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Escrava sexual de Gaddafi relata seu calvário ao jornal "Le Monde"; leia a íntegra da matéria

Hoje com 22 anos, jovem diz ter sido "escolhida" pelo ex-ditador Gaddafi quando tinha 15  - Reprodução/Le Monde
Hoje com 22 anos, jovem diz ter sido "escolhida" pelo ex-ditador Gaddafi quando tinha 15 Imagem: Reprodução/Le Monde

Annick Cojean

Do Le Monde<br>Em Trípoli

16/11/2011 08h11

Ela tem 22 anos, é linda e está despedaçada. Ela consegue rir por alguns segundos, e então uma centelha de infância ilumina um rosto marcado pela vida. "Que idade você me dá?", ela pergunta, tirando seus óculos escuros. Ela espera, esboça um sorriso fraco e murmura: "Eu sinto como se tivesse 40 anos". E isso lhe parece muito.

Ela desvia o olhar, cobre nervosamente a parte de baixo de seu rosto com um véu preto, e lágrimas brotam em seus olhos escuros. "Muammar Gaddafi arruinou minha vida". Ela quer contar tudo. Acha arriscado, mas aceitou depor, durante um encontro que duraria várias horas em um hotel de Trípoli. Ela sabe que está confusa, e que lhe faltarão palavras para descrever o universo de perversão e de loucura no qual foi lançada.

Mas ela precisava falar. Lembranças pesadas demais obstruem sua mente. "Manchas", ela diz, que lhe dão pesadelos. "Mesmo eu contando, nunca, ninguém saberá de onde eu venho ou o que vivi. Ninguém poderá imaginar. Ninguém". Ela balança a cabeça com um ar desesperado. "Quando vi o cadáver de Gaddafi exposto à multidão, por um momento senti prazer. Depois, senti um gosto amargo na boca". Ela queria que ele estivesse vivo, que fosse capturado e julgado por um tribunal internacional. Nesses últimos meses, só pensou nisso. "Eu me preparava para enfrentá-lo e lhe perguntar, olhos nos olhos: por quê? Por que fez isso comigo? Por que me estuprou? Por que me bateu, me drogou, me insultou? Por que me ensinou a beber, a fumar? Por que roubou minha vida?"

Ela tinha 9 anos quando sua família, originária do leste do país, se mudou para Sirte, cidade-natal do coronel Gaddafi. Ela tinha 15 quando, em 2004, foi escolhida dentre as garotas de seu colégio para entregar um buquê de flores ao "Guia", que visitava a escola onde ele tinha primos. "Era uma grande honra. Eu o chamava de 'papa Muammar' e sentia arrepios." O coronel colocou a mão em seu ombro e acariciou seus cabelos, lentamente. Era um sinal para seus guarda-costas que significava: "Quero esta daqui". Foi o que ela descobriu mais tarde.

No dia seguinte, três mulheres uniformizadas, a serviço do ditador – Salma, Mabrouka e Feiza – apareceram no salão de beleza de sua mãe. "Muammar quer te ver. Ele gostaria de te dar alguns presentes". A adolescente – vamos chamá-la de Safia – as seguiu de bom grado. "Como poderia suspeitar de alguma coisa? Era o herói, o príncipe de Sirte".

Ela foi levada para o deserto, onde a caravana do coronel, de 62 anos, estava instalada para um dia de caça. Ele a recebeu rapidamente, solene, com olhar penetrante. Fez perguntas sobre a família dela, as origens de seu pai, de sua mãe, sua situação financeira. Depois ele lhe pediu friamente que fosse viver com ele. A jovem ficou chocada. "Você terá tudo que quiser, casas, carros..." Ela entrou em pânico, fez sinal negativo com a cabeça, disse que queria ficar com sua família, estudar. "Eu cuidarei de tudo", ele respondeu. "Você estará em segurança, garanto, seu pai vai entender." E ele chamou Mabrouka para que ela tomasse conta da adolescente.

Nas horas seguintes, Safia, assustada, foi vestida com peças íntimas e "roupas sexy". Ensinaram-lhe a dançar, a se despir ao som de música, e "outros deveres". Ela soluçava, pedindo para voltar à casa de seus pais. Mabrouka sorria. Voltar à vida normal não era mais uma opção.

Nas três primeiras noites, Safia dançou sozinha para Gaddafi. Ele escutava a fita de um músico "que ele mandou matar mais tarde". Ele a olhava, sem tocá-la. Disse simplesmente: "Você vai ser minha puta". A caravana voltou para Sirte, com Safia na bagagem.

E, na noite em que voltou ao seu palácio, ele a estuprou. Ela se debateu e ele a espancou, puxando seus cabelos. Ela tentou fugir. Mabrouka e Salma intervieram e bateram nela. "Ele continuou nos dias seguintes. Virei sua escrava sexual. Ele me estuprou durante cinco anos."

