Topo

"Achei que era piada", diz brasileiro que morava em Berlim quando muro caiu

Soldados da Alemanha Oriental se posicionam sobre o muro antes da queda da barreira, em 1989 - AP/Lionel Cironneau
Soldados da Alemanha Oriental se posicionam sobre o muro antes da queda da barreira, em 1989 Imagem: AP/Lionel Cironneau

Gil Alessi

Do UOL, em São Paulo

05/11/2014 06h00Atualizada em 05/11/2014 07h31

“Quando algumas pessoas começaram a subir o muro a situação pareceu ficar crítica. Sabíamos que do outro lado se encontravam policiais armados, com instruções para atirar em invasores”, lembra cantor lírico brasileiro Günther Giese, 55, sobre o 9 de novembro de 1989.

Mesmo morando do lado “capitalista” da cidade, sempre teve receio da barreira, erguida em 1961: “Quem chegava perto era observado de binóculo pelos guardas nas torres”, conta. Este é seu relato:

Atravessando o muro

“Meu nome é Günther Giese, nasci em 22 de Maio de 1959 em Jaraguá do Sul (SC), descendente de imigrantes vindos da região da Pomerânia - que desde o final da 2ª Guerra Mundial é um território da Polônia. Vim para Berlim Ocidental em julho de 1980, para estudar música sacra.

Gunther Giese - Acervo pessoal/Günther Giese - Acervo pessoal/Günther Giese
O brasileiro Günther Giese, em foto tirada na década de 1980, em Berlim Ocidental
Imagem: Acervo pessoal/Günther Giese

Eu, como outros estudantes de música na parte ocidental da cidade, gostava de assistir aos espetáculos líricos na Ópera Estatal e na Ópera Cômica, no lado oriental de Berlim. Os ingressos eram  baratíssimos, mas atravessar para o lado comunista não era nada fácil.

Era preciso uma autorização, encaminhada no mínimo três dias antes para as autoridades comunistas. A hora de atravessar o muro por uma de suas passagens era tensa e imprevisível. Como eu ia para o centro histórico da porção oriental, eu atravessava pela estação ferroviária Friedrichstrasse.

Já na plataforma o visitante era intimidado pela presença de policiais armados, os Volkspolizei (Policia do Povo), que nós apelidávamos de 'vopos'. Eles patrulhavam local com cachorros da raça pastor alemão . Eu sentia pavor e me achava  em  uma situação perigosa, ficava intimidado.  A distância até a cabine de controle de passaportes era um labirinto, e as "boas vindas" vinham aromatizadas por um desinfetante à base de pentaclorofenol e cresol, que nós dizíamos ser o "cheiro” da Alemanha Oriental.

Ao chegar até a cabine de controle você deparava com a cara fechada de um funcionário do leste. Muitas vezes, ao lhe entregar o passaporte, ele não se contentava em ver seu rosto de frente: pedia para mostrar o lado esquerdo, o lado direito...  Eu me sentia tratado como um delinquente.  Mas, graças a Deus, sempre conseguia passar. 

Todo esse processo era encenado com o objetivo de intimidar as pessoas. Eu sempre voltava arrasado para o lado ocidental, prometendo nunca mais atravessar. A qualidade da ópera, contudo, me convencia a enfrentar novamente toda essa odisseia.

Além de toda essa humilhação, atravessar para o leste tinha um preço: era preciso trocar 25 marcos ocidentais pelo dinheiro local, a um câmbio desfavorável. O dinheiro que não fosse gasto no lado oriental não podia ser levado de volta, então nós escondíamos no sapato ou na cueca, morrendo de medo de sermos descobertos."

A queda do muro

"A data 9 de novembro na história alemã já era significativa antes da queda do muro, em 1989.  A Revolução  Alemã de 1918, que culminaria com a derrubada do Kaiser Wilhelm 2º e o estabelecimento de uma República parlamentarista, começou nesta data. E a Noite dos Cristais, em 1938, quando houve o espancamento e assassinato de judeus e a destruição de sinagogas pelos nazistas, também.

Günther Giese - Acervo pessoal/Günther Giese - Acervo pessoal/Günther Giese
Em foto atual, Günther se prepara para entrar em cena em uma ópera
Imagem: Acervo pessoal/Günther Giese

No dia em que o muro caiu, eu havia ido assistir a uma peça de teatro sobre as atrocidades da Noite dos Cristais, no teatro Hebbel.  No intervalo da peça, começaram a circular boatos e comentários de que parte do muro havia sido derrubada. Eu e meus amigos achamos que se tratava de uma piada de muito mau gosto, ainda mais em um dia em que os sofrimentos causados pelos nazistas eram lembrados.

Quando saímos do teatro, entramos em um congestionamento enorme, incomum para aquela região. Decidimos passar no Portão de Brandemburgo para ver o que estava acontecendo. Estacionamos o carro e continuamos a pé. A atmosfera era perturbadora e excitante ao mesmo tempo. Ninguém tinha certeza do que estava acontecendo. Uma multidão curiosa e apreensiva tomou as ruas da região. Como não tínhamos visto os noticiários, tentávamos  nos informar, mas a incerteza era geral.

Quando finalmente conseguimos nos aproximar do portão, o local estava lotado, parecia que ia chegar uma celebridade! Quando algumas pessoas começaram a subir o muro, a situação nos pareceu ficar crítica. Sabíamos que do outro lado se encontravam policiais armados, com instruções para atirar em invasores ou em quem tentasse fugir. Com medo do pior, comecei a voltar para casa.

No caminho encontrava pessoas do lado comunista -- era possível saber quem era do leste pelo tipo de roupa, mais simples do que as do lado ocidental -- fora de si, alguns embriagados, perguntando como chegar à "Ku'damm", abreviação popular de Kurfürstendamm, uma das principais avenidas de Berlim Ocidental.  Neste momento fiquei convencido de  que algum ponto do muro havia realmente caído."