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Médicos legistas relembram os mortos deixados pelo EI em Mossul

Imagem aérea mostra complexo hospitalar destruído em Mosul; neste local, ficava o necrotério onde corpos de pessoas mortas pelo Estado Islâmico eram levados - Felipe Dana/AP
Imagem aérea mostra complexo hospitalar destruído em Mosul; neste local, ficava o necrotério onde corpos de pessoas mortas pelo Estado Islâmico eram levados Imagem: Felipe Dana/AP

Qassim Abdul-Zahra e Maggie Michael

Da Associated Press, de Mosul (Iraque)

30/12/2017 07h59

O jovem terminou na mesa de necropsia em duas partes. 

Ele foi preso por vender cigarros, um crime geralmente punido com chicotadas pelo grupo extremista do Estados Islâmico que ocupou Mossul. Mas enquanto era penalizado, gritou palavras de insulto à religião. No local, cortaram sua cabeça por blasfêmia. 

Sameh al-Azzawi, o assistente médico de 35 anos que o examinou, estava cansado de ver a juventude de Msosul massacrada pelos menores motivos. O homem na mesa era recém-casado. Sua família esperava do lado de fora - foi uma das raras vezes em que os fanáticos permitiram o retorno de alguém assassinado pelo grupo. Então Al-Azzawi quebrou as regras: alcançou um barbante grosso, costurou a cabeça de volta ao corpo e fechou o zíper do saco de cadáveres. A operação durou quatro minutos - a família agradeceu discretamente. 

Foi no necrotério de Mossul, norte do Iraque, onde a atrocidade encontrou a burocracia - o ponto de processo da máquina de carnificina instalada pelo Estado Islâmico pelos territórios do Iraque e Síria. Todos os dias, durante a ocupação da cidade, médicos e funcionários testemunharam o que de pior os militantes conseguem infligir ao ser humano - temendo sempre serem os próximos. 

Ainda assim, os homens do necrotério de Mossul encontraram pequenas e grandes formas de desafiar seus captores ao honrar os mortos da melhor forma que podiam. 

"Nossa profissão, enquanto médicos, é sobre humanidade", diz o legista sênior Modhar al-Omari. "Eles estavam fazendo o exato oposto."

O legista Modhar al-Omari - Felipe Dana/AP - Felipe Dana/AP
O legista Modhar al-Omari
Imagem: Felipe Dana/AP

Por vezes a equipe chegou a lidar com números que iam de 60 a 100 corpos por dia. Enquanto caminhonetes carregando cadáveres faziam balizas para passar pelos portões do necrotério, mãos, pernas e cabeças caiam no chão. 

Alguns eram os corpos mutilados de civis ou de militantes do Estado Islâmico, mortos em bombardeios americanos ou lutando contra tropas iraquianas. Outros, traziam as marcas da interpretação radical feita pelo Estado Islâmico da lei muçulmana. O crânio quebrado de um homem com hemorragia interna poderia significar a queda do topo de um prédio - punição dada a suspeitos de serem gays. Uma mulher com um crânio partido numa golpeada foi possivelmente apedrejada até a morte - a sentença aos acusados de adultério. E há também a punição por espionagem ou blasfêmia: um tiro na cabeça ou decapitação. 

Convencido de que seu califado havia chegado para ficar, o Estado Islâmico era zeloso em acumular arquivos tal qual um governo. Enquanto o grupo somava atestados de morte, os legistas silenciosamente documentavam as atrocidades do EI. Marcavam a letra árabe "alif" em integrantes do grupo, e a letra "M" em suas vítimas. Em árabe, a palavra "executado" começa com "M". 

Uma planilha do Excel documenta mais de 1.200 mortos com um tiro na cabeça - sinal forte de execução pelo Estado Islâmico - entre junho de 2014, quando o EI ocupou Mossul, a janeiro de 2017, quando as forças iraquianas chegaram para recuperar a cidade. Uma média de 11 por semana. A lista tem 12 mulheres "apedrejadas até a morte". Também lista 95 pessoas decapitadas e 50 homens e meninos mortos por "queda" - possivelmente arremessados de telhados. 

