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"Sem os militares brasileiros, o Haiti tem que criar seu próprio Exército", diz prefeito haitiano

Prefeito de Paillant, Jude Brice, coordena distribuição de ajuda após furacão - Arquivo pessoal
Prefeito de Paillant, Jude Brice, coordena distribuição de ajuda após furacão Imagem: Arquivo pessoal

Luis Kawaguti

Do UOL, em São Paulo

01/09/2017 08h24

“Sem os militares brasileiros, o Haiti tem que criar o seu próprio Exército”, diz o haitiano Jude Brice, prefeito de Paillant, um vilarejo de 30 mil habitantes isolado nas montanhas do sul do Haiti.

Brice se diz preocupado porque, na sexta-feira (1), o último contingente de 950 militares brasileiros começa a se retirar definitivamente do Haiti, após 13 anos de serviço em solo haitiano sob a bandeira da ONU.

“Só na última semana aconteceram quatro tremores de terra fracos aqui na região. Se acontecer outra catástrofe, os brasileiros não vão estar aqui para ajudar, como estavam no terremoto de 2010 ou no furacão do ano passado”, afirma.

O vilarejo de Paillant foi muito afetado pela passagem do furacão Matthew no ano passado e ainda está em processo de recuperação.

A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) acaba oficialmente em 15 de outubro. Ela envolveu cerca de 20 países e foi liderada militarmente pelo Brasil. Custou aos cofres brasileiros mais de R$ 2,5 bilhões e levou cerca de 37 mil militares à ilha caribenha em sistema de revezamento.

17.mai.2006 - Blindado de transporte de tropas protege base da ONU em Cite Solei - Luis Kawaguti - Luis Kawaguti
17.mai.2006 - Blindado de transporte de tropas protege base da ONU em Cite Soleil
Imagem: Luis Kawaguti

Brice diz que é muito grato aos brasileiros, que o resgataram dos escombros e salvaram sua vida no terremoto de 2010.

“Os moradores costumam chamar os prefeitos e as autoridades de 'papai', aqui no Haiti isso é comum. Mas também significa que esperam que você cuide deles".

Ele explica que muitos haitianos aplicam essa mesma lógica paternalista à comunidade internacional.

“Eles [moradores de Paillant] me perguntam por que a ONU não trouxe projetos de desenvolvimento social para a cidade. Mas eu sei como a ONU funciona, eu trabalhei lá. Não dá para ficar cobrando tanta coisa. Era uma missão de paz, o importante é que não temos conflitos agora”.

Atualmente o Haiti tem um presidente eleito democraticamente, Jovenel Moise, um Parlamento operante e teve três transições democráticas e pacíficas de poder consecutivas - algo que nunca havia acontecido na história do país.

Mas nem tudo vai bem. Com uma população de 10,5 milhões de habitantes, o Haiti ainda tem 2,3 milhões de pessoas ameaçadas pela fome e precisando de assistência imediata. E ao menos 4.200 estão desabrigadas desde o furação do ano passado, segundo o relatório mais recente da ONU.

Há também cerca de 7 mil casos de cólera registrados. A doença foi levada ao país acidentalmente por militares da ONU do sudeste asiático. Além disso há ainda 86 mil infectados pelo vírus HIV.

No campo econômico, o Haiti enfrenta um déficit fiscal de 2,5% do Produto Interno Bruto. Fora isso, uma grande parte da população sempre foi contrária à presença da ONU no Haiti.

O início da missão

Em fevereiro de 2004 ex-militares, milícias armadas e mercenários liderados pelos rebeldes Guy Phillipe e Ravix Remissanthe marcharam em direção à capital Porto Príncipe - forçando o então presidente Jean Bertrand Aristide a deixar o poder.

Longe de tudo isso, Brice era um estudante internacional que acabava de finalizar o curso de agronomia na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Ao saber que o Brasil se preparava para enviar tropas ao Haiti, voltou para casa. “Eu achei um Haiti destruído pelos haitianos”, disse. Na ocasião, 25 mil rebeldes com as mais diversas orientações políticas controlavam grandes partes do território, segundo estimativas da ONU.

O sistema judiciário estava inoperante, quase todos os presos haviam fugido das cadeias e uma força de 2.500 policiais - entre eles Jimmy, o irmão de Brice -  era incapaz de retomar o controle da situação.

Conhecendo bem o português e o creolle, Brice foi morar em Porto Príncipe e conseguiu um emprego controverso: intérprete das tropas brasileiras da ONU.

17.mai.2006 - Militar participa da tomada da favela de Cite Soleil no Haiti - Luis Kawaguti - Luis Kawaguti
17.mai.2006 - Militar participa da tomada da favela de Cite Soleil no Haiti
Imagem: Luis Kawaguti

Desarmado, ele acompanhava os militares brasileiros em operações de combate. Também usava uma máscara para não ser reconhecido pelos rebeldes - as represálias de milicianos contra cidadãos “traidores” costumavam ser violentas.

