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Política argentina tem "antes e depois" com morte de promotor, diz analista

18.fev.2015 - Manifestantes seguram faixa onde se lê "Homenagem ao promotor Nisman. Marcha do silêncio" durante protesto para homenagear Alberto Nisman, em Buenos Aires - Enrique Marcarian/Reuters
18.fev.2015 - Manifestantes seguram faixa onde se lê "Homenagem ao promotor Nisman. Marcha do silêncio" durante protesto para homenagear Alberto Nisman, em Buenos Aires Imagem: Enrique Marcarian/Reuters

Marcia Carmo

Do Clarín, em Buenos Aires

27/02/2015 06h01

O cientista político e doutor em filosofía Marcos Novaro acredita que a Argentina terá um ano eleitoral mais complicado do que era esperado até dezembro próximo, mês da posse do sucessor da presidente Cristina Kirchner.

Para Novaro, o país vive “um antes e um depois” do chamado caso do promotor Nisman, que ocorreu em janeiro passado.

Segundo ele, o protesto que reuniu milhares de pessoas no dia 18 de fevereiro, no protesto que marcou um mês da morte do promotor Alberto Nisman, revelou a insatisfação da sociedade com o kirchnerismo (ou cristianismo, em alusão à presidente ).

Mas o governo continua aprovando todos os seus projetos no Congresso Nacional. Por que? "A disciplina peronista é à prova de bala, e neste caso, literalmente", diz.

Nesta entrevista ao Clarín em Português, o analista falou sobre a herança do atual governo e muito mais.

Clarín em Português: A morte do promotor Nisman acabou revelando uma trama que envolve os serviços de inteligência, apesar de a Argentina já ter completado mais de vinte anos do retorno da democracia (1983). Por que?

Marcos Novaro: Cada decisão de áreas críticas do Estado tem um custo. O governo kirchnerista [2003-2015] deu atenção especial aos serviços de inteligência, que foram politizados, e iria acabar pagando este custo em algum momento.

Creio que a comoção que provocou primeiro a denúncia de Nisman [de que governo argentino teria feito ‘pacto criminoso’ com o governo iraniano], depois a morte de Nisman e a reação do governo, principalmente a da presidente Cristina Kirchner, à morte dele sacudiram a sociedade argentina e mostraram os problemas do Estado.

Clarín: Mas a politização dos serviços de inteligência na Argentina é algo de agora ou que já vinha de muito antes, já que a ex-Side [Secretaria de Inteligência, que passou a ser SI e agora é Agência de Inteligência] teve um mesmo chefe do serviço de inteligência desde o inicio dos anos 1970 até dezembro passado quando foi substituído por ordem da presidente?

Novaro: Mas o uso sistemático do serviço de inteligência para perseguir os adversários foi muito mais grave nos últimos tempos. É provável que na etapa menemista [1989-1990] tenham sido irregulares mas no kirchnerismo se passou a uma etapa superior.

O serviço de inteligência não foi usado apenas como questão de Estado mas para controlar juízes e outros. E com esses ‘carpetazos’ (fichas de informação) o governo pode pressionar diversos setores opositores. Foram usadas informações para pressionar políticos, jornalistas, empresários.

Esse tipo de uso tao intenso da politização é um esquema do kirchnerismo. Para o kirchnerismo a política se mete em todos os lados. Com essa ideia se formou uma bomba atômica que iria chegar mais cedo ou mais tarde. E as consequências estão aí. Existe uma diferença entre a forma tradicional de atuar do peronismo e o que implementou o kirchnerismo....

Clarín: O que o senhor diz é que nesse contexto poderia ser esperado um caso Nisman?

Novaro: Na Argentina ocorreram fatos parecidos em outras épocas, mas com essa virulência é muito próprio desta época que estamos vivendo aqui. Não digo que o governo fez isso mas nos levou a isso.

Clarín: Na sua opinião, o que ocorrerá depois do protesto do dia 18 de fevereiro, que ficou conhecido como 18F e marcou um mês da morte de Nisman? Em outras ocasiões ocorreram protestos e depois parecia que os argentinos já tinham esquecido e nada mudava.....

