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Empresa de religiosa com "orgânicos fake" integra lista do trabalho escravo

Líder religiosa mantinha colaboradores em condições análogas à escravidão em Brasília - Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério da Economia
Líder religiosa mantinha colaboradores em condições análogas à escravidão em Brasília Imagem: Secretaria de Inspeção do Trabalho/Ministério da Economia

Diego Junqueira

05/10/2020 17h31

"Jesus está voltando. Mas só vai ganhar o Reino dos Céus quem me seguir". Pregações como estas eram usadas por Ana Vindoura Dias Luz, líder da Igreja Remanescente de Laodiceia, para aliciar dezenas de trabalhadores para sua empresa de alimentos em Brasília. Ao invés de salários, porém, os funcionários eram pagos com a promessa de salvação divina.

A "ajuda de custo" que recebiam informalmente era, em parte, usada para bancar despesas da igreja e da empresa, segundo auditores-fiscais do trabalho que autuaram Dias Luz por submeter 79 trabalhadores a condições análogas à escravidão. Os trabalhadores-fiéis dormiam em locais improvisados, como carrocerias de caminhões, sob tetos de lona e ao lado de agrotóxicos, enquanto a líder religiosa vivia em uma casa confortável e espaçosa.

Dias Luz é uma das novas integrantes da "lista suja" do trabalho escravo, cadastro divulgado semestralmente pelo Ministério da Economia que relaciona os empregadores responsabilizados pela utilização de mão de obra escrava. Além da religiosa, outros dois empregadores entraram na lista: um do ramo da mineração e outro de produção agrícola. Ao todo, os três submeteram 96 trabalhadores à escravidão moderna e se somam a outros 109 empregadores que já integravam o cadastro (veja a relação completa).

O advogado Celso Correa de Oliveira, que defende Dias Luz e a Igreja de Laodiceia negou todas as acusações.

Outro novo integrante da "lista suja" é Antônio Inácio Maciel, dono da empresa A.I. Maciel Mineração, que foi flagrado submetendo 12 trabalhadores a condições análogas às de escravo em uma mina de extração do minério caulim - material usado na fabricação de papel, tintas, borrachas, plásticos, pesticidas, cosméticos e produtos farmacêuticos —, no município de Salgadinho, na Paraíba.

O terceiro grupo de empregadores incluído na "lista suja" são Luis André Schultz, Delfino Schultz e Alvin Schultz Neto, donos da Agroflorestal Schultz, de cultivo da erva-mate, em Bituruna, no Paraná. A fiscalização resgatou cinco trabalhadores que atuavam sem carteira assinada no plantio das mudas, incluindo um jovem com menos de 18 anos.

Pandemia engessa Justiça e diminui ritmo da "lista suja"

A atualização é a primeira desde que o STF (Supremo Tribunal Federal) reafirmou a constitucionalidade da publicação dos nomes de empregadores envolvidos com trabalho escravo. Também é a que apresenta o menor número de novos empregadores — o último cadastro teve 41 novos nomes.

Segundo auditores-fiscais ouvidos pela Repórter Brasil, a redução deve-se ao fato de que o setor de recursos administrativos — em que empresas e empregadores podem questionar a autuação — está fechado desde março, quando começou a pandemia do novo coronavírus. Como o direito à defesa não pode ser exercido neste momento, os nomes vão se acumulando para as próximas atualizações.

A líder religiosa é dona da empresa Folha de Palmeiras Produtos Alimentícios, situada em uma chácara a 40 km da Esplanada dos Ministérios, onde fica também a sede da igreja e uma comunidade com cerca de cem moradores.

A propriedade foi alvo de megaoperação policial em março de 2019, com a participação de auditores-fiscais do trabalho e membros do MPF (Ministério Público Federal), MPT (Ministério Público do Trabalho) e Polícia Civil, além de representantes do governo do Distrito Federal e do conselho tutelar.

Empresa comercializava orgânicos "fake"

Na chácara funcionavam uma horta, uma empresa de produção de alimentos orgânicos (como pães, geleias, pão de queijo e bolos) e uma confecção de roupas.

Os produtos eram vendidos pelos fiéis em diversos estados, assim como os livros da missionária, que pregam a salvação por meio da alimentação saudável. Até mercados de bairros nobres em Brasília compravam os produtos supostamente orgânicos, sem conhecer os agrotóxicos que lhes eram aplicados — auditores encontraram dezenas de envases de pesticidas na propriedade.

Parecia uma empresa como outra qualquer - faturando entre R$ 50 mil e R$ 60 mil por mês, conforme revelou a própria Dias Luz no dia da operação -, mas estava ancorada em uma série de violações trabalhistas. Ninguém tinha a carteira de trabalho assinada e não eram pagos salários nem recolhidos FGTS e INSS, segundo o relatório da fiscalização, ao qual a Repórter Brasil teve acesso.

Eles também eram submetidos a rígidas regras de como se vestir, onde trabalhar e até mesmo quando usar o WhatsApp.

À época da autuação, Dias Luz contou aos fiscais que os fiéis trabalhavam de forma "voluntária" e "autônoma" e recebiam o lucro das vendas, que era dividido igualmente entre todos. Os auditores, porém, não encontraram nenhum comprovante de pagamento. Os trabalhadores não souberam dizer seus ganhos mensais, e confirmaram que os valores recebidos sofriam descontos para custear despesas da igreja e da empresa.

Dias Luz deve R$ 5,4 milhões em direitos trabalhistas

A começar pela própria chácara, que estava sendo comprada pela denominação religiosa. Os trabalhadores colaboravam com o financiamento do terreno e com as contas de luz, gás e combustível. Eles pagavam também taxas de moradia e bancavam as roupas e alimentos comprados no local, sem falar no dízimo e oferendas à congregação.

As investigações sobre o grupo religioso começaram em dezembro de 2018, quando a Polícia Civil recebeu denúncia de que uma jovem era mantida em cárcere privado na chácara, após ela própria pedir ajuda a ex-fiéis. A garota foi libertada em janeiro, ocasião em que Dias Luz chegou a ser presa, mas a ação judicial não foi adiante porque a jovem retirou a denúncia.

À época da autuação, os trabalhadores submetidos à escravidão não quiseram sair da chácara nem receber as parcelas de seguro-desemprego a que tinham direito - motivo pelo qual não houve resgate do grupo. "Essa é a grande diferença desse caso para os outros de trabalho análogo ao de escravo. Como existe a doutrinação religiosa, há o temor reverencial em relação aos líderes, porque há uma série de punições pregadas pela igreja, como o castigo divino", diz a procuradora Mercante.

Pelas contas dos auditores-fiscais, Dias Luz deve R$ 5,4 milhões em direitos trabalhistas.

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