Além do Boko Haram: quem é o outro grupo sanguinário que aterroriza a Nigéria
Um grupo de homens armados invadiu uma vila na região central da Nigéria, cumprindo o que havia prometido --na semana anterior, os agressores enviaram uma carta à comunidade informando sobre o ataque.
Assim que o grupo chegou, os jovens designados a proteger o local fugiram em busca de segurança. Uma moradora chamada Ande dormia em casa, com os cinco filhos, quando recebeu um tiro na cabeça e morreu na hora. A criança mais nova, de três meses, não chorou e passou despercebida. Continua viva. As demais --de 5, 8, 10 e 13 anos-- correram para o quarto da mãe e foram mortas.
O ato de violência brutal não foi protagonizado pelos radicais do Boko Haram, mas por um grupo menos conhecido internacionalmente, dos pastores da etnia fulâni --pastores porque trabalham com animais no pasto, e não por serem ministros protestantes. Segundo a SBM Intelligence, consultoria que fornece a investidores dados e análises sobre a Nigéria, em 2016 esses pastores responderam pelo maior número de mortes no país. Foram 1.425 (média de 30 por ataque), contra 1.240 do Boko Haram (média de 17 por ataque).
O Índice Global de Terrorismo, do Instituto para a Economia e Paz, classificou os militantes fulâni como o “quarto grupo terrorista mais mortal do mundo” na última versão do relatório, referente a 2014. Foram 1.229 mortes, aumento de 63% em relação ao ano anterior.
Como os conflitos estão localizados principalmente em áreas rurais, a coleta de dados representa um desafio.
Os assassinatos do começo desta reportagem, por exemplo, foram relatados à SBM Intelligence por Dan Azumi, irmão da mulher assassinada. Ele perdeu 13 parentes no ataque sem data especificada à vila de Fadan Karshe, no Estado de Kaduna, bastante afetado por esses conflitos concentrados nas regiões norte e central do país.
Seminômades com sofisticados rifles
Os pastores da etnia fulâni compõem um grupo islâmico seminômade, que percorre áreas extensas com seus rebanhos em busca de pasto e água. “A expansão do deserto do Saara trouxe problemas que atravessam as fronteiras. Como os relatos de pastores fulânis, armados com sofisticados rifles para confrontar comunidades locais de agricultores, que se tornaram impaciente com a movimentação do gado”, diz um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas), divulgado em abril de 2017, sobre o impacto das mudanças climáticas na paz e na segurança dos países.
O conflito, que vem apresentando uma escalada, se dá principalmente com agricultores cristãos na Nigéria. Há, portanto, duas questões: a ocupação da terra (usada para plantio ou para pastagem) e diferenças religiosas (cristãos ou muçulmanos).
Os confrontos seriam motivados pela disputa do espaço físico --mudanças climáticas, secas e crescimento populacional--, mas há relatos de pessoas sendo poupadas nos ataques por recitarem versos do Alcorão.
Os fulânis alegam que estão tentando preservar sua tradição e proteger seus rebanhos --dizem que seus animais são frequentemente roubados. “Antes eles pastavam em qualquer lugar, não tínhamos contato com os agricultores. Mas agora somos forçados a pastorar perto das estradas. Dizem que os fulânis são uma ameaça, mas não somos os responsáveis por causar problemas”, disse à BBC Isa Mosham Sarkin, líder fulâni do Estado Nasarawa.
Um líder fulâni da Associação de Reprodutores Bovinos Miyetti Allah explicou, em entrevista à TV qatariana Al Jazeera que o roubo de gado geralmente fica impune.
Ele explicou que em Agatu --onde 300 moradores teriam sido mortos por pastores em fevereiro de 2016-- muitos homens jovens haviam roubado esses animais. A mesma reportagem apresenta Haruna Mohammed, então com 16 anos, um fulâni que pastoreia em Akwanga os 200 bois e vacas de sua família: “Nos chamam de assassinos. Mas não matamos, somos pacíficos”.
Cuidar do rebanho com fuzil nas costas
Os pastores fulânis no foco dos conflitos são descritos como extremamente violentos: usam armas, machetes e ateiam fogos nas aldeias e plantações, deixando milhares de pessoas desabrigadas. Diferentemente dos radicais islâmicos do Boko Haram, que escravizam mulheres sequestradas, os pastores matam mulheres e crianças, além de destruir as comunidades para que seu gado paste na terra daqueles que foram expulsos ou mortos.
“Eles são mais perigosos que o Boko Haram, matam mais. Acham que podem matar os donos da terra para seu gado comer a plantação. Você precisa mesmo de um [fuzil] AK-47 nas costas para criar gado?”, questiona Nkechinyere Jonathan, refugiada nigeriana que vivia na região de Borno antes de se mudar para o Brasil, em entrevista ao UOL (ela fugiu do país por causa do Boko Haram).
“Eles estão seguros, porque estão com o presidente. Ninguém questiona aquilo que fazem”, continua a professora.
"Não parece algo sazonal"
O comentário da nigeriana ecoa uma crítica comum no país, pois o presidente nigeriano, Muhammadu Buhari, pertence à etnia fulâni. A reportagem procurou, por telefone e por e-mail, a Embaixada da Nigéria para ouvir se como governo nigeriano lida com os conflitos entre agricultores cristãos e pastores fulâni, mas não obteve resposta.
“A atitude do governo vem sendo marcada por muita cumplicidade e viés, que exacerbam as tensões em vez de amenizá-las. O governo, em muitos casos, parece ter abdicado da responsabilidade de governar para todos [...], cedendo a uma campanha contra as pessoas de Kaduna”, diz um comunicado assinado pelo reverendo Joseph Danlami Bagobiri, da diocese de Kafanchan (em Kaduna). O texto foi publicado em abril de 2017, quando 12 católicos foram mortos dentro de uma igreja na região de Jemaa.
Um ano antes, em abril de 2016, o presidente havia ordenado que as forças de segurança detivessem todos os grupos que aterrorizassem pessoas inocentes no país. Ele foi específico ao dizer que o Exército e a polícia deveriam “proteger todas as comunidades sob ataques dos pastores”. Desde então houve mais dezenas de ataques e centenas de mortes.
“Da forma como se apresenta hoje, não parece algo sazonal: o conflito deve continuar acontecendo em diferentes escalas, com número maior ou menor de pessoas atingidas. Trata-se de um confronto de culturas políticas. Ações violentas geram reações violentas”, avalia Marcelo Valença, pesquisador de estudos críticos de segurança e professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Para o especialista, a saída está em estratégias de prevenção de conflitos, com atores e autoridades locais apresentando alternativas para a conciliação entre as partes.
Isso vai ao encontro da proposta da organização humanitária Mercy Corps, que aposta na capacitação de líderes comunitários para lidar com o problema. Em uma comunidade de Kaduna, exemplifica a instituição, chegou-se a um consenso sobre uma rota alternativa na qual o gado poderia pastar sem destruir plantações.
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