Topo

Deixar Nova Orleans durante o Katrina parecia covardia, diz sobrevivente

Taylor em seu anuário escolar, pouco tempo após voltar a escola após o Katrina - Arquivo pessoal
Taylor em seu anuário escolar, pouco tempo após voltar a escola após o Katrina Imagem: Arquivo pessoal

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

28/08/2015 09h32

Taylor Mickal tinha 14 anos quando a cidade de Nova Orleans (EUA) foi atingida pelo Katrina. Para quem vivia na cidade, como a família dele e milhares de pessoas, era apenas mais uma das várias tempestades enfrentadas todos os anos.

O furacão atingiu Nova Orleans com ventos que chegaram a 280 km/h e nem mesmo os diques que protegiam a cidade resistiram – pelo menos 80% da cidade foi inundada. Ninguém imaginava que seria o maior desastre natural da história dos Estados Unidos, com quase 2.000 mortos, mais de 100 mil casas destruídas e ao menos US$ 180 bilhões em prejuízos. Em depoimento ao UOL, Taylor conta que, como milhares de pessoas, sua família também optou por permanecer na cidade.

A família dele quase teve a casa atingida por árvores, e só deixou Nova Orleans quando percebeu que permaneceria sem luz e alimento por semanas. Em uma outra cidade, o adolescente trabalhou como voluntário ajudando pessoas que perderam tudo na passagem do furacão. No retorno, testemunhou destruição e um silêncio perturbador nas ruas.

Leia abaixo o relato:


"O furacão Katrina atingiu Nova Orleans no meu primeiro ano do colegial, poucos meses depois do meu aniversário de 14 anos. Eu vivia com a minha mãe, pai e duas irmãs mais novas ao norte do Lago Pontchartrain, numa região que não foi atingida pelas enchentes.

Como muitas tempestades e furacões já tinham atingido a área em que vivemos por muitos anos, não vimos razão para pensar que o Katrina seria excepcionalmente devastador. Houve outras tempestades que ameaçaram nossa casa antes, mas nunca ameaçadoras o suficiente para obrigar as pessoas a deixarem suas casas. Decidimos ficar. Parecia covardia sair de casa. Eu me sentia capaz e forte o suficiente para cuidar de mim e ajudar os outros, por isso sair nunca foi uma opção.

Reunimos alguns suprimentos de emergência em poucos dias, e nos preparamos para a tempestade. Foi absolutamente torrencial. Não tínhamos muita rotina. Era só esperar passar a chuva. Em casa, o clima era de muito silêncio, com algumas passadas pelas janelas para ver se o tempo havia melhorado. Apenas tentávamos dormir e racionar as porções de comida e água. Nossa única fonte de distração era um rádio a pilha. Em um determinado momento, durante a passagem do Katrina, nos trancamos todos em um banheiro que ficava no centro da casa –era o lugar em que estaríamos mais protegidos do furacão.

Árvores arrancadas no Katrina - Jim Watson/AFP - 31.ago.2005 - Jim Watson/AFP - 31.ago.2005
Imagem aérea mostra árvores arrancadas em um dos bairros atingidos pelo Katrina
Imagem: Jim Watson/AFP - 31.ago.2005
A coisa mais assustadora para mim eram as árvores. Existia um bosque no outro lado da rua, a poucos metros de nossa casa, com árvores muito altas. Todas elas praticamente foram arrancadas do solo e só não atingiram as casas por causa da direção do vento. Nesse momento, percebemos que ficar em casa durante o Katrina foi um grande erro.

Depois que a tempestade perdeu força, ficamos sem eletricidade por muitas horas, e não tínhamos nada além do rádio a pilha para saber o que acontecia fora de casa. No dia seguinte, era possível ouvir os barulhos das motosserras –os vizinhos tomaram a iniciativa de cortar as árvores para tentar liberar as ruas bloqueadas.

Um policial bateu na nossa porta e nos disse que as ruas já estavam transitáveis se quiséssemos sair. Estávamos ouvindo o rádio, e diziam que a eletricidade não seria restaurada nas próximas semanas. Finalmente, ouvintes conseguiram entrar em contato com as emissoras de rádio. Eles pareciam confusos e histéricos, afirmando que as águas das enchentes não baixavam, pelo contrário, só aumentavam, mesmo após a passagem do furacão. Ninguém conseguia entender de onde vinha a água.

