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Sobreviventes do massacre na Noruega lutam para superar trauma e culpa

Gerald Traufetter e Antje Windmann

Do Der Spiegel

23/04/2012 06h00

Enquanto o julgamento de Anders Breivik ocorre em Oslo, na Noruega, os sobreviventes do massacre que ele perpetrou estão usando uma série de métodos terapêuticos para superar o trauma. Para muitos, a pior questão permanece: Por que eu sobrevivi?

Adrian Pracon, 22, vai reconstituir a cena do tiro que levou pela terceira vez. Desta vez, ele quer mostrar à irmã de 28 anos, Katharina, o local onde deveria ter morrido.

Adrian só viu as botas pretas do assassino momentos antes do tiro, mas sabia que o homem queria matá-lo também. "É tão estranho como eu lembro da situação", conta Adrian à irmã sentada ao lado dele em seu Alfa Romeo prateado. "Tudo acontece como se fosse em câmara lenta".

Nesta manhã de primavera, os picos das montanhas próximas estão com neve, e os campos ainda estão marrons. Os irmãos estão atrasados; o barco que os levará ao local da execução fracassada de Adrian está prestes a partir. Ele pisa no acelerador e o carro avança, como se estivesse voltando para nove meses atrás.

Com sua cabeça meio escondida em sua capa de chuva, Adrian viu os outros serem mortos no dia 22 de julho de 2011. Tudo pareceu acontecer muito lentamente. Depois, ele viu as botas de Anders Behring Breivik se aproximando. "Eu senti o calor irradiando do revólver", lembra-se Adrian.

Ao seu lado no carro, Katharina olha para o irmão com descrença. Ela nunca ouviu essa história com todos os detalhes. Agora, nesta viagem de carro, o irmão conseguiu contar a história completa, e logo ele estará no local onde ocorreu. Ele quer que a irmã tenha uma imagem realista das cenas que continuam a atormentá-lo até hoje.

Partida para a cena do massacre

Adrian é moreno de cabelo ondulado, filho de imigrantes poloneses. Ele fala do momento antes do tiro -de como seu corpo simplesmente parou de tremer, sua respiração parou e a única coisa que ele podia sentir era seu coração batendo contra a pedra, a pedra sobre a qual estava deitado.

A estrada se curva, e Utoya -a ilha do massacre- aparece. A MS Thorbjorn, uma balsa com uma pequena cabine branca do capitão, está esperando no cais. A bordo, já há três dezenas de jovens usando coletes salva-vidas vermelhos.

Adrian também coloca um colete salva-vidas. "Salva vidas!", diz ele com um riso irônico. "Quando aconteceu, eu nadei e quase me afoguei".

O barco parte do cais em direção à Utoya. É uma terça-feira no final de março e a organização jovem associada com o Partido Trabalhista da Noruega, a AUF, organizou para que os sobreviventes e seus familiares visitassem a ilha onde Breivik, extremista de direita, massacrou 69 pessoas no último verão.

A excursão parece uma viagem escolar bem organizada. Os voluntários da AUF vendem as passagens da balsa. Os jovens a bordo correm excitados, falando alto e tirando fotos com seus celulares.

Muitos riem durante a viagem para Utoya. Mas quando chega a hora da viagem de volta, um silêncio profundo reina no barco.

Um tipo único de terapia

Esta viagem de volta ao momento mais negro de suas jovens vidas é uma batalha com imagens que não deixam suas mentes, uma batalha contra o pânico que ainda retorna, uma batalha contra a culpa dos sobreviventes. Por que eles, e não eu, perguntam-se?

A excursão faz parte de uma forma única de terapia criada para ajudar os sobreviventes a se reconciliarem com os eventos daquele dia com o contexto maior de suas vidas. Renate Gronvold Bugge, psicóloga de 71 anos e raízes alemãs, teve a ideia dessas excursões. O governo norueguês agora patrocina o programa, que inclui visitas regulares para os sobreviventes e seus familiares ao local do horror, assim como reuniões nacionais e regionais para ajudá-los a encontrar formas compartilhadas de lidar com sua dor. Quando as coisas apertam, cada sobrevivente tem uma pessoa para contatar e pedir ajuda em sua própria comunidade.