Novaro: Não é para ter grandes expectativas depois do protesto do dia 18. O processo politico não vai mudar e não vamos sair da tendência de crise e de problemas que temos hoje. Acho que estamos vivendo uma etapa de revelação de certa herança que nos deixará o kirchnerismo.

Acho que a transição vai ser mais complicada do que se esperava, mais agitada do que se esperava. O próprio governo vai alimentar isto, através da polarização. O kirchnerismo vai tentar transformar a crise em oportunidade. Ou seja, o pensamento deles é: 'mesmo perdendo as eleições presidenciais [de outubro] os votos que nos restam são nossos. Somos uma minoria, mas uma minoria contundente’.

Acho que essa atitude ocorrerá já que o governo teme não só perder as eleições mas ver seu movimento politico desaparecer.

Clarín: Mas por ser um ano eleitoral o governo também não pode mudar seu estilo para tentar aglutinar maior apoio, mais votos?

Novaro: O governo radicalizou sua posição. E agora já é tarde para tentar reverter o caminho que escolheu, o caminho dos amigos, inimigos, de ganhar ou perder, de ver adversário politico como inimigo. Corrigir o rumo seria, por exemplo, reconhecer que eles tiveram uma diplomacia paralela com a Venezuela e com o Irã.

E acho que se fazem isso, o projeto [de governo] que construíram desaba. 

Clarín: O senhor acha que podem ocorrer novos protestos depois do 18F?

Novaro: Eu acho que a sociedade demonstrou que está muito mais atenta às iniciativas do governo. E mais preocupada também.

Clarín: E o senhor acha que o protesto influenciará no mapa político deste ano eleitoral?

Novaro: Acho que sim. Até dezembro existia aqui a percepção de que seria uma transição tranquila, como a que interpretava o governador da província de Buenos Aires e presidenciável [Daniel Scioli]. Eu acho que algo ia acontecer, como aconteceu.

As tensões existem, como os problemas domésticos, externos, institucionais, além de casos de corrupção, de insegurança pública. E agora é como se tudo tivesse explodido ao mesmo tempo. A transição não ia ser tranquila, mas o caso Nisman antecipou essa insatisfação visível.

Clarín: A democracia argentina....

Novaro: Tem problemas sérios, estruturais e que também ficaram mais evidentes.

Clarín: O senhor diz que os argentinos têm muitos motivos para protestar. No entanto, o governo continua aprovando seus projetos no Congresso Nacional sem dificuldades. E o governo mantém em torno de 30% de apoio popular, segundo diferentes pesquisas....

Novaro: A disciplina peronista vai continuar funcionando. A disciplina peronista é à prova de bala e neste caso literalmente. Por um lado, porque o governo ainda tem recursos para bancar essa fidelidade [com medidas governamentais] e por outro porque muitos dos peronistas acham que depois será a presidente Cristina quem pagará o preço [pelos erros].

O regime foi e é tão vertical que ela pagará o custo. E os demais dirão que foram obrigados, levados, manipulados a apoiar o governo por uma razão ou outra. Ou dirão também que foram enganados. Governadores, políticos, empresários que apoiam e apoiaram o governo e eles vão mudar o discurso.

Clarín: Mas o senhor acha que todos estão insatisfeitos com os doze anos de kirchnerismo? O governo diz que pegou um país destruído em 2003, após a crise de 2001...

Novaro: O kirchnerismo foi um sistema, digamos, generoso.  Setores empresariais, sindicatos e consumidores ficaram com mais dinheiro, mas este é um sistema amarrado com alfinetes e hoje as pessoas sabem disso. E muitos pensam hoje 'tomara que o governo termine sem que eu perca muito'.

Mas, outra vez, o caso Nisman mostrou o nível de preocupação em diferentes níveis.

Clarín: Faltam oito meses para as eleições presidenciais de outubro....

Novaro: Eu diria que faltam seis meses para as eleições primárias, em agosto, e acho que elas são decisivas.

Clarín: Mas as primárias são para definir e ratificar os presidenciáveis.

Novaro: Mas na pratica funcionam como um primeiro turno. E o candidato que tiver mais votos, mesmo de partidos diferentes, caminhará claramente para ser o preferido na eleição presidencial.

