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Rebeldes sírios enfrentam desafios para governar cidade na Síria

Christoph Reuter e Abd al-Kadher Adhun

Der Spiegel

06/10/2012 06h00

Rebeldes assumiram a responsabilidade pela administração da primeira grande cidade a ser libertada na Síria. Tropas de Bashar Assad responderam à provocação com ataques aéreos direcionados a escolas e hospitais. O regime está pulverizando grande parte da infraestrutura do país, inclusive o acesso à água potável.

Idosos, irritados, sem se preocupar com o decoro, forçam o caminho para entrar na sala. Eles gritam furiosamente com os funcionários atordoados sentados atrás de suas mesas. A revolução está indo muito bem, dizem, “mas onde estão as nossas pensões?”

Com alguma dificuldade, o homem do comitê de justiça consegue convencê-los a pelo menos nomear um porta-voz, para que não falem todos ao mesmo tempo. Mas eles permanecem inflexíveis. "Vocês são o novo governo. Portanto, onde esa a  responsabilidade de  pagar nossas pensões?"


Um líder tribal observa a cena de uma poltrona ao lado. Um clérigo e um advogado estão sentados num sofá, discutindo regras para os presos. E o novo chefe de polícia quer saber como deve colocar seus homens de volta na rua. Embora ele tenha 24 uniformes novos, há o dobro de policiais, e a polícia também não tem munição para suas armas de serviço.

O conselho revolucionário se reúne num edifício central chamado Serail, onde ficavam os escritórios do prefeito, da polícia, do tribunal e do registro de propriedade, e onde o poder antes se concentrava. Agora, o edifício retomou sua função anterior, exceto que os papéis parecem ter se invertido.    

Abandonada à própria sorte

O que está acontecendo atualmente em Manbij, que já foi uma cidade pacata no norte da Síria, é a primeira experiência orientada para o futuro em meio ao horror. Enquanto rebeldes lutam contra as forças do regime em outras partes do país, e cidades inteiras são destruídas por bombardeios, Manbij é a primeira cidade grande da Síria a ser libertada. Desde que as forças do regime se retiraram em meados de julho, conselhos locais têm governado os 150 mil moradores de Manbij e do distrito ao redor, que abriga mais de meio milhão de pessoas.

O exército tinha se retirado de grande parte do norte da Síria na primavera, mas o fato de ele ter simplesmente abandonado uma cidade inteira é resultado principalmente de bom senso de ambos os lados. Um astuto corretor de imóveis representou a oposição em vários meses de negociações com os chefes das todo-poderosas forças de segurança, e eles fizeram uma série de acordos sem muito alarde. A oposição concordou em limitar os protestos a 15 minutos, e, em troca, as forças de segurança se comprometeram a não disparar contra os manifestantes. A cidade também deve sua boa fortuna a seu relativo isolamento, o que significa que ela eventualmente ficou cercada por áreas sob controle rebelde.  “Então já era tarde demais para enviar tropas”, disse o corretor, Ibrahim Sallal, com um sorriso. “Quando o regime quis começar a guerra, todas as estradas já estavam fechadas.” Os chefes das forças de segurança e as milícias Shabiha se retiraram na manhã de 19 de julho, enquanto um grupo de 51 policiais desertou para o lado dos rebeldes.  Manbij foi abandonada à própria sorte. Depois de quatro décadas de ditadura, seus moradores se depararam subitamente com a tarefa de administrar uma cidade independente, na qual nem as pensões nem a sobrevivência podem mais ser tomados como certos. 

Ataques aéreos diários

Desde meados de agosto, o regime de Damasco vem tentando destruir as partes do país que não conseguiu controlar. A força aérea síria lança ataques aéreos diários contra Manbij e outras cidades no norte. O objetivo não é tanto atacar os rebeldes, uma vez que eles mudam de lugar continuamente, mas sim a destruição da infraestrutura. Os ataques são destinados, em especial, a dutos de água potável, silos de grãos, hospitais, prédios governamentais e escolas. O regime do presidente Bashar Assad não pode mais ganhar a guerra, mas pode evitar que o outro vença.

Os rebeldes têm poucos recursos para combater os ataques aéreos, para os quais o regime está usando aviões de treinamento comum. Suas silhuetas no céu parecem os aviões de bombardeio da Segunda Guerra Mundial, e os ataques são realizados exatamente da mesma forma: os pilotos mergulham o avião até pouco antes de atingir o alvo, soltam suas bombas e sobem os aviões novamente.   

Não há menção dos ataques aéreos na televisão estatal síria, que descreve os esforços das tropas de regime como uma “luta heróica contra os terroristas”, cujos ataques supostamente exterminaram quarteirões inteiros na cidade. As cenas que se seguem são de ruínas de prédios de vários andares - edifícios que foram de fato destruídos pela força aérea.

Quanto mais terrível a situação fica, mais quieto se torna o resto do mundo. Pelo menos 100 pessoas morrem todos os dias em todo o país, mas os noticiários se concentram quase exclusivamente no combate nas duas maiores cidades da Síria, Damasco e Aleppo. Eles quase não fazem menção ao bombardeio aéreo em outras cidades e vilas.   