Um projeto de pesquisa está documentando a eficácia dessa terapia e tem como meta fornecer um modelo para tratar feridas psicológicas em situações futuras. "Da perspectiva científica, a tragédia oferece uma oportunidade única", diz Bugge, com uma voz serena.

Entre os que precisam de ajuda estão 700 familiares de vítimas, 650 sobreviventes -dos quais 66 ficaram feridos- e seus 4.500 familiares. Depois, tem os médicos, policiais e inúmeros voluntários que participaram do esforço de resgate. Essas pessoas moram por todo o país, e 165 comunidades receberam a tarefa de cuidar das vítimas de Breivik.

Além da escala, o desafio particular para o tratamento nesta situação é o fato da tragédia ter afetado primariamente adolescentes. "Provavelmente, essa é a idade mais precária na qual vivenciar tal trauma", diz Bugge. "A psiquê ainda está em busca e não se estabeleceu".

Estratégias individuais para lidar com o trauma

Os sobreviventes desenvolveram suas próprias estratégias para lidar com o terror que vivenciaram. Por exemplo, Simen Braenden Mortensen, 23, está no barco seguinte ao de Adrian. Mortensen foi o guarda que permitiu que Breivik, disfarçado de policial, entrasse na balsa para Utoya.

"Logicamente, sei que qualquer um o teria deixado passar porque, afinal, ele parecia um policial", disse o jovem assistente social. "Mas ainda passei semanas me sentindo culpado". Ele tem uma sessão com um psicólogo a cada sexta-feira e, até três semanas atrás, só trabalhava meio período.

Depois tem Caroline Winge, 19, de Trondheim, que pediu para visitar um campo de treinamento de tiros para policiais para se acostumar com o som dos tiros e ficar perto de policiais.

Ou Khalid Taleb Ahmed, 32, que toma remédios para expulsar de sua cabeça a imagem de seu irmão, Ismail, morto, caído no pé de um abismo com seu cabelo alourado vermelho de sangue. A psicóloga ensinou Khalid a ver o trauma como um portal pelo qual pode passar. Ela o ensinou que há um filme passando em sua cabeça e que ele tem o controle remoto para desligá-lo.

Presos no tempo

Alguns melhoraram, mas muitos continuam tendo dificuldades. Marte Fevang Smith, 18, de Tonsberg, está sentada diante da mãe Monica na balsa do meio dia. Ela é uma jovem radiante, com cabelos louros grossos e olhos azuis brilhantes. A mãe diz que a filha estava começando a "desabrochar" no último verão -até que uma bala entrou em sua cabeça em Utoya. Ela só sobreviveu porque o tiro não atingiu seu cérebro por dois milímetros.

Esta viagem a Utoya com outros sobreviventes é dura para Marte. Na viagem de volta, ela passa um longo tempo em silêncio. O único lugar em que se sente segura atualmente é em casa, e seu quarto está cheios de roupas, DVDs e maquiagem.

Toda vez que se encontra em locais diferentes, Marte diz que procura uma rota de fuga. Ela não imagina entrar em um ônibus cheio, porque é uma situação que não poderia controlar. Desde Utoya, ela não saiu mais para dançar, porque isso a faria lembrar de Maria. Na noite anterior ao massacre, as duas dançaram na frente do palco na ilha. "O Datarock estava tocando", diz Marte, referindo-se a uma banda norueguesa. "Quando ouço eles tocarem no rádio hoje, desligo imediatamente". Breivik também atirou em Maria, mas ela não sobreviveu.

Marte não conseguiu voltar a estudar. "Infelizmente, não é possível", diz ela. Em agosto, ela tentou iniciar o novo ano escolar como de costume. Seria um passo importante, que a psicóloga Renate Bugge antecipava com esperanças e trepidação. "A escola oferece uma rotina diária, uma estrutura que dá algo a que se agarrar", diz Bugge, acrescentando que todas as pesquisas apontam para isso -e que é mais importante que uma sessão com um terapeuta.

Traumatizada demais para ir à escola

Mas dias antes do ano escolar de Marte começar, um balão explodiu em uma festa de aniversário de alguns estudantes. "Saí correndo da sala", diz Marte. Quando fugiu, ela ouviu um professor dizendo "que bom que não temos alunos que estiveram em Utoya".