A equipe operava sob o escrutínio próximo dos militantes do EI e ameaças de punição caso quebrassem as regras ou tentassem fugir. Entre as regras: os corpos de pessoas "executadas sob a lei religiosa" não poderiam ser devolvidos à família, exceto no caso de um comandante do EI permitir. Em vez disso, eram jogados em covas coletivas. Milhares outros eram jogados diretamente nas covas sem sequer passarem pelo necrotério. Além disso, o EI levou ao menos mil corpos ao necrotério sem permitir que fossem examinados, portanto a equipe não tem ideia de quem sejam ou do que morreram. 

Al-Azzawi conseguiu costurar a cabeça de volta em cerca de dez corpos, estima ele. Tinha que ser rápido. Ele operava depois da meia-noite na área de lavagem, de onde os integrantes do EI mantinham distância devido ao mal cheiro. Ele parou quando um militante viu um corpo costurado. "Nós cortamos e você colocou de volta?", gritou. O militante alertou que qualquer legista pego fazendo o mesmo seria decapitado da mesma forma. 

'Ele ainda está vivo!'

Uma caminhonete jogou ao menos 12 corpos na calçada do necrotério - a mais recente entrega. "Levante!", gritou um militante à equipe, obrigando-os a iniciarem à rotina de arrumar os corpos. 

Enquanto a equipe médica iniciava o trabalho, um assistente parou surpreso: entre os corpos, respirava um jovem vestido em uniformes de futebol que havia sido jogado do topo de um prédio. "Ele ainda está vivo!", gritou o assistente. 

Mal teve tempo de perceber seu erro. O militante do EI começou a atirar com seu rifle automático, atingindo os corpos no chão. As balas acertaram o jovem, terminando de matá-lo. 

"É muita pressão. Pressão, pressão, pressão", diz Raid Jassim, chefe dos assistentes médicos. "Eu sempre esperei que viriam a qualquer momento para nos decapitar e matar."

Em 2005, Jassim encheu-se de alegria ao receber do governo um trabalho no Departamento Forense de Mossul - o necrotério. O salário era várias vezes superior ao que recebia no hospital público. Ele havia se formado em um instituto médico em dois anos, após o colegial, e serviu como enfermeiro do exército. No necrotério, examinava corpos sob a supervisão de médicos como Al-Omari. 

Mas nenhum treinamento o havia preparado para o que viu quando assassinos passaram a comandar a cidade. 

Um policial iraquiano do lado de fora do necrotério - Felipe Dana/AP - Felipe Dana/AP
Um policial iraquiano do lado de fora do necrotério
Imagem: Felipe Dana/AP

Alguns meses após o EI chegar, um militante levou ao necrotério o corpo de uma mulher yazidi, umas das muitas pertencentes à minoria religiosa e tornada escrava sexual. Ela se enforcou, após ter sido estuprada diversas vezes. 

Jassim, 48, assistiu com horror e repulsa enquanto o militante falava com o corpo. "Por que se matou? Eu disse que não a venderia para o comandante. Eu disse que me casaria com você", lamentava. 

Outra noite, combatentes chegaram com dois homens, vivos, no porta-malas do carro. Os levaram ao quintal do necrotério e, em frente à uma equipe médica aterrorizada, atiraram na cabeça de um e decapitaram o outro. 

"Essa é uma mensagem a qualquer um que trair o califado", gritou um deles. Os legistas suspeitaram que os mortos eram integrantes do EI que se viraram contra o grupo. Mas não sabiam dizer porque os militantes levaram os dois ao necrotério para matá-los. Seria uma mensagem para a equipe?

"Nessas ocasiões, não abrimos a boca. Apenas ficamos em silêncio", diz Jassim. 

O necrotério ficava localizado em Al-Shifaa, um grande complexo hospitalar no lado leste de Mossul, que incluía o principal hospital da cidade, Jomhouriya, além de outros estabelecimentos. Era a principal instalação hospitalar da organização - militantes levavam para lá feridos do Iraque e Síria em busca de tratamento. O escritório do ministro da Saúde do Estado Islâmico ficava lá. O que significava que a equipe estava sob a supervisão do grupo a todo instante. 

O chefe dos assistentes médicos, Raid Jassim - Felipe Dana/AP - Felipe Dana/AP
O chefe dos assistentes médicos, Raid Jassim
Imagem: Felipe Dana/AP

Jassim é um fumante em série e fumar era crime. Ele escondia o maço sob o cinto, cobrindo o cheiro com spray de almíscar. Ainda assim foi pego e punido com 30 chibatadas. Outra ocasião, foi espancado com a traseira de um rifle no escritório do ministro-adjunto, após recusar-se a forjar um certificado de morte. Do lado de fora do escritório, seus dois filhos, ainda crianças, podiam ouvir os gritos do pai. 