Brice diz se lembrar que, no início da missão, os conflitos entre os capacetes azuis e rebeldes conhecidos como chimères eram quase diários. 

A partir de 2005, as tropas entraram nos locais mais perigosos da capital, Bel Air e Citè Soleil, e começaram a estabelecer bases militares por lá - em uma estratégia semelhante ao conceito de polícia pacificadora, que seria usado anos mais tarde no Rio de Janeiro.

Os rebeldes foram se desmobilizando, sendo presos, mortos ou saindo do país. Em 2007 não havia mais áreas controladas militarmente por insurgentes.

O fim dos conflitos se refletiu na abertura de novas lojas, restaurantes, na reativação de tribunais e no fortalecimento da polícia.

Brice, que é agrônomo, aproveitou para implantar um projeto piloto de plantio de árvores na base militar brasileira.

“O Haiti sofre muito com enxurradas e deslizamentos de terra porque a vegetação foi devastada. O meu sonho era reflorestar todo o país”.

Naquela época, a cúpula da ONU passou a acreditar que a Minustah poderia ser um exemplo de sucesso de missão de paz e programou a retirada das tropas para 2011. Brice deixou os brasileiros para assumir um cargo civil na Minustah.

Jude Brice no batalhão brasileiro no Haiti - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jude Brice em viveiro de mudas no batalhão brasileiro
Imagem: Arquivo pessoal

Terremoto

Às 16h53 do dia 12 de janeiro de 2010 as paredes do hotel Christopher, o quartel general da ONU em Porto Príncipe, começaram a ruir. Brice sobreviveu ao desabamento, mas, com uma perna e uma mão presas nos escombros, mal podia se mexer ou ver qualquer coisa.

Porém, conseguia ouvir à distância o som das transmissões de um aparelho de rádio UHF e começou a entender que o Haiti havia sido atingido por um terremoto de proporções catastróficas. Mais tarde, o governo estimaria o número de mortos no Haiti em mais de 200 mil. Entre eles, estavam 18 militares brasileiros.

13.jan.2010 - Jude Brice é retirado dos escombros do QG da ONU em Porto Príncipe 24 horas após terremoto - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jude Brice é retirado dos escombros do QG da ONU em Porto Príncipe 24 horas após terremoto
Imagem: Arquivo pessoal

Depois de 24 horas sob escombros, Brice conseguiu chamar a atenção de militares brasileiros. “Se não fossem aqueles brasileiros eu não teria saído de lá. Eu me lembro de um cabo chamado Paiva, mas nunca o reencontrei”, diz.

Na confusão do socorro às vítimas do terremoto, ele foi parar em um hospital no interior do país, mas o local não tinha muitos recursos. Seus amigos brasileiros o localizaram e o então coronel João Batista Bernardes o levou para o hospital de campanha da Força Aérea Brasileira. Ele ainda tem sequelas do terremoto em uma mão.

Prefeito

Brice deixou a ONU após o terremoto e foi eleito em 2016 um dos prefeitos de Paillant (no Haiti, os municípios têm três prefeitos).

A previsão de saída das tropas do país em 2011 foi postergada diversas vezes, devido às ações de reconstrução após o terremoto e à passagem do furacão Matthew.

Até a segunda quinzena de setembro a maioria dos brasileiros deve voltar ao Brasil. O comandante da força, general Ajax Porto Pinheiro, deve ser um dos últimos a retornar, em outubro.

Segundo diplomatas e militares ouvidos de forma anônima pela reportagem, a ONU vem manobrando nos últimos anos para realocar recursos do Haiti para missões de paz na África, onde o cenário de segurança é mais instável. O governo brasileiro também já vinha anunciando publicamente que desejava trazer suas tropas para casa.

Jude Brice na prefeitura de Paillant - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jude Brice na prefeitura de Paillant
Imagem: Arquivo pessoal

Os argumentos para finalizar a missão são que o Haiti tem um governo funcional e a polícia já tem 14 mil homens treinados. Segundo estudos da ONU, o mínimo necessário seriam 10 mil homens, mas a situação ideal seria que o quadro atingisse 20 mil policiais. Até dezembro, o número de policiais deve chegar a 15 mil.

“Por causa da ONU, as pessoas que lideraram a revolta de 2004 não estão mais por aqui, então não tenho medo que o governo seja deposto de novo”, diz Brice.

O líder rebelde Ravix foi morto em confronto com a polícia. Guy Phillipe foi extraditado para cumprir pena por tráfico de drogas nos Estados Unidos.

O ex-presidente Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, acusado de comandar uma ditadura por anos no Haiti, morreu por causas naturais em 2014, antes de ser julgado por crimes contra os direitos humanos. Já Aristide, o presidente deposto em 2004, voltou do exílio mas evita participar abertamente da política.

Um dos principais debates no país atualmente é a recriação do Exército, cuja extinção por Aristide foi uma das causas da insurreição eu levou o Brasil ao Haiti. A proposta é que esses militares defendam as fronteiras e ajudem a população em eventuais novas catástrofes.

O mandato de Brice na prefeitura de Paillant vai até 2020.