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ONG brasileira resgata famílias refugiadas de países em conflito

Gabriela Fujita

Do UOL, em São Paulo

24/09/2015 06h00

O pai, já residente em São Paulo, espera ansioso pela mulher e os filhos, que estão por desembarcar no aeroporto internacional. A angústia é partilhada com um voluntário da ONG brasileira IKMR (sigla em inglês para ‘Eu Conheço Meus Direitos’), que comprou as passagens aéreas e também está lá para receber a família.

Neste último ano, foi exatamente assim como aconteceu a chegada ao Brasil de 14 crianças refugiadas. Com ajuda da ONG, famílias do Egito, do Congo, da Colômbia e principalmente da Síria puderam se recompor e pedir refúgio.

Criada há três anos pela mineira Vivianne Reis, 35, a entidade sem fins lucrativos tem por objetivo ajudar na adaptação de refugiados no Brasil, e em 2014 começou a financiar viagens até aqui de crianças que estão em locais de grande risco à sua segurança.

“Elas presenciam muitas tragédias, chegam muito traumatizadas. Se elas recebem o básico para viver e não recebem atendimento emocional, essa é uma forma de devolver a humanidade para essas pessoas, que se perde nesse processo [de refúgio]”, diz Reis.

Desde setembro do ano passado, a IKMR passou a custear passagens aéreas para as famílias de menores de idade em áreas de conflito. O pedido de apoio vem pelo Acnur, a agência da ONU para refugiados, ou pela Cáritas, organização humanitária ligada à Igreja Católica, que indicam refugiados aqui que deixaram família no país natal.

Normalmente, os homens vêm primeiro para identificar se é possível fazer uma nova vida no Brasil, mas nem sempre conseguem juntar dinheiro suficiente para trazer a família na sequência.

Quem fica para trás está à mercê da guerra civil, de perseguições étnicas e religiosas, da crise humanitária. Quem já está no exterior vive a espera angustiada de um dia poder resgatar os parentes apartados.

Dois fatores fazem do Brasil um destino viável para os imigrantes, apesar da longa distância entre a América do Sul e suas regiões de origem (Oriente Médio e África, principalmente):

  • Líbano e Jordânia, países vizinhos à Síria (em guerra civil há quatro anos), vêm abrigando milhares fugindo do conflito sangrento entre dissidentes e o governo de Bashar al-Assad, e mais recentemente dos ataques cruéis promovidos pela facção radical Estado Islâmico. Com uma superpopulação de refugiados, as fronteiras ali foram fechadas.
  • o Brasil concede visto especial para sírios buscando refúgio. Assim, é possível fazer a requisição estando em território brasileiro. No dia 21 de setembro, o Conare (Comitê Nacional para Refugiados) anunciou a prorrogação por mais dois anos das concessões desse tipo de visto.

Somente entre janeiro e agosto de 2015, a IKMR conseguiu trazer quatro famílias sírias com 15 membros, dos quais dez crianças menores de 12 anos, que estavam na Jordânia e no Líbano.

“Nossa preferência é que a indicação venha pelo Acnur ou uma agência deles. Fazemos checagens para não correr o risco de ser tráfico de humanos ou golpe”, explica Reis, que mantém contato frequente com os imigrantes no Brasil.

Desde que começou suas atividades, a IKMR cadastrou para atendimento 230 crianças em São Paulo (a maioria) e Rio de Janeiro. E também recebem auxílio famílias em Porto Alegre, Brasília e Manaus.

“Os recursos são limitados para todos que ajudam os refugiados, mas o atendimento pelo lado emocional não havia“, diz Reis sobre o motivo para criar a ONG.

“Se tivéssemos dinheiro, não pediríamos ajuda”

A família do sírio Kamal Daqa, 34, passou pela difícil decisão de deixar tudo para trás em nome da sobrevivência. Ele saiu de Damasco (capital da Síria) em 2012, com a mulher e dois filhos. “No dia seguinte, me disseram que o prédio onde eu morava tinha sido bombardeado. Se tivéssemos ficado, nós teríamos morrido”, ele contou à reportagem do UOL.

Antes de vir ao Brasil, Kamal e sua família passaram pelo Egito e, há cerca de dez meses, seu irmão mais velho, Khalid Daqa, 39, decidiu seguir o mesmo rumo.

Khalid, a mulher e seus três filhos estavam vivendo no campo para refugiados Zaatari, na Jordânia, quando a situação ficou “muito ruim” e o sírio resolveu partir. “O passaporte dele ia vencer em 15 dias, e a mulher e os filhos não tinham esse documento. Ele veio para não perder a chance”, explica Kamal.

No Brasil há um ano e sete meses, Kamal recebeu o irmão em São Paulo e tentou ajuda-lo a trazer o restante da família. A parte da documentação e do visto foram se resolvendo, mas ainda faltava comprar as passagens.

