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Reunificação ensinou que é possível derrubar "muros" contra refugiados, diz cônsul alemão em SP

Axel Zeidler, cônsul alemão em São Paulo - Consulado Geral da Alemanha
Axel Zeidler, cônsul alemão em São Paulo Imagem: Consulado Geral da Alemanha

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

07/10/2016 06h01

Na semana em que a Alemanha celebra o aniversário da reunificação do país, o cônsul alemão em São Paulo, Axel Zeidler, 58, faz um paralelo entre as lições do processo de integração das duas últimas décadas com a acolhida ao grande número de refugiados no país.

Em entrevista ao UOL, em meio às comemorações realizadas pelo Consulado em SP, o diplomata reconhece que muitas pessoas no país europeu não estão prontas para aceitar essa nova população, mas aposta na compreensão dos que são contra o refúgio aos milhares de estrangeiros que chegaram ao país desde 2014.

"A Alemanha continua a ser a primeira economia, nós não caímos em um poço, tudo está funcionando", afirma.

Zeidler acredita ainda que a ascensão de novos partidos de extrema-direita, como aconteceu nas últimas eleições regionais de setembro, é um processo natural da democracia, mas que os eleitores destes grupos logo perceberão o caráter populista dos discursos políticos. Ele lembra ainda que manifestações racistas e xenófobas são crime no país. "Os refugiados têm todos os direitos dentro da nossa Constituição e também precisam respeitá-la".

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

P: Que balanço positivo e negativo o senhor faz depois de mais de duas décadas da reunificação alemã?

Axel Zeidler: Acho que os alemães, e também os europeus, aproveitaram a queda do muro, a unificação da Alemanha e também da Europa. Não só com a Alemanha liberada da Cortina de Ferro, mas também outros países do Leste Europeu hoje fazem parte da Europa livre. Os alemães também podem falar da melhora da qualidade de vida, não só no território da antiga Alemanha Oriental, mas também na ex-Alemanha Ocidental. Todo mundo se beneficiou com a economia pegando fogo. Sim, passamos por crises, mas ainda hoje a Alemanha é um sucesso, e muitas pessoas querem mesmo morar e trabalhar no país. Isso também é um resultado da reunificação não só da Alemanha, mas também da Europa.

P: Mas como a Alemanha pode avançar para diminuir as desigualdades que permanecem entre as regiões das antigas Alemanhas?

Zeidler: Nós estamos avançando a cada ano. Acho que começamos mais ou menos com uma renda de 50%, 51% na Alemanha oriental em comparação com a Alemanha ocidental. E agora estamos na ordem de quase 90%, levando em conta o nível dos preços e os salários, que dependem de cada setor, dos convênios dos sindicatos com os empregadores. Mas existem setores em que o salário já é 100%. Mas a cada ano temos algum progresso, mesmo com as taxas de desemprego, que também se aproximaram.

Para efeito de comparação, em 2015, os índices de desemprego no território que seria a Alemanha oriental foram muito menores do que na Alemanha ocidental. O Estado com o maior nível de desemprego hoje fica na Alemanha ocidental, acima de 10%, é a cidade-Estado de Bremen. Então podemos dizer que os Estados da Alemanha oriental avançaram bastante.

O mesmo aconteceu com a expectativa de vida, que também avançou bastante na Alemanha oriental e hoje é a mesma da Alemanha ocidental. Há muito progresso em várias áreas. A de infraestrutura teve investimento incrível, de cerca de 1,6 trilhão de euros em 25 anos. Estes investimentos agora dão rendimento. A gente investe, gasta, mas se fazemos um bom investimento, existe o retorno.

Outra área que avançou foi o ensino universitário. Algumas das melhores universidades estão no lado da antiga Alemanha Oriental. As pessoas sabem disso e podem escolher onde morar. Este é o maior  sucesso: a liberdade de escolher onde quer ir, se quer ficar, mudar e até mesmo sair do país. A liberdade é uma maravilha.

refugiados2 - Fabrizio Bensch/Reuters - Fabrizio Bensch/Reuters
10.set.2015 - Imigrante faz selfie com a chanceler alemã do lado de fora do campo de refugiados em Berlim
Imagem: Fabrizio Bensch/Reuters

P: O senhor acha que a oposição a ter de deslocar mais fundos de um setor da população para outro e o medo de piorar a situação econômica estão na base do aumento do sentimento contra os refugiados hoje na Alemanha?

Zeidler: Não acho que isso tenha relação com os refugiados. O investimento todo também ajudou a população a participar no acolhimento dos refugiados. Cerca de 10 milhões de alemães ajudaram pessoalmente a acolher os refugiados recém-chegados com comida, educação, o ensino da língua alemã, roupas, brinquedos para os filhos. Até mesmo nas ruas, muitas pessoas foram ajudar os refugiados.