Ninguém tinha contado ao professor que Marte estivera na ilha, em "Love Rocks", um morro no sul da ilha, onde foi forçada a assistir Breivik matar 10 pessoas.

Poucos dias depois, Marte estava em uma aula de psicologia quando começou a imaginar que tinha sangue escorrendo pelo rosto do professor. Os colegas encontraram Marte no banheiro e a abraçaram para ajudá-la a parar de tremer. "Por sorte, minhas amigas sempre têm loção para tirar a maquiagem e puderam limpar meu rímel borrado".

Marte não consegue mais se concentrar em sala e, quando tenta ler, as letras simplesmente passeiam por sua cabeça. Eventualmente, desistiu e hoje trabalha dois dias por semana em uma pré-escola perto de seu apartamento.

Batalha contra as lembranças

Os psicólogos reconhecem esses fenômenos como sintomas clássicos de distúrbio de estresse pós-traumático. Os ruídos do dia a dia, como uma porta batendo, podem iniciar flashbacks e gerar precisamente a mesma cascata de emoções no cérebro que a experiência traumática.

A mente dá uma volta na lógica, que reconheceria as falsas conclusões. Em vez disso, a parte do cérebro que controla as emoções entra em ação e acende o botão do pânico. A pressão sanguínea aumenta, o batimento cardíaco se acelera, e o indivíduo começa a suar.

Na fase aguda pós-traumática, é comum ter lembranças fragmentadas e embaralhadas do evento, explica Bugge. "O cérebro ainda não consegue colocar as coisas em ordem cronológica ou estabelecer a distância entre a experiência chocante que aconteceu e o que está acontecendo agora", diz.

Em outras palavras, na memória de Marte, tudo se tornou uma mistura de imagens perturbadoras: os sapinhos que viu pulando pelo acampamento na manhã do massacre, os tiros e gritos, a imagem que viu por acaso na TV de uma loja no hospital, dias depois, na qual leu o número de mortos. Sob essas condições, o cérebro não é capaz de executar tarefas complexas. "Quando é necessário escrever um ensaio para a escola que exige a ligação de vários pensamentos na memória, a concentração da pessoa falha", diz Bugge.

Isso deixa as escolas com o difícil papel de observar os sobreviventes. Os professores devem prestar atenção a esses alunos e dirigi-los para um atendimento psicológico caso seu desempenho caia. Essa rede de segurança nacional é feita para assegurar que ninguém fique desatendido.

Reprogramação do cérebro

A princípio, Marte queria se virar sozinha. Ela tentou se livrar do horror escrevendo um blog. Mas quando o inverno chegou, ela deixou de lado sua resistência à ajuda psicológica.

A terapeuta que Marte agora frequenta tem uma forma que parece exotérica de tratamento, chamada de "dessensibilização e reprocessamento do movimento dos olhos". Nesta abordagem, o paciente deve relembrar as cenas traumáticas. Ao mesmo tempo, o psicólogo move um objeto na frente do rosto do paciente e pede que o siga com os olhos.

Esse movimento dos olhos supostamente permite que as emoções extremas geradas pela memória gradualmente se nivelem. Apesar de ainda não se saber como este método funciona, vários estudos confirmam sua eficácia. Soldados alemães traumatizados depois de servirem no Afeganistão também foram tratados dessa forma.

Marte não está otimista e diz: "Não acredito muito", mas ainda assim espera que a terapia funcione.

Em fevereiro, Marte olhou Breivik nos olhos novamente pela primeira vez desde o massacre. Quando o assassino entrou na sala do tribunal para uma audiência preliminar, ele olhou para Marte e outros sobreviventes no banco dos visitantes. Ele parecia imaturo e tinha uma voz de Smurf, diz ela.

Marte desmoronou antes do final da audiência. Ela esperava que a visão de Breivik algemado a fizesse se sentir mais segura. "Tenho certeza que não terei que revê-lo quando for testemunhar", diz ela. "Meu advogado pediu que ele fosse tirado da sala antes". Perdida em pensamentos, Marte brinca com o cordão do casaco.

