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Revistas independentes driblam o monopólio estatal e a censura da imprensa em Cuba

Reprodução/Play-Off
Imagem: Reprodução/Play-Off

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

28/09/2016 06h00

Os cubanos já não dependem exclusivamente do governo como fonte de informação. Uma série de revistas independentes desafiam o monopólio do controle estatal da imprensa e proporcionam um ponto de vista diferente do oferecido pela mídia controlada pelo governo aos cubanos e ao resto do mundo, burlando a censura presente no país.

Para alguns cubanos, como Pedro Enrique Rodriguez, 30, a ideia de criar uma publicação foi justamente para preencher o vazio informativo deixado pela imprensa oficial.

"Em Cuba, todos os meios do Estado mostram uma cara triunfal e distorcida da realidade do esporte e dos esportistas cubanos. Queríamos mostrar que tudo era muito diferente", disse em entrevista ao UOL o criador da revista Play-Off, voltada para a cobertura esportiva.

Pedro - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Pedro Enrique Rodriguez Uz, criador da Play-Off
Imagem: Arquivo pessoal
A Play-Off é uma publicação mensal e está em seu segundo ano de publicação. Ela é feita em Havana, mas está registrada na Espanha e conta com uma equipe de oito pessoas, entre elas diagramadores, fotógrafos, editores e assistentes. Rodriguez diz que ele jamais pensou em conseguir um meio formal junto ao governo cubano para legalizar sua revista –o que não aconteceria.

"O tempo em que os cubanos pediam permissão para o governo já terminou."

O curioso é que, como o governo tem a exclusividade da cobertura dos jogos e eventos esportivos, os próprios fotógrafos e jornalistas do governo acabam prestando serviço como freelancers para a publicação independente –muitos desses profissionais de imprensa já trabalham informalmente para agências de notícias internacionais.

Mulher vende edição do Granma - Alexandre Meneghini/Reuters - Alexandre Meneghini/Reuters
Mulher vende edição do Granma em Havana
Imagem: Alexandre Meneghini/Reuters
Enquanto produtos da imprensa nacional, como o jornal diário "Granma", são vendidos em algumas lojas privadas e até nas mãos dos ambulantes nas ruas das cidades do país (principalmente por idosos), a Play-Off não é impressa. Ela é distribuída por meio do "paquete semanal" (pacote semanal, um sistema de pendrive semelhante a uma Netflix offline com filmes, novelas e revistas).

A revista paga mensalmente 15 CUC (US$ 15, cerca de R$ 49) para entrar no catálogo do "paquete" no formato PDF, garantindo assim a sua distribuição para todo o país. Como o sistema de venda de conteúdo no pendrive é completamente ilegal e incontrolável, é impossível saber quantos leitores tem acesso à publicação. A revista está disponível ainda na internet, mas como o acesso na ilha ainda é muito caro, o site ainda é um meio secundário de acesso.

Questionado sobre o medo de serem flagrados pelo Estado e terem a circulação proibida, Rodriguez diz que o medo sempre está presente em todos os negócios não-estatais, e este medo é muito maior no caso dele e de sua equipe, já que são um meio de imprensa que fala sobre a realidade dos esportistas cubanos. "Não somos um meio credencial porque não convém ao governo", afirma.

Outra novidade é a forma como a revista se banca: publicidade privada –em um país comunista. Alguns estabelecimentos comerciais não-estatais pagam para colocar os anúncios na edição da revista. Mas, como a publicidade ainda é quase inexistente em Cuba, este é um setor que engatinha.

"A maioria dos negócios em Cuba ainda não sabe a importância da publicidade. É uma área totalmente inexplorada no país", explica Rodriguez. Entre os anunciantes das revistas independentes, aparecem bares, restaurantes e até uma ONG de proteção aos animais.

Outra publicação independente que segue o mesmo modelo é a Vistar, voltada para a cobertura de temas culturais, música e entretenimento. Ainda que seja produzida em Havana, é uma revista registrada na República Dominicana –por isso, sua existência é reconhecida legalmente.

vistar - Alexandre Meneghini/Reuters - Alexandre Meneghini/Reuters
Robin Pedraja (dir.), criador da Vistar, no escritório de Havana
Imagem: Alexandre Meneghini/Reuters

Com uma equipe um pouco maior, a Vistar é distribuída da mesma forma –pelo "paquete" e online. Mas afirma que são feitos, em média, 50 mil downloads de cada edição. Ela também diz que seu lucro vem da renda de publicidade, e tem até mesmo propagandas internacionais e de grandes marcas, como da cerveja mexicana Sol e de companhias aéreas.

A Vistar faz ainda um trabalho de interação e engajamento com o leitor cubano, incentivando a participação com o envio de fotografias e opiniões.

Para compreender o atual funcionamento da imprensa cubana, é preciso entender que na revolução, em 1959, quase toda a economia foi estatizada, incluindo a imprensa, durante a transição da sociedade e da economia para o socialismo. Até hoje, jornais e revistas permitidas no país estão vinculados financeiramente ao Estado, que mantém todo o controle político e ideológico.

Jornalistas, fotógrafos e todos que fazem parte da cadeia de produção e publicação são funcionários estatais, não importa se o jornal é nacional ou regional. Isto inclui também os canais de TV –entre os poucos canais estrangeiros, aparecem emissoras venezuelanas. As novelas brasileiras, famosas em Cuba, são exibidas em canais estatais.

O surgimento de veículos de comunicação independentes não é uma novidade. Diversas tentativas foram realizadas durante as últimas décadas. A historiadora Silvia Miskulin, especialista em imprensa cubana, explica que conforme a revolução foi se institucionalizando, sobretudo nos anos 70, o espaço para publicação independentes, consideradas contrarrevolucionárias, ficou praticamente inexistente.

"Foi um período de maior controle intelectual, cultural e da imprensa", conta Silvia.

Como acessar a internet em Cuba? Procure um grupo com celular na mão

UOL Notícias

Na opinião da especialista, ainda que a internet seja bastante restrita na ilha, ela permite este aumento no número de publicações independentes, dando maior acesso e visibilidade.

"Em períodos em que a crise se acentua, como nesta fase atual da ilha, mais grupos tentam dar voz às suas opiniões dentro do aparato estatal", explica.

Silva ressalta, entretanto, que muitas vezes todo o material produzido precisa ser enviado para fora o exterior para ser publicado online, já que a internet no país é cara, lenta e passa por censura. "Às vezes, o conteúdo está em um site hospedado em outro país justamente para não ser alvo da censura."

Silvia lembra ainda que a própria profissão de jornalista é controlada em Cuba. "Para cursar jornalismo em uma das universidades estatais, a pessoa precisa da autorização da UJC (União da Juventude Comunista, que é ligada ao Partido Comunista Cubano. A UJC pode vetar o ingresso se a pessoa não tem o perfil político ou ideológico, e até se não cumpriu obrigações junto à entidade", diz a historiadora.