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Boate Kiss: 'Não me sentia dono' da casa noturna, diz sócio

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

09/12/2021 12h23Atualizada em 09/12/2021 19h43

O sócio investidor da boate Kiss, Mauro Hoffmann, disse hoje que "não se sentia dono" da casa noturna, já que Elissandro Spohr era o sócio administrador e tocava o negócio. Ele foi o terceiro dos quatro réus a ser interrogado no julgamento em andamento há nove dias em Porto Alegre.

No dia do incêndio, Hoffmann estava em casa e se preparava para dormir, quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, Spohr avisou o que havia acontecido. O empresário foi às pressas para a boate e relatou que chegou junto com o caminhão do Corpo de Bombeiros.

"A situação era terrível, horrível, muita fumaça saindo. As pessoas, elas trancaram muito nos táxis [no momento de deixar a boate]. Foi uma tragédia. Foi uma sucessão de pequenas coisas, mas o que mais atrapalhou foi os taxistas, [as pessoas] foram caindo por cima dos táxis, quem estava lá por trás não conseguia sair."

Ele permaneceu na frente da boate até por volta das 5h30 e, nesse meio tempo, ouviu que Spohr já havia deixado o local. "Eu não me apresentei como dono de boate. Olha, o Kiko era o Kiko da Kiss, nunca me intitulei dono da Kiss. Eu não me sentia dono, eu era sócio."

Antes dele, foi interrogado o ex-produtor musical da banda Gurizada Fandangueira Luciano Bonilha. Ele pediu que fosse condenado. "Não foi meu ato que causou tragédia, que tirou a vida desses jovens. Mesmo eu sabendo que sou inocente, para tirar as dores dos pais, me condenem", disse Bonilha. Ontem, Elissandro Spohr, um dos sócios da boate, foi ouvido e já havia pedido para ser preso, pois estava "cansado".

Após Hoffmann, deve ser ouvido o vocalista da banda Marcelo de Jesus dos Santos, o último dos quatro réus a ser interrogado. Em seguida, já se iniciam os debates, com falas de acusação e depois das defesas. Isso deve ocorrer ainda hoje, ouvindo ambas as partes, segundo afirmou o juiz Orlando Vaccini Neto.

Investimento em casa noturna foi por "segurança"

Hoffmann também era dono de outra casa noturna, o Absinto, e decidiu investir na Kiss "por segurança", já que houve uma modificação numa lei e havia o risco de sua mais antiga casa noturna ter de deixar o shopping onde operava. Na época, o empresário tinha um rendimento líquido mensal de R$ 50 mil com o Absinto.

Ele contou que procurou os donos de outras duas casas noturnas: a Ballare e a Kiss. Acabou fechando negócio com Elissandro Spohr, pagando R$ 200 mil de entrada e outros R$ 300 mil em seis parcelas de R$ 50 mil. "Ele disse que precisava de R$ 200 mil para colocar as contas em dia. Eu não ia precisar me envolver, trabalhar, não ia ter que contratar banda."

O empresário disse que, por ser sócio administrador, Spohr recebia um pró-labore de R$ 1.000 por semana. Após os acertos, Hoffmann passou a atuar na Kiss em 1º de setembro de 2011. Porém, pouco tempo depois, foi avisado pelo outro sócio do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público, devido às reclamações de poluição sonora provocada pela boate.

"Eu disse para o Kiko [como é conhecido Elissandro Spohr]: 'Como tu não me avisa disso?'. Daí eu falei: 'Tô fora, me devolve meu dinheiro'. E eu até estava pensando em voltar [a negociar] com o Nilvo [José Dornelles, dono da Ballare, que prestou depoimento na terça-feira]. Eu disse: 'Preciso sair fora, não foi isso que nós combinamos'."

Spohr afirmou que já havia utilizado o dinheiro dado por Hoffmann para quitar dívida e pediu para deixar a situação "em stand-by". O empresário aceitou esperar, mas parou de pagar as parcelas até que a situação se resolvesse, o que ocorreu no final de 2011.

"Falaram que iam queimar minha casa"

O empresário disse que tinha uma viagem internacional com a família marcada para a segunda-feira seguinte ao incêndio, mas, apesar das passagens em mãos, acabou não embarcando. Com medo de represálias, pediu para a família deixar Santa Maria.

"Falaram que iriam queimar minha casa. No domingo eu tive que fugir de casa, fiquei desesperado. A primeira coisa que eu pensei foi em fugir com a minha família."

Hoffmann disse que não conseguiu auxiliar financeiramente familiares e sobreviventes porque seus bens foram bloqueados. "Eu não despendi nenhum real, não porque eu não quis, eu tive todos os meus bens bloqueados, minha vida acabou, fechei todos os negócios, cheguei a ter 100 funcionários diretos, 400 indiretos."

"Aqui só temos perdedores. Quem os grandes perdedores são as famílias, mas aqui ninguém ganhou nada com isso, o senhor não ganha nada, ninguém está ganhando nada com isso. Ou acha que é bom para os jurados ter que decidir a vida de quatro pessoas? Quatro pessoas foram embrulhadas pelo sistema."

O julgamento

Quase nove anos após a tragédia, quatro réus são julgados por 242 homicídios simples e por 636 tentativas de assassinato —os números levam em conta, respectivamente, os mortos e feridos no incêndio. Devido ao tempo de duração e estrutura envolvida, o júri é considerado o maior da história do Judiciário gaúcho.

Ontem, foram encerrados os depoimentos com sobreviventes e testemunhas. Pela manhã, Na manhã de hoje, foi ouvido o ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer (MDB) que desqualificou a investigação da Polícia Civil ao dizer que o inquérito era "muito ruim" e que foi feito pela imprensa. As declarações do político provocaram a saída dos familiares que acompanhavam o julgamento —uma delas recebeu atendimento médico.

Após Schirmer, prestaram depoimento Geandro Kleber de Vargas Guedes e Fernando Bergoli. Em seguida, passou a ser ouvido o promotor Ricardo Lozza, que disse que não recomendou o uso da espuma na boate Kiss. E, por último, um dos sócios da boate Kiss Elissandro Spohr.

O empresário disse que, inicialmente, ajudou na retirada das pessoas, mas deixou o local ao receber de uma pessoa que ele considerava sua amiga um tapa na cara. Durante o depoimento, Spohr chorou bastante, pediu às famílias desculpas e solicitou para ser preso.

"Isso não deveria ter acontecido, não deveria ter acontecido, eu sei que não deveria ter acontecido. Por que isso ia acontecer na Kiss? Era uma boate boa, onde todo mundo gostava de trabalhar. Eu virei monstro de um dia para outro. E fui preso. E eu sei que morreu gente, eu estava lá, ninguém me falou, eu estava lá."

Com os interrogatórios de Bonilha e Hoffmann, 31 pessoas já falaram no julgamento.