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Nos EUA, protestos de hoje combatem legado de leis racistas do passado

Marcelo Freire

Do UOL, em São Paulo

03/06/2015 06h00

Em 28 de agosto de 1963, cerca de 250 mil pessoas marcharam em Washington pelo fim da segregação racial e clamaram para que os negros americanos tivessem os mesmos direitos civis e econômicos que os brancos nos Estados Unidos. Naquele dia, Martin Luther King proferiu o famoso discurso “eu tenho um sonho”, considerado um marco mundial no combate ao racismo.

Mais de 50 anos depois, as ruas norte-americanas ainda são tomadas pela luta contra o preconceito sofrido pelos negros. Agora, no entanto, o foco não está mais na extinção de leis que efetivamente ofereciam tratamento segregado a seus cidadãos pela cor da pele –o que em teoria foi consolidado com a promulgação do Ato de Direitos Civis de 1964–, mas sim na herança do racismo legalizado.

O estopim acabou sendo a violência policial. Mais de dez casos de jovens negros desarmados mortos por policiais majoritariamente brancos no último ano geraram manifestações pacíficas e protestos tumultuados –como ocorreram nas cidades de Ferguson e Baltimore após os assassinatos de Michael Brown e Freddie Gray, respectivamente. O movimento “Black Lives Matter” (“A Vida dos Negros É Importante”) transformou essas três palavras no novo lema de combate antirracista nos Estados Unidos.

“Os grupos atuais tratam o que o movimento dos direitos civis não conseguiu extinguir. Esse movimento precisava lutar contra o apartheid que existia no sul do país, encerrar formalmente a segregação e, por fim, abrir caminho para a integração total dos negros. Mas essa última parte não aconteceu, apesar dos grandes avanços na legislação. Os bairros ainda estão segregados. A discriminação e a disparidade econômica e social entre negros e brancos continuam”, diz Jamil Dakwar, diretor da União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês).

Para Thomas F. Jackson, professor da Universidade da Carolina do Norte e autor do livro “From Civil Rights to Human Rights: Martin Luther King, Jr. and the Struggle for Economic Justice” (Dos direitos civis aos direitos humanos: Martin Luther King Jr. e a luta por justiça econômica, sem tradução para o português), os beneficiados pelas leis de segregação racial encontraram, no passado, “maneiras legais de perpetuá-las”.

“O legado do racismo está em práticas como, por exemplo, excluir negros de vizinhanças brancas. Na era atual, com muitas perdas de emprego, negros e outras minorias ficaram ainda mais isolados na pobreza.” Segundo ele, o aumento excessivo de prisões após a eliminação das leis de segregação também fez crescer a hostilidade e a desconfiança das comunidades pobres com relação à polícia. “Esse conflito já existia na época em que a polícia reprima direitos básicos dos negros, como votar e se reunir, especialmente no sul. Isso ajuda a explicar por que o sistema jurídico-criminal não parece muito mais justo do que 50 anos atrás”, indica.

Phillip Agnew, ativista do movimento social “Dream Defenders” (defensores do sonho), participou do 14º Colóquio Internacional de Direitos Humanos, no fim de maio, em São Paulo, por videoconferência, e resumiu o sentimento de injustiça que motiva os manifestantes. “Na história do nosso país, a vida dos negros sempre teve menos valor que a dos outros. Com o ‘Black Lives Matter’, estamos mostrando que os negros americanos e de outros países não permanecerão quietos enquanto são explorados. O ‘Black Lives Matter’ também levanta uma questão que não tem sido discutida em 40 anos: o papel da polícia no país. Policiais atuam acima da lei, fazendo coisas que poriam eu e você na cadeia se fizéssemos.”

"Obama é exceção"

A primeira associação que pode vir à cabeça sobre os direitos que os negros conquistaram nos Estados Unidos ao longo dos anos é Barack Obama. Mas a presença de Obama na Casa Branca está longe de representar que a desigualdade racial no país diminuiu efetivamente, segundo os especialistas ouvidos pelo UOL.

“O desenvolvimento econômico beneficiou alguns negros, mas são feitos individuais, não coletivos. Sim, há um presidente negro, mas ele é exceção. Como são exceções os únicos dois senadores americanos negros [em um universo de 100 congressistas]”, diz Jamil Dakwar. “Um presidente americano negro pode gerar a impressão de que os Estados Unidos não têm mais problemas raciais. Alguns falam: ‘Querem o que mais? Já atingiram o mais alto posto’. Isso é um obstáculo para instituir novas políticas de igualdade”, completa.

A integração dos negros e outras minorias no mercado de trabalho inclui o ingresso na própria polícia, alvo de críticas generalizadas pela violência e também pela crescente militarização nos últimos anos –brecada, parcialmente, pelo próprio Obama, que no último dia 18 restringiu o uso de armamentos pesados pelas polícias locais. Dentro desse contexto, três dos seis policiais indiciados pela morte de Freddie Gray em Baltimore são negros, outra questão que poderia ser levantada por quem questiona os protestos.

“Nessas posições militares e de forças de segurança interna, muitos negros também assumem essa postura de controle, de ‘estou fazendo meu trabalho’”, afirma Thomas Jackson. “O principal problema da violência policial é ligado à segregação de uma classe de pessoas. E você pode até contratar negros para reforçar isso, porque eles também precisam de emprego. Além de tudo, o racismo ainda está na mente da polícia branca que mata.”

“Quando alguém entra na polícia, já aceita essa cultura de defender seus colegas a qualquer custo, uma sensação de impunidade, de acima da lei. É algo que precisa ser revisto, assim como os protocolos para uso de força”, declara Jamil Dakwar. “Policiais violentos também são de minorias, porque as circunstâncias que eles enfrentam são as mesmas. Essa cultura policial é muito influenciada pelo Exército, desde os símbolos até os protocolos –como o uso excessivo da força e o tratamento da comunidade como inimiga”, conclui.