Nas primárias disputarão até mesmo aqueles que são candidatos únicos de suas legendas, como é o caso do [deputado federal da Frente Renovadora e opositor Sergio] Massa. Acho que tanto Massa quanto [o prefeito de Buenos Aires e presidenciável do PRO] Mauricio Macri sabem da importância das primárias e sabem também que quem sair primeiro, em agosto, tem mais chance de ser eleito presidente. E se Scioli sai primeiro tem chances.

Clarín: Mas o kirchnerismo ainda pode vencer as eleições?

Novaro: Até dezembro [de 2014, antes do caso Nisman], essa possibilidade estava mais clara. Mas agora, depois do caso Nisman, acho que Scioli vai continuar caindo nas pesquisas e o governo vai perdendo chances de vencer a eleição presidencial.

Clarín: Qual a herança que deixará o kirchnerismo. Ou seja, o senhor falou nos problemas na economia, de corrupção.....Qual poderá ser a diferença se o eleito for um kirchnerista ou se for um opositor?

Novaro: Acho que em qualquer caso, o peronismo continuará dividido, o presidente será popular mas sem a maioria no Congresso Nacional. E o próximo presidente terá problemas urgentes para resolver, como na economia.

Acho que devemos estar atentos ao período de outubro e dezembro [entre a eleição e a posse do sucessor]. Dar aumento de salários, benefícios, pode ser uma festa com o dinheiro público. E essa festa pode acabar mal. Com mais inflação e falta de credibilidade entre investidores.

Clarín: Na sua visão, os candidatos que surgem até agora, Massa, Macri e Scioli estão preparados para assumir a Presidência?

Novaro: Acho que sim, que os três estão preparados.

Clarín: Historiadores, analsitas costumam observar que a Argentina é um país com instituições fracas...

Novaro: Mais ou menos, porque o peronismo é uma instituição forte, o poder dos governos provinciais.....

Clarín: Mas o que os analistas de diferentes tendências dizem é que se um governo é fraco ou mostra-se fraco os juízes atuam contra as medidas governamentais ou políticos governistas.....

Novaro: É verdade, os juízes pulam na jugular dos ditos fracos [faz o gesto de cortar o pescoço]. Esse é o principal perigo que existe a partir da perda de autoridade aqui na Argentina.

Clarín: O fato de o kirchnerismo completar doze anos também não significa estabilidade politica? Porque o ex-presidente Raul Alfonsín não terminou o mandato, Carlos Menem terminou, mas sendo acusado, Fernando de la Rúa não concluiu o mandato...

Novaro: São antecedentes negativos, sem dúvida.  O próximo presidente terá o desafio de manter a estabilidade e com os problemas que já existem. O setor agrário pode se recuperar rápido, mas o mesmo poderá não ocorrer por uma questão de confiança em outros setores.

Clarín: Na sua opinião, qual seria o futuro politico da presidente Cristina Kirchner? Ela já tem dito aos eleitores, em seus discursos, que tenham atenção com o voto, sugerindo a defesa do voto no kirchnerismo. 

Novaro: Acho que não se pode descartar que ela participará da transição e tendo o apoio peronista pode até digamos ‘negociar’ certa impunidade com os problemas que tem na justiça. Problemas judiciais dela e da família. E ela terá muito para contar no momento adequado.

Clarín: A presidente nega as acusações.

Novaro: Sim nega, mas os problemas existem e envolvem a família Kirchner, como recursos de obras públicas e outros. Na verdade acho que a grande pergunta é se Cristina será lembrada como uma grande Juan Domingo Perón [presidente de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974], que foi lembrado pelo que fez nos três primeiros anos de gestão, quando fez coisas positivas, mas acabou sendo recordado como se tivesse feito todo o seu período de bonança, o que é falso.

Clarín: A presidente já divulgou nas redes sociais uma foto dela como fez Evita e costuma citar a política, que foi casada com Perón.

Novaro: Sim, já se começou a construir a recordação. Uma distorção da memória do que de fato ocorreu. Mas não sei se vão conseguir ou não deixar a imagem que desejam, a de que tudo foi sempre uma maravilha.