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Advogados acionam Justiça para mudar destino de indenização do Caso Beto

Homem aparece sendo espancado por seguranças do Carrefour no RS - Reprodução/Twitter
Homem aparece sendo espancado por seguranças do Carrefour no RS Imagem: Reprodução/Twitter

Beatriz Mazzei,

Colaboração para o UOL, de São Paulo (SP)

02/10/2021 04h00

Um coletivo de advogados negros entrou com uma intervenção na Justiça do Rio Grande do Sul nesta quinta-feira (30) para mudar a forma como serão usados os R$ 115 milhões previstos no TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado entre o Carrefour e entidades públicas e ONGs do movimento negro diante da morte de João Alberto de Freitas, homem negro espancado no estacionamento de uma unidade do grupo em Porto Alegre (RS), em novembro do ano passado.

Na intervenção, o Coletivo Cidadania Antirracismo e Direitos Humanos solicita que o valor seja integralmente destinado ao Fundo Estadual do Rio Grande do Sul, cujo mecanismo permite que o dinheiro seja usado em projetos de organizações aprovadas por meio de edital público.

No acordo firmado em junho deste ano, os R$ 115 milhões seriam geridos pelo Carrefour por meio da orientação das organizações não-governamentais Educafro e Centro Santos Dias de Direitos Humanos, que participaram do acordo. Além delas, o TAC foi firmado com o MP-RS (Ministério Público do Rio Grande do Sul), o MPF (Ministério Público Federal), o MPT (Ministério Público do Trabalho), a DPE-RS (Defensoria Pública do Rio Grande do Sul) e a DPU (Defensoria Pública da União).

Até então, o dinheiro está previsto para ser usado, entre outras coisas, no pagamento de bolsas de estudo para pessoas negras e na formação de pessoas negras em cursos de idiomas, inovação e tecnologia.

"Somos desfavoráveis ao que ocorreu no acordo porque houve um TAC e a partir dele o Carrefour já descreveu o que vai fazer com o dinheiro. Não é assim que funciona. Essa não pode ser uma solução privada, mas sim uma solução civil pública"
André Moreira, advogado do Coletivo Cidadania Antirracismo e Direitos Humanos

Segundo André Moreira, advogado do Coletivo Cidadania, um dos pontos mais críticos durante as negociações do TAC com as entidades negras foi a falta de diálogo com as diversas frentes do movimento negro. O advogado ressalta que as Educafro e centro Santos Dias entraram com as ações contra o Carrefour sem que houvesse uma construção coletiva e sem ouvir quais seriam as propostas do movimento negro como um todo.

Para Marlon Reis, advogado da Educafro, o acordo atende aos interesses da comunidade negra. Ao UOL, ele afirmou que espera que as entidades negras ajudem a fiscalizar as cláusulas do acordo. "Queremos que o movimento negro se aprimore cada vez mais nas ações coletivas como forma de impor danos econômicos aos violadores de direitos. Estamos aqui para somar esforços", afirma.

Sobre a destinação do dinheiro, o advogado disse que é comum que acordos em ações coletivas destinem valores para outras finalidades que não o Fundo de Direitos Difusos. Segundo ele, a ação civil pública que originou o TAC é uma ação nacional, portanto, não cabe ao Fundo Estadual gerir o dinheiro. "Como a ação diz respeito a todo o Brasil, os valores acabariam no Fundo Nacional, ligado ao Ministério da Justiça e administrado pelo governo [do presidente Jair] Bolsonaro. Na minha visão, acabaria sendo usado para financiar o racismo", ressalta.

Indenização ou doação?

O Coletivo Cidadania também diverge sobre o mecanismo como o Carrefour irá desembolsar o valor do termo de ajustamento. Segundo Moreira, pela forma como o acordo foi firmado, a rede está isenta da responsabilidade pelo ocorrido e, nesta configuração, o TAC transforma a indenização em uma doação, o que pode favorecer a empresa.

"Como não houve condenação ou reconhecimento de um ato racista, todo o valor que o Carrefour empenha nesse caso pode ser deduzido do imposto de renda. O valor desse abatimento pode ser de até 2% do lucro operacional, o que significa que a rede não estaria de fato pagando, mas sim, fazendo uma doação", explica Moreira.

Segundo ele, com a possibilidade do pagamento vir do imposto de renda, o acordo acaba beneficiando a rede, que pode usufruir dessa quantia para quitar sua dívida civil pública e, ainda, criar uma publicidade em cima do ocorrido.

Nesse caso, o advogado cita como exemplo as propagandas e iniciativas da empresa como o Comitê de Diversidade, criado para "adotar uma política de tolerância zero" ao racismo e toda forma de discriminação. O Comitê conta com a participação de personalidades negras de diversas áreas como a empresária Rachel Maia e o ativista Celso Athayde, que assessoram o Carrefour em tomadas de decisões e posicionamentos.

Outros grupos negros também já questionaram o TAC

Essa não é a primeira vez que uma organização tenta anular ou modificar o TAC firmado com o Carrefour em junho. Recentemente, uma organização quilombola do Rio Grande do Sul tentou anular o termo de ajustamento por meio da Procuradoria do Ministério Público Federal, alegando que organizações de São Paulo não poderiam representar a população negra no RS, onde Beto Freitas morava e foi morto. Na ocasião, o procedimento foi arquivado.

Ao UOL, o advogado Marlon Reis, um dos responsáveis pelo TAC, explicou que foi requerido que a aplicação do recurso firmado fosse orientado para Porto Alegre. "O valor não foi negado à cidade. Há muitas possibilidades que podem ser feitas na área do empreendedorismo e dos quilombos na região", ressalta.

"O nosso acordo não está sendo contestado pelo movimento negro, mas sim por uma parte que entende que deveria se deixar impune do ponto de vista cível essas empresas. Há uma parte do movimento gigantesca que entende que não se deve deixar impune. O TAC representou um novo patamar de jurisprudência, esperamos que haja novos acordos dessa magnitude"
Marlon Reis, advogado