Em contato com a IKMR, eles conseguiram as passagens para as duas filhas mais novas de Khalid, uma com 12 anos e a outra com apenas 10 meses de idade (a bebê nasceu no campo para refugiados na Jordânia). Os valores para a viagem da mãe das crianças e do filho mais velho, com 15 anos, foram arrecadados em uma ‘vaquinha’ com amigos brasileiros.

No dia 25 de janeiro de 2015, Khalid e Kamal conseguiram se reencontrar com os parentes. “Se nós tivéssemos dinheiro, não pediríamos ajuda. Esta era nossa única chance”, diz Kamal. 

Cura emocional

Reunidas a seus pais, as crianças são incentivadas a participar de atividades culturais e de reintegração para terem contato com a "cura emocional", termo usado por Reis para definir o resultado que a ONG busca alcançar em seu trabalho.

Uma vez por mês, são organizados passeios a parques de diversão, museus, circos e teatros, e a entidade tem um coro infantil formado só por crianças refugiadas, em parceria com o Museu da Imigração do Estado de São Paulo.

“Já recebi crianças aqui apáticas, que não se comunicavam, não brincavam. Elas têm um desejo de voltar a ser quem eram, são extremamente carinhosas, a maioria tinha uma boa vida onde estava. Elas vão para uma realidade muito diferente da que tiveram”, diz.

Construir uma referência positiva sobre a vida no exílio é tão importante quanto divertir-se, e essa possibilidade de recuperação acaba sendo estendida aos pais. Isso porque, na rotina de uma família refugiada, enquanto o marido trabalha, a mulher, sem falar português, passa todo o tempo em casa cuidando das crianças e acaba excluída da reintegração.

Em São Paulo, a ONG tem suporte de uma equipe de 50 voluntários, mas financeiramente ainda não há como contratar, por exemplo, profissionais habilitados a fazer um resgate especializado com os refugiados.

“O trauma, às vezes, é manifestado do nada”, diz Reis, que já presenciou crianças em pânico ao verem facas na mesa, durante um almoço, e falando de bombas explodindo nos lugares de onde vieram.

“O que a gente faz é ouvir a criança e a família, mas não temos preparação para isso, para o atendimento psicológico, a gente não mexe nessas feridas. Vamos vivendo o presente para fazer essa nova realidade o mais confortável possível.”

Campanha x dólar caro

A IKMR é mantida exclusivamente por doações de cerca de 40 doadores, que correspondem a uma renda mensal entre R$ 1.500 e R$ 4.000, que banca a compra de cestas básicas e outros suprimentos de que as famílias precisem (leite e fraldas para bebês, pagamento de contas residenciais etc.).

Para comprar as passagens aéreas, são feitas campanhas de arrecadação nas redes sociais e também jantares beneficentes. Neste momento, a ONG tenta levantar fundos para trazer ao Brasil duas famílias de Kinshasa, na República Democrática do Congo, onde mulheres e crianças são vítimas de estupro na guerra civil motivada por razões étnicas e econômicas.

“A gente precisa de R$ 17 mil para comprar as passagens. Começamos a campanha no dia 1º de agosto e temos R$ 13 mil até agora. Antes, em 15 dias a gente conseguia levantar o dinheiro. A crise refletiu nas doações neste ano, por causa do alto valor do dólar.”

Com o real mais baixo, dobraram os gastos: de acordo com Reis, trazer quatro pessoas da Jordânia custava R$ 6.000 em janeiro deste ano. No mês de agosto, o valor para trazer três pessoas já estava em R$ 12 mil.

Enquanto não resolve o caso das duas famílias africanas em Kinshasa, a ONG tem na "fila de espera" dois pedidos de ajuda na Costa do Marfim e outros dois na Síria (15 crianças e 18 adultos).

“Quatro pessoas foi o máximo que a gente trouxe de uma vez só. Não sei muito bem como vou atender [esta situação na Síria], a gente nunca diz não.”

Diferenças culturais e preconceito

A primeira barreira enfrentada por um refugiado é conseguir deixar seu país: é preciso ter dinheiro e, antes de tudo, é uma questão de vida ou morte. A segunda dificuldade é adaptar-se ao lugar onde a vida será reconstruída.

“Nossa cultura é muito diferente da deles”, diz a fundadora da IKMR. “Tem essa devastação emocional, o preconceito: se você é árabe, é terrorista; se você usa véu, você é uma mulher submissa, você não é respeitada.”

Situações de xenofobia, exploração e maus tratos são recorrentes, como têm relatado refugiados no mundo todo. A ONG busca ajudá-los, no Brasil, a enfrentar e superar o que são causas da insensibilidade e do desconhecimento sobre o que vieram fazer aqui.

“Se você fugiu, você fez alguma coisa errada”, diz Reis sobre a primeira impressão que se tem de um refugiado. “A maioria das pessoas não sabe o que é refúgio, não sabe por que eles estão aqui.”