Ela logo foi parar em Trípoli, no antro de Bab al-Azizia, o domínio ultraprotegido por três muros onde viviam, em diferentes setores, o senhor da Líbia, sua família, colaboradores, tropas de elite. No começo, Safia dividiu um quartinho na residência do mestre com outra garota de Benghazi, também raptada, mas que um dia conseguiu fugir. No mesmo andar, em cômodos minúsculos, eram mantidas permanentemente cerca de vinte garotas, a maioria delas com idades entre 18 e 19 anos, em geral recrutadas pelas três mesmas emissárias. Essas três mulheres brutais, onipresentes, dirigiam essa espécie de harém, onde as jovens, disfarçadas de guarda-costas, ficavam à disposição do coronel. A maioria permanecia somente alguns meses, antes de sumirem, uma vez que o mestre se cansava. Elas tinham somente um mínimo de contato entre si, já que qualquer conversa pessoal era proibida.

Safia sabia que era a mais jovem e passava o tempo em seu quarto assistindo à televisão. Recusaram-lhe caderno e lápis. Então ela passava horas sentada diante do espelho, falando em voz alta e chorando. Ela precisava estar sempre pronta caso o coronel a chamasse, dia e noite. Os apartamentos dele ficavam no andar de cima. No começo, ele a chamava constantemente. Depois a deixou por outras, escolhidas entre as prostitutas, às vezes voluntárias – algumas diziam "se oferecer ao Guia" - , mas mais frequentemente forçadas. Ele continuou a solicitá-la pelo menos duas ou três vezes por semana, sempre violento e sádico. Ela tinha hematomas, marcas de mordida e o seio machucado. Teve hemorragias. Gala, uma enfermeira ucraniana, era sua "única amiga". Toda semana ela fazia exames de sangue nas jovens.

Eram organizadas regularmente festas com modelos italianas, belgas, africanas ou estrelas de filmes egípcios apreciados pelos filhos do coronel e outros dignitários. Jantares, bailes, música, orgias. Gaddafi se mostrava generoso. Safia se lembra de ter visto malas – segundo ela, "Samsonites" – de euros e dólares. "Ele dava às estrangeiras, nunca às líbias". Safia não queria participar dessas festas, "eu tinha medo que ele me pedisse para fazer um strip-tease". Dois chefes de Estado africanos também se aproveitavam com prazer das "guarda-costas". "Para Muammar, eram simples objetos sexuais que ele podia passar para os outros, depois que ele mesmo as tivesse provado". Ela conta que o coronel também tinha diversos parceiros sexuais masculinos.

Sua mulher e o resto da família que moravam em outros setores de Bab al-Azizia estavam a par dos hábitos do ditador. "Mas suas filhas não queriam vê-lo na companhia de outras mulheres. Então ele ia encontrá-las às sextas-feiras em sua outra residência perto do aeroporto”. Na jacuzzi instalada em seu quarto, de onde ele consultava seu computador, ele exigia jogos e massagens. Ele obrigava Safia a fumar, a beber uísque "Black Label", a cheirar cocaína. Ela detestava e tinha medo. Na segunda vez, teve uma "overdose" e foi levada ao hospital de Bab al-Azizia. Já ele consumia tudo sem parar. "Ele estava sempre sob o efeito de alguma substância, e não dormia nunca".

Em junho de 2007, ele a levou em uma viagem oficial de duas semanas pela África. Mali, Guiné-Conacri, Serra Leoa, Costa do Marfim, Gana. Ele a fantasiava com um uniforme cáqui e a apresentava como guarda-costas, o que ela não era, embora Mabrouka tenha lhe ensinado a carregar, desmontar, limpar e usar uma kalashnikov. "O uniforme azul era reservado às verdadeiras guardas treinadas. O uniforme cáqui em geral era somente para o circo!" Uma noite, na Costa do Marfim, ela usou batom para que ele pensasse que ela estava menstruada e a deixasse em paz. Ele ficou louco de raiva e a espancou. Ela queria fugir. Mabrouka lhe garantiu: "Onde quer que você se esconda, Muammar vai te encontrar e te matar".

Os pais de Safia logo souberam do destino de sua filha. Sua mãe pôde vê-la uma vez, no palácio. Às vezes Safia conseguia falar com ela pelo telefone, mas a conversa era sempre monitorada. Avisaram-na de que se seus pais se queixassem, eles seriam mortos. O pai tinha tanta vergonha que ele não queria saber de nada. No entanto, foi ele que organizou a fuga de sua filha. Gaddafi, cansado de vê-la deprimida, a autorizou a visitar sua família brevemente três vezes por semana, em um carro do palácio. Durante a quarta visita, em 2009, disfarçada de senhora idosa, ela conseguiu deixar a casa e, com a ajuda de um cúmplice no aeroporto, pegar um avião para a França.

Ela ficou ali durante um ano e voltou para a Líbia, se escondeu, contrariou sua mãe que queria casá-la logo com um velho primo viúvo, fugiu para a Tunísia, casou-se em segredo em abril de 2011, esperando partir com seu jovem marido para Malta ou a Itália. A guerra os separou, ele se feriu gravemente, e ela só teve notícias dele vários meses depois.

Ela fuma e chora muito, sente-se "destruída". Gostaria de testemunhar em um tribunal, mas sabe que a desgraça em seu país será tanta que a tornará uma pária. "A mulher é sempre culpada”. Sua vida está em risco, pois "Gaddafi ainda tem fiéis". Ela não sabe mais onde ficar.

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