Tentativas fracassadas de mediação

Na semana passada, o presidente francês François Hollande pediu proteção internacional para as "zonas liberadas" no norte e ameaçou Damasco, dizendo: “Não vamos continuar em silêncio”. Mas é precisamente isso o que está acontecendo. 

Todas as tentativas de mediação fracassaram, e o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, não correrá nenhum risco militar antes da eleição presidencial no início de novembro – especialmente depois que uma onda de fúria violenta varreu partes do mundo islâmico, um grupo matou o embaixador americano na Líbia e mais de 20 pessoas morreram durante manifestações no Paquistão, tudo por causa do trailer de um filme exibido no YouTube que ridiculariza o profeta Maomé.

Ninguém em Manbij viu o vídeo, porque ninguém tem acesso a ele. Não há internet na cidade. Todas as conexões eletrônicas com o mundo exterior foram cortadas, e apenas a rede de telefonia fixa local ainda está funcionando. Mas, mesmo sem ter visto o vídeo, ninguém em Manbij entende a histeria.

“Não estamos criticando a indignação de nossos irmãos muçulmanos”, diz um clérigo, “mas onde estão as manifestações contra o bombardeio de mesquitas na Síria?”

Enquanto isso, o presidente Assad afirma que a situação já é muito melhor do que no ano passado, mas acrescenta que vai demorar um pouco para que as forças do governo finalmente vençam os terroristas. 

"É uma loucura", diz Anas Sheikhawais, figura chave do conselho revolucionário em Manbij e, na vida civil, proprietário de uma pequena fábrica de telhas de cerâmica. “Estamos tentando construir um novo sistema, mesmo enquanto o antigo continua nos bombardeando.”

Seis pessoas morreram em 20 de setembro, quando uma bomba atingiu a praça principal, e uma escola e o pátio da sede da polícia foram atingidos alguns dias antes. De caixa em caixa, de carro em carro, arquivos de tribunais, certidões de casamento e documentos de propriedade de terras estão sendo transferidos para a segurança no interior, antes que uma bomba atinja Serail. A mesma coisa foi feita em uma pequena cidade mais ao sul há alguns dias. Um dos advogados da comissão de justiça chama isso de “resgatar o país da destruição pelo governo”.

Combustível tem de ser contrabandeado para a cidade, funcionários não estão mais recebendo seus salários, e a única razão pela qual Manbij tem eletricidade é porque fica perto da barragem Eufrates, que abastece grande parte da Síria com a energia. É improvável que o regime corte Manbij da rede, porque se o fizesse os rebeldes poderiam fechar a usina hidrelétrica e paralisar o fornecimento de energia para metade do país.  

Preocupações básicas de sobrevivência   

As grandes perguntas feitas no Ocidente, como se a Al Qaeda se infiltrou na revolução e se haverá uma guerra civil, são de importância secundária no experimento de Manbij. Em vez disso, a cidade enfrenta problemas mais imediatos, como se as escolas poderão reabrir em breve, ou o que fazer com os refugiados de outras áreas que foram para lá. E se as escolas reabrirem, de onde é que os livros virão, agora que o governo central já não os fornecerá? E que tipo de bandeira deve ser hasteada para que a força aérea não ataque as escolas quando reabrirem? A nova, de três estrelas? É muito perigoso. A bandeira antiga? Fora de cogitação.

O povo de Manbij está mais preocupado se vão conseguir farinha para o próximo mês, e se o pão ainda deve ser distribuído nas padarias centrais, depois que filas de pessoas do lado de fora das padarias foram atacadas várias vezes em Manbij e em outros lugares. Eles estão preocupados com a água potável, a gasolina, as eleições e a busca desesperada por dinheiro. “Estaremos falidos em um mês”, diz o Sheik Mohammed Ali, tesoureiro interino da cidade.    

Dificuldade em dizer quem está no comando

É também uma questão de quem está no comando Manbij. O conselho? Os rebeldes do ELS (Exército Livre da Síria)? E quem está autorizado a prender quem? Uma manhã, uma unidade do ELS pegou três indivíduos gravemente feridos e seus cinco sequestradores em uma fazenda fora da cidade.

Os sequestradores disseram: também estamos com a ELS, e prendemos três membros da milícia Shabiha (a notória milícia do regime). Um dos três homens agredidos disse que eles eram apenas agricultores e não tinha idéia de por que haviam sido sequestrados e torturados.

Todos foram presos temporariamente no porão do único hotel de Manbij, até que fique claro quem na verdade sequestrou quem. Mas em poucas horas, um grupo de homens armados da tribo dos sequestradores invadiu a cidade, disparando para o ar, enquanto os homens do batalhão da ELS local, os "revolucionários de Manbij", faziam o mesmo. Em poucos segundos, os lojistas fecharam suas persianas e as pessoas correram para se proteger. Em seguida, os dois grupos negociaram e as coisas se acalmaram de novo - por enquanto.