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Milícias iraquianas treinam jovens adolescentes para enfrentar a ameaça do EI

Voluntários iraquianos com Forças de Mobilização Popular treinam em Bagdá, no Iraque. A mílica está treinando crianças e jovens com menos de 18 anos para lutar contra o Estado Islâmico - Vivian Salama/AP
Voluntários iraquianos com Forças de Mobilização Popular treinam em Bagdá, no Iraque. A mílica está treinando crianças e jovens com menos de 18 anos para lutar contra o Estado Islâmico Imagem: Vivian Salama/AP

Vivian Salama e Qassim Abdul-Zahra

Em Badgá (Iraque)

29/07/2015 06h00

Um tranquilo bairro xiita de classe média no oeste de Bagdá foi transformado recentemente em um minicampo de treinamento para adolescentes combaterem o grupo Estado Islâmico (EI).

Os meninos e homens jovens xiitas, alguns com apenas 15 anos, corriam por suas ruas normalmente pacatas realizando exercícios de guerra urbana, já que as batalhas mais duras contra os extremistas sunitas provavelmente envolverão combates nas ruas. Eles eram ensinados a segurar, controlar e mirar armas leves, apesar de não as dispararem.

Esses combatentes jovens podem ter sérias implicações para a coalizão liderada pelos Estados Unidos, que fornece bilhões de dólares em ajuda militar e econômica ao governo iraquiano. A Lei de Prevenção de Crianças Soldados de 2008 diz que os Estados Unidos não podem fornecer certas formas de apoio militar, incluindo financiamento militar estrangeiro e vendas comerciais diretas a governos que recrutam e usam crianças soldados ou apoiam milícias e paramilitares que o façam.

Centenas de estudantes passaram por treinamento em dezenas desses campos de verão em Bagdá, Basra e outras cidades, dirigidos pelas Forças de Mobilização Popular, o grupo apoiado pelo governo que engloba a maioria das milícias xiitas. Os campos foram criados depois que o mais alto clérigo xiita do país emitiu um édito convocando estudantes, até mesmo do ensino médio e básico, a usarem suas férias escolares para se prepararem para o combate caso seja necessário.

É impossível dizer quantos partiram para enfrentar o EI, já que aqueles que partem o fazem por conta própria. Mas neste ano, a "Associated Press" viu mais de uma dezena de meninos armados na linha de frente na província de Anbar, no oeste, incluindo alguns com apenas 10 anos. As Forças de Mobilização Popular dizem que o treinamento é apenas uma precaução, e que não emprega menores em combate, e o governo diz que combatentes menores de idade são casos isolados.

Dos cerca de 200 cadetes em uma classe de treinamento visitada pela "AP" neste mês, cerca da metade era menor de 18 anos. Vários disseram que pretendem se juntar aos seus pais e irmãos mais velhos nas linhas de frente.

Um menino de 15 anos na classe, Jaafar Osama, disse que desejava ser engenheiro quando crescesse, mas agora deseja ser um combatente. Seu pai é um voluntário combatendo ao lado das milícias xiitas em Anbar, e seu irmão mais velho está combatendo em Beiji, no norte de Bagdá.

"Deus permita que, quando completar meu treinamento, eu possa me juntar a eles, mesmo que isso signifique sacrificar minha vida para manter o Iraque seguro", ele disse.

Voluntários iraquianos com Forças de Mobilização Popular treinam em Bagdá, no Iraque. A mílica está treinando crianças e jovens com menos de 18 anos para lugar contra o Estado Islâmico - Vivian Salama/AP - Vivian Salama/AP
Imagem: Vivian Salama/AP

É outra forma de os menores serem arrastados para a guerra brutal no Iraque enquanto militares, milícias xiitas, tribos sunitas e combatentes curdos lutam para retomar o território tomado pelos militantes do Estado Islâmico em grande parte do norte e do oeste no ano passado. Os extremistas sunitas estão alistando agressivamente crianças de até 10 anos para o combate, como homens-bomba e como executores em seus vídeos horríveis. Neste mês, a Human Rights Watch disse que as milícias curdas sírias que combatem os militantes continuarão empregando combatentes menores de idade.