Mas tem também quem se oponha. Existe a liberdade e você pode escolher: vou ajudar, vou deixar o Estado fazer este trabalho, vou mesmo fazer um protesto porque acho que o refugiado não pode chegar ao meu país. Isso faz parte da liberdade. Cada um pode exprimir o que pensa dentro da Constituição, sem violência. Isto é importante para nós. E a nossa Constituição é bem rígida por causa também do nosso passado. Então a xenofobia e o racismo são proibidos. Isso é perseguição. Tínhamos isto e não temos mais há quase 70 anos. E que bom que não temos mais.

Mas todo mundo deve respeitar o fato de que existe uma liberdade maior, mas há também limitações para não ferir os direitos dos outros. Então racismo e antissemitismo são proibidos na Alemanha.

Os refugiados têm todos os direitos dentro da Constituição, mas eles também devem aceitar que têm limites.

Cada um pode orar da maneira que quer. A Alemanha tem muitos judeus, cristãos, muçulmanos, e já faz muito tempo que temos muçulmanos na Alemanha, já que os turcos que chegaram 50 anos atrás trouxeram a religião. Tem muitos alemães que agora são muçulmanos. Isso faz parte da nossa vida normal. A gente convive sim, briga de forma organizada, tem partidos para manifestar oposição, organizações que representam os interesses de alguns grupos e todo mundo pode fazer isto dentro das regras que são válidas para todos.

P: A Alemanha planeja rever as leis para refugiados para integrá-los à sociedade? Para que eles sejam efetivamente integrados e tenham conta em banco, trabalhem formalmente, de forma que isso não pese para o contribuinte alemão?

Zeidler: Isso é parte do maior trabalho das autoridades. Também temos pessoas que ajudam por meio de ONGs, mas o Estado tenta fazer o maior esforço para acolher esse grande número de pessoas. O primeiro passo é registrá-las, depois checar se realmente se tratam de refugiados ou se são outras pessoas –a nossa Constituição é bem clara sobre os direitos para refugiados por perseguição politica, além das regras definidas pelas convenções internacionais— então temos um direito ainda maior integrado na nossa Constituição. Mas temos limites.

Nem todo mundo que quer pode ficar na Alemanha. Esse processo de identificar quem tem direito ao refúgio é feito pelas autoridades. Depois, eles cuidam das necessidades básicas, como vestuário, alojamento e o aprendizado da língua, que é a forma básica integração, de entrar em contato com a sociedade. Alguns refugiados falam inglês, alguns alemães falam inglês, mas para conviver e ficar mais tempo é preciso o conhecimento da língua. Existe também uma ajuda em dinheiro, mas que também é limitada. Os alemães que não têm renda própria recebem um valor mínimo básico. Assim, ninguém está morrendo de fome ou de frio.

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4.set.2015 - Refugiado usa imagem de Merkel pendurada no pescoço enquanto deixa a cidade de Budapeste, na Hungria
Imagem: Zsolt Szigetvary/EFE

P: Mas não existe nenhum plano para aproveitar essa mão de obra qualificada que vem desses países em guerra?

Zeidler: Uma pessoa que tem o status de refugiado reconhecido tem o direito de trabalhar. Aí vem a questão de reconhecimento da formação. Funciona como no Brasil. Uma fisioterapeuta alemã não pode trabalhar aqui em sua profissão sem ter o diploma reconhecido. Na Alemanha, as próprias empresas e indústrias estão interessadas em contratar profissionais, por causa da falta de mão de obra. E voltamos para a questão do idioma. Então o primeiro passo é o ensino da língua alemã.

A pessoa pode trabalhar em inglês em uma área em que o inglês é a língua principal, como nas áreas técnicas, mas acredito que muitos já estão fazendo cursos para preparar essa adaptação. É claro que depende da formação e também do lugar em que o refugiado vive. Se tiver uma indústria ao lado, fica mais fácil.

P: Recentemente, a chanceler Angela Merkel comparou o desafio da reunificação com o de acolher os refugiados. Como eles são semelhantes?

Zeidler: A primeira coisa que os alemães precisam lembrar é que é possível derrubar o muro e que já conseguiram fazer isso, mesmo quando todo mundo achava impossível, que nunca haveria uma Alemanha unificada. O próprio povo conseguiu mudar e fazer a unificação. Agora talvez exista, na cabeça de algumas pessoas, essa espécie de muro. E eles acham que nunca vão conseguir integrar os refugiados, que são pessoas que estão invadindo o nosso país. Mas essa percepção da unificação, de que a Alemanha unida conseguiu uma coisa que parecia impossível, é o tipo sentimento que existe na cabeça das pessoas que querem ajudá-los e também dos políticos que lutam por isso. 