Tensão com o início do julgamento

O julgamento de Breivik, que começou nesta semana, colocou os psicólogos da Noruega em alerta. O fato de partes do julgamento -com exceção do testemunho de Breivik- serem transmitidas pela televisão ao vivo na Noruega testará até onde as vítimas conseguiram processar o trauma.

De acordo com estimativas do Centro de Psicologia de Crise na Universidade de Bergen, metade dos sobreviventes de Utoya fizeram uso de tratamento psicológico. "Isso está em linha com outras tragédias de grande escala em torno do mundo", diz Atle Dyregrov, diretor do instituto. Ele estima que pelo menos 30% deles continuará em tratamento por um período estendido de tempo, acrescentando que a quantidade de tempo poderá ser determinada por "como vamos desempenhar nossos papeis nas próximas semanas".

As pesquisas também mostram exemplos de pessoas que emergem de uma experiência traumática mais forte do que antes. Há várias teorias sobre isso. Os homens conseguem essa façanha mais frequentemente que as mulheres, e o fato de a pessoa ter tido que superar outra crise na vida ajuda.

Resistência psicológica

Adrian Pracon também tem uma boa chance de conseguir isso. Seu rosto está corado quando deixa a balsa de Utoya, pisando no cais com seus sapatos de lona branca com o braço em torno da irmã, Katharina. "A pedra que fiquei deitado não estava submersa desta vez", diz ele, e ele pode mostrá-la à irmã. "Acho que me senti mais distante", acrescenta.

O jovem alcançou certa fama na Noruega. Acaba de ser publicado o livro "Hjertet mot steinen" (coração contra a pedra), escrito por Erik Moller Solheim, após longas conversas com Adrian.

Os primeiros meses foram difíceis, e Adrian entrou em depressão. Mas, diz ele, "durante essas longas conversas com Erik, os episódios confusos na minha cabeça começaram a se organizar".

Adrian acredita que verdadeiramente se reconciliou com o que aconteceu em Utoya. Ele é garçom, recebe um salário da AUF e planeja terminar a faculdade. Depois, ele espera entrar na política. "Acho que posso fechar o capítulo desta parte da minha vida", diz ele, olhando para algumas rosas murchando em um memorial improvisado ao longo da estrada para Utoya.

Resiliência é o termo científico para este poder de resistência emocional que algumas pessoas têm. Como diz Adrian: "Quando você chega em um ponto em que você não pode nem imaginar o sol nascendo de novo, não tem nada mais maravilhoso do que acordar de manhã e vê-lo brilhando".

Culpa de sobrevivente

Ainda assim, tem uma questão que vai continuar a incomodá-lo. "Algumas vezes, eu não conseguia pensar em nada por dias", diz Adrian. "Por que ele não atirou em mim?"

Breivik olhou para Adrian duas vezes. Da primeira, foi na praia da ilha no início do massacre. O atacante subitamente estava ali, acertando um adolescente após o outro com precisão mecânica.

Quando ele alcançou Adrian e mirou, Adrian gritou: "Não atire!" Breivik simplesmente abaixou a arma e virou de costas. Como se tivesse criado raízes no chão, Adrian ficou ali na água que estava vermelha com o sangue dos amigos.

Da segunda vez, o atirador não o poupou. Adrian estava deitado em uma pedra debaixo de sua capa de chuva, fingindo estar morto. Desta vez, Breivik puxou o gatilho. "O barulho da bala foi incrível", diz ele. Ela perfurou seu ombro. "Não senti dor", diz ele.

Quase todos os sobreviventes sentem culpa, em algum ponto, por terem saído vivos. Para Adrian, a questão é mais complicada pelo fato do atacante ter conscientemente escolhido poupá-lo da primeira vez.

Nos arquivos da polícia, Adrian encontrou uma declaração de Breivik que talvez explique seu comportamento. Breivik diz que poupou uma menina de 14 anos na ilha porque ela ainda não tinha sido submetida a muita "lavagem cerebral". Talvez ele não tenha matado Adrian porque ele também pareça mais jovem do que é.

Adrian também vai testemunhar no julgamento. Mas ele não tem certeza se vai perguntar a Breivik por que não atirou nele na primeira vez. "Não sei se terei coragem", diz ele.