situada na fronteira entre Paraguai e Brasil, garantiram a oferta de energia apesar de o nível do reservatório estar abaixo do limite histórico, ninguém pode afirmar que a situação poderá se modificar dentro de alguns meses se a primavera não trouxer as chuvas tão esperadas.

"As represas da bacia alta estão funcionando a 35% de sua capacidade, e a de Yaciretá [mais ao sul, entre Paraguai e Argentina] em torno de 50%. Se não chover, poderemos ter inconvenientes com o abastecimento de eletricidade", alerta D'Alessandro.

A queda dos níveis da bacia, por outro lado, já está prejudicando a economia: 85% das exportações argentinas saem em grandes barcos dos portos do Paraná inferior, por onde também passam 73% das exportações paraguaias e 20% das bolivianas.

A Bolsa de Comércio de Rosario calcula em US$ 315 milhões as perdas geradas pela situação entre março e agosto deste ano, que se somam aos US$ 240 milhões acumulados em 2020. O motivo é que os navios devem reduzir o volume de carga em seus porões entre 6.000 e 10.000 toneladas para evitar encalhes.

Os pescadores artesanais também estão entre as "vítimas". As autoridades impuseram períodos de defeso (paradas da pesca) que em alguns lugares já são totais e complicam a subsistência das famílias cujas rendas se baseiam nessa atividade.

Barco parado  - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas - Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas
Barco parado sobre o leito seco do Paraná Viejo, braço que corre em paralelo ao leito principal do Paraná na província argentina de Entre Ríos
Imagem: Asociación Argentina de Abogados Ambientalistas

As coisas até pioraram à medida que se sobe rumo ao norte. "O porto de Barranqueras está sem operar porque as barcaças não podem entrar", informa D'Alessandro.

Por ali chegam os hidrocarbonetos que abastecem quatro províncias do nordeste argentino, que agora devem ser transportados em caminhões, o que encarece o transporte, diminui a quantidade e aumenta o tempo de viagem.

Peixes afetados e dano ambiental

Entretanto, nada é mais perigoso que o dano ambiental que essa diminuição significativa no nível da bacia está produzindo. Os peixes são os que sofrem o impacto mais direto.

As espécies adaptadas às zonas úmidas têm seu meio alterado e são obrigadas a migrar ou buscar outra forma de vida. Os peixes perdem as áreas de desova e em outros casos os ovos ou alevinos ficam expostos a predadores. No longo prazo, isso reduzirá as populações.
Cecilia Reeves, bióloga

"Desde 2015 não há uma grande inundação que gere o estímulo e o espaço de procriação de peixes que depois mantenha a população até o ciclo de chuvas seguinte. Se a situação atual continuar, o grupo de peixes mais pescado viverá uma situação crítica", acrescenta Andrés Sciara, professor e pesquisador na Universidade de Rosario, no citado documentário "Bajo Río".

O curimbatá (Prochilodus lineatus), a traíra (Hoplias malabaricus), o dourado (Salminus brasiliensis), a piapara (Leporinus obtusidens) ou o pacu (Piaractus mesopotamicus) são espécies que estão em risco e que se tenta proteger em alguns trechos do rio com a proibição da pesca.

Se falta alguma coisa para se aproximar do cenário de catástrofe que alguns cientistas temem que seja irreversível, o governo argentino pretende aumentar o calado (profundidade da parte submersa de uma embarcação) e alargar a hidrovia, o canal navegável do Paraná.

Cavalos - Getty Images - Getty Images
Um grupo de cavalos corre ao longo da margem quase seca do rio Paraná
Imagem: Getty Images

O objetivo é facilitar a entrada de navios com maior capacidade de carga e que possam fazê-lo com mão dupla de circulação. O objetivo maior, é claro, é aumentar as possibilidades de exportação de grãos e outras mercadorias, o que seria também um estímulo para potencializar a expansão da fronteira agropecuária, tanto na Argentina quanto no Paraguai, Bolívia e sul do Brasil.

"Se isso se concretizar, é senso comum que haverá um impacto direto na fauna e nas margens do rio", explica Juan Borús. "Em algum momento a água voltará", diz Reeves, "mas a grande pergunta é o que faremos enquanto isso com o investimento imobiliário, a formação de diques para a exploração agropecuária ou a dragagem da calha".

"Tudo isso é muito importante para a recuperação. A planície aluvial faz parte do rio, e se não cuidarmos haverá problemas. Essa vazante deixa muito clara a interdependência entre as sociedades e os sistemas que habitamos", acrescenta.

As chuvas que costumam ser de 1.800 milímetros por ano na área brasileira diminuíram para menos da metade. O mesmo acontece nas zonas das províncias argentinas de Misiones e Corrientes, acostumadas a receber até 2.400 milímetros.

O Cemaden, Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais do Brasil, diz que não pode prever quando começará ou como será a temporada de chuvas que alimentam o sistema de norte a sul.

As autoridades se limitam a criar remendos para contornar a contingência, sem olhar muito além. Não chove. A água do caudaloso Paraná vai desaparecendo um pouco mais a cada dia, e hoje ninguém pode afirmar que ele voltará a ser o que foi.

* Leia o material original no site do Mongabay.