Muitas famílias estavam presas nos sótãos das casas e com muito medo. Muitas dessas pessoas não sobreviveram. Foi nesse momento em que decidimos abandonar a região. Pegamos tudo o que foi possível, entramos no carro e seguimos na direção norte.

A fuga

Tínhamos parentes na cidade de Lafayette, a uns 200 km de Nova Orleans. A cidade não foi atingida tão agressivamente pelo Katrina. Eles viviam em uma casa muito boa. Fiquei lá enquanto meus pais dormiam no quarto de hóspedes de um dos vizinhos.

Em Lafayette, tive a oportunidade de ajudar e ser voluntário. Foi emocionante. Eu estava muito ansioso para fazer algo. Sempre fui assim, não conseguia ficar parado, precisava sempre estar fazendo algo. Quando cheguei no Cajun Dome, a grande arena esportiva da cidade, onde as pessoas foram abrigadas, a maioria famílias que fugiram de Nova Orleans, fiquei chocado com o número de pessoas que tinham sido afetadas e perdido tudo.

Voluntários durante o Katrina - AP Photo/Charlie Riedel - 28.set.2005 - AP Photo/Charlie Riedel - 28.set.2005
Voluntários trabalham em Nova Orleans um mês após a passagem do Katrina
Imagem: AP Photo/Charlie Riedel - 28.set.2005
Fui colocado imediatamente para trabalhar. Ajudei a levar comida e a instalar pessoas, distrubuí água e cobertores. Ajudei até a carregar os leitos de um hospital para uma área do Cajun Dome.

Enquanto movia alguns leitos de uma área do prédio para a outra, me lembro de um homem idoso que me ajudou – tínhamos uma espécie de acordo tácito de trabalhar juntos, ele era muito prestativo e bondoso com todos. Em um determinado momento, uma mulher o parou e perguntou se ele tinha notícias de sua família. Lembro que ele respondeu que tinha perdido quase todos os parentes. Os dois começaram a chorar, e fiquei completamente surpreso com tudo aquilo. Saber que aquele homem tinha perdido sua mulher e seus dois filhos no Katrina me destruiu. Nunca esquecerei aquele homem e a sua perda.

Felizmente não perdi nenhum ente querido. Era o meu maior medo. Em um tempo em que telefones celulares não eram grande coisa e muitos viviam dispersos, sempre existia o risco de que algo pudesse ter acontecido e não ficássemos sabendo.

Um silêncio assustador

Voltamos para casa depois de algumas semanas. Lembro de voltar para a cidade e dar de cara com a devastação, com o que aquilo realmente tinha virado. Era irreconhecível. Era um silêncio assustador. Não há palavras para descrever o que aconteceu em Nova Orleans, ou o que aquilo significaria para o futuro da cidade.

Voltei a estudar assim que retornamos para casa. Cheguei a frequentar a escola em Lafayette. As coisas em Nova Orleans foram retomadas de forma muito lenta. Todos perceberam que tudo seria muito diferente dali para frente. Não era como uma tempestade em que você volta, compartilha suas histórias e todos riem do que aconteceu. Era uma realidade totalmente ensurdecedora, do tipo que você não quer lidar com idade alguma. Muito menos aos 14.

Turistas caminham em Nova Orleans - LEE CELANO/AFP - LEE CELANO/AFP
Turistas caminham em Nova Orleans em 2015, dez anos após o Katrina
Imagem: LEE CELANO/AFP
A reconstrução da cidade em si foi rápida. Muitas pessoas vinham de todo o país para ajudar nos trabalhos de construção e reparos da cidade. Alguns tinham o interesse genuíno de ajudar, dar uma mão, outros queriam apenas capitalizar sobre o desastre e lucrar de alguma forma. Ao fim, a cidade foi reconstruída, apesar do fato de que, anos depois, as pessoas ainda chegam em Nova Orleans perguntando se a enchente permanece.

Quando entrei para a Marinha, deixei quase tudo e todos para trás e me mudei para San Clemente, na Califórnia. Meu pai ainda vive em Nova Orleans, e minha mãe mora na Virginia. Tenho contato com poucas pessoas. Nova Orleans nunca foi um lugar excelente para viver. É uma cidade famosa por sua falta de segurança, calor e umidade, sistema educacional precário e péssimos políticos. Nunca tive a intenção de ficar lá e há muito ansiava por explorar o mundo ao meu redor. As únicas coisas das quais tenho saudade de Nova Orleans são dos meus poucos amigos e da comida, que acho a melhor do mundo. O Katrina em si não foi um fator que me fez deixar a cidade. É só uma memória horrível."