Sim, vamos superar os desafios. Talvez tenhamos que explicar para os que ainda não estão prontos para isso. O nosso ministro de Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, falou recentemente que não podemos ficar presos ao medo do que pode acontecer. Já aprendemos com a unificação que, sem medo, a gente consegue. Então com os refugiados devemos agir da mesma forma. Como ele disse, não temos certeza do que vai acontecer amanhã. Mas se não fizermos nada, nada vai acontecer.

Ainda estamos tentando entender a melhor maneira de superar estes desafios. Não posso dizer qual será o resultado, mas não podemos ficar com medo ou não faremos nada. Essa é a lição que a gente aprendeu.

A Alemanha continua a ser a primeira economia, não caímos num poço, tudo está funcionando e vai continuar funcionando. Sim, existe uma parte da população que tem dúvidas. Mas mesmo nas últimas eleições, a maioria das pessoas votou nos partidos democráticos antigos. Então não é a maioria que tem medo de refugiados. A maioria mantém o apoio. Sim, existem divergências, mas isso é normal na democracia.

P: Qual é a avaliação alemã do movimento recente dos países-membros da União Europeia fechando fronteiras e criando até mesmo barreiras físicas, acabando com a ideia inicial de fronteiras abertas no bloco?

Zeidler: A Alemanha sempre apoiou as fronteiras abertas e acha que esse processo deve voltar ao normal como antes. Por isso nós apoiamos os esforços da União Europeia para fazer o acordo com a Turquia, que era uma maneira de ajudar os refugiados perto da origem deles. Achamos também que é preciso existir uma solução europeia solidária entre os Estados-membros, para dividir a carga fazendo com que todos os países contribuam na questão do fluxo de refugiados. Um único país não pode arcar com as consequências.

Além disso, a gente não pode esquecer que existe o homem, pessoas que têm necessidades.

Não podemos ficar dentro das salas de reunião dizendo 'temos uma solução para longo prazo' e esquecer dos que estão ali com filhos.

Precisamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Mas também devemos ter cuidado e considerar as preocupações da nossa população, para manter aquela vontade positiva em acolher os refugiados.

12.mar.2016 - Manifestantes de extrema-direita fazem protesto contra o acolhimento de refugiados pela Alemanha, que eles chamam de "invasão de imigrantes", em Berlim, neste sábado (12). Eles seguram cartazes e faixas com frases críticas à primeira-ministra Angela Merkel, como "Merkel deve sair" - John Macdougall/FP Photo - John Macdougall/FP Photo
12.mar.2016 - Manifestantes de extrema-direita fazem protesto contra o acolhimento de refugiados pela Alemanha. Eles seguram cartazes e faixas com frases contra Angela Merkel, como "Merkel deve sair"
Imagem: John Macdougall/FP Photo

P: Como o senhor avalia o crescimento de grupos de extrema-direita, como a AfD e Pegida, nas eleições regionais?

Zeidler: Nesses partidos e organizações existe uma grande variedade de pessoas que foram fundadoras de outros partidos, e os deixaram porque não concordavam mais com os novos dirigentes. Este é principalmente o caso da AfD. Os partidos democráticos mais antigos ainda têm grande maioria nas eleições. Mas a AfD fez sucesso, entrou nos Parlamentos regionais e em algumas prefeituras. O que acontece sempre que um novo partido surge, mas depois do trabalho nas prefeituras e nos Estados, as pessoas percebem que as palavras não representam muito resultado na prática.

Isso não acontece só na Alemanha, mas também em outros países da Europa, das Américas e em outros continentes.

É uma maneira de fazer populismo, dar respostas fáceis que na realidade não resolvem os problemas.

Por isso, a chanceler tenta explicar que não existe uma solução fácil para os problemas que nos enfrentamos, e que ainda temos a economia forte, que nos dá recursos de fazer mais do que muitos países no momento. Esse também é um investimento, para o refugiado integrado também possa ajudar a manter a economia, como nós integramos os turcos, italianos, portugueses e espanhóis que chegaram há quatro, cinco décadas.

Existem ainda regiões da Alemanha que não têm o costume de receber estrangeiros. Elas têm a maior taxa de rejeição aos refugiados, já que a população não tem o costume de lidar não só com muçulmanos, mas com qualquer estrangeiro. Isso também é parte do processo da unificação, não só na Alemanha oriental, mas existe também no lado ocidental.

O importante é que as pessoas percebem que quando não existem resultados, mesmo os que acreditaram nas palavras mais populistas, aprendem que elas não funcionam. A AfD elegeu seus representantes regionais, agora começa o trabalho deles.

Os alemães são muito realistas, sabem que têm políticos com muita experiência tratando destes assuntos. Que podem errar no passo, mas não estão errando no caminho.