Os Estados Unidos não trabalham diretamente com as Forças de Mobilização Popular e se distanciaram das milícias apoiadas pelos iranianos, que estão entre os combatentes que elas englobam. Mas as Forças recebem armas e financiamento do governo iraquiano e são treinadas pelos militares iraquianos, que, por sua vez, recebem seu treinamento dos Estados Unidos.

Quando informada sobre as constatações da "AP", a embaixada americana em Bagdá emitiu uma declaração dizendo que os Estados Unidos estão "muito preocupados com as alegações de uso de crianças soldados no Iraque entre algumas forças de Mobilização Popular no combate ao EI. Nós condenamos fortemente essa prática ao todo o mundo e continuaremos a fazê-lo".

Há poucas semanas, nas linhas de frente onde milícias xiitas combatiam o Estado Islâmico na província de Anbar, moradores de Bagdá como Hussein Ali, 12, e seu primo Ali Ahsan, 14, disseram à "AP" que se juntaram aos seus pais no campo de batalha depois que concluíram suas provas finais. Empunhando fuzis AK-47, eles andavam pelo deserto de Anbar, ostentando sua determinação em libertar a província predominantemente sunita dos militantes do Estado Islâmico.

"É uma honra servir nosso país", disse Hussein Ali, acrescentando que alguns de seus colegas de escola também estavam combatendo. Quando perguntado se estava com medo, ele sorriu e disse que não.

No ano passado, quando o Estado Islâmico tomou a cidade de Mosul, no norte, avançou até as portas de Bagdá e ameaçou destruir os locais sagrados xiitas, o mais alto clérigo xiita do Iraque, o aiatolá Ali al-Sistani, convocou o público a se apresentar como voluntário para lutar. Sua influência foi tão grande que centenas de milhares de homens se apresentaram para se juntar às Forças de Mobilização Popular formadas às pressas, juntamente com algumas milícias xiitas há muito estabelecidas, a maioria das quais recebedoras de apoio do Irã.

Então, em 9 de junho, ao término do ano letivo, Al-Sistani emitiu uma nova fatwa convocando os jovens na faculdade, no ensino médio e até no básico a usarem suas férias de verão para "contribuírem para a preservação do país, treinando para tomarem armas e se prepararem para rechaçar o risco, caso seja necessário".

Um  porta-voz das Forças de Mobilização Popular, Kareem al-Nouri, disse que os campos "ensinam autodefesa" e os voluntários menores de idade devem retornar à escola em setembro, não irem para a frente de batalha.

Um porta-voz do gabinete do primeiro-ministro do Iraque repetiu isso. Pode haver "alguns incidentes isolados" de combatentes menores de idade se juntando ao combate por conta própria, disse Saad al-Harithi à "AP". "Mas não houve instrução pelo Marjaiyah (a mais alta autoridade religiosa xiita) ou pelas Forças de Mobilização Popular para que crianças se juntassem ao combate."

"Somos um governo que desaprova crianças irem à guerra", ele disse.

Mas a linha entre treinamento para combate e se juntar de fato ao combate é fragilmente fiscalizada pelas Forças de Mobilização Popular. Ela engloba múltiplas milícias, com combatentes leais a diferentes líderes que, com frequência, agem de modo independente.

Donatella Rovera, uma conselheira sênior de resposta a crise da Anistia Internacional, disse que se milícias xiitas estiverem usando crianças como combatentes, "então os países que as apoiam estarão violando a Convenção das Nações Unidas" de Direitos da Criança.

"Se você apoia o exército iraquiano, então, por extensão, você apoia" as Forças de Mobilização Popular, ela disse.

A convenção da ONU não proíbe dar treinamento militar para menores. Mas Jo Becker, a diretora de defesa da divisão de direitos da criança da Human Rights Watch, disse que isso coloca as crianças em risco.

"Os governos gostam de dizer: 'É claro, nós podemos recrutar sem colocar crianças em risco', mas em um lugar de conflito, essas paisagens podem se misturar rapidamente", ela disse.