Em alguns casos, ele e seus colegas conseguiam contrabandear corpos de volta para as famílias antes que sumissem nas covas coletivas. Eles levavam em segredo, à noite, após cortar a eletricidade para desligar as câmeras de segurança do necrotério e colocar os cadáveres em seus carros. 

Uma vez, Jassim fez a autópsia de uma mulher morta por supostamente passar informações ao exército iraquiano. Em fevereiro de 2016, ela havia postado em sua página do Facebook: "Está nevando", o que pareceu suspeito, como criptografia, então foi presa. O juiz permitiu que seu marido e filhos a visitassem uma hora antes de ser levada para praça pública e ser morta a tiros. 

"Depois desse episódio excruciante, a família deveria ao menos poder enterrá-la", pensou Jassim. Ele encontrou o marido à noite em um estacionamento vazio, desligaram os faróis dos carros temendo bombardeios aéreos. "Você a trouxe?" perguntou o comerciante. "Sim", respondeu Jassim. O homem começou a chorar e o abraçou com gratidão. Jassim então abriu o porta-malas do carro para que retirassem o corpo. 

Enterrando o trauma

Al-Azzawi relembra como tragédia após tragédia o destruiu. Um dia, ele estava examinando os mais recentes sacos de cadáveres quando viu um nome conhecido pendurado em um dos defuntos. Era seu primo. O rosto estava irreconhecível, ele levou um tiro na cabeça, acusado de espionagem. 

"Não podia acreditar. Lia e relia a tira de papel", disse. 

Meses mais tarde, Al-Azzawi tentou fugir de Mossul com a ajuda de um contrabandista. Junto a uma dúzia de pessoas, escondeu-se num caminhão sob caixas de batata chips, mas foram todos pegos na fronteira com a Síria. Passou dez dias presos, solto após assinar um compromisso de que não tentaria fugir novamente, sob o risco de ser morto. Depois disso, "tudo o que eles me pediam eu fazia sem reclamar."

Um dia, após ver 60 corpos, foi para casa e arrebentou sua televisão. 

Capas de morteiros acumuladas nas ruas de Mosul - Felipe Dana/AP - Felipe Dana/AP
Capas de morteiros acumuladas nas ruas de Mosul
Imagem: Felipe Dana/AP

Tropas iraquianas liberaram a parte oeste de Mossul em 2017, e boa parte do complexo hospitalar em que o necrotério estava localizado foi bombardeado até as ruínas durante a batalha que expulsou os militantes. 

Impregna o necrotério o mal cheiro de cadáveres que ficavam nos refrigeradores, agora soterrados por destroços. As mesas de metal dos escritórios têm adesivos do EI em suas gavetas. Em uma parede, está escrito um dos slogans do grupos: "Baqiya" - algo como "vamos permanecer", em árabe. Ao lado, alguém rabiscou o insulto: "filho do cachorro". 

Livres, os homens do necrotério lutam com o que resistiram. Jassim não consegue dormir sem muitas gotas de calmante. Seu filho de 13 anos - preocupado com o pai - não dorme longe dele. Alguns funcionários desapareceram depois da liberação, simplesmente nunca mais foram trabalhar. 

Al-Omari, o legista-chefe, foi anestesiado pela impotência sentida ante à ditadura e o massacre dos fanáticos. O médico e cirurgião de 43 anos era conhecido entre a equipe por sua calma. Costumava usar ternos, mas sob o EI foi forçado a usar trajes típicos religiosos e a barba longa - o estilo do profeta Maomé, segundo o grupo. 

As atrocidades com as quais sua equipe foi obrigada a viver parecem sem fim: 16 meninos com menos de 14 anos mortos com tiros na cabeça. Seis meninas mortas com tiro na cabeça. Seu trabalho era assinar a causa de morte das vítimas brutalizadas. Como um médico forense, também tinha que investigar os "crimes" dos vivos - como assinar exames médicos para descobrir se mulheres acusadas de adultério eram ou não virgens. 

Teve um pouco sua vingança ao repassar informações. Informou secretamente o governo de Bagdá quando vários comandantes foram mortos por ataques aéreos. 

Diz nunca ter chorado pelos mortos. "Você não pode falar ou explicar. Você apenas mantém internamente. Se eu chorasse, choraria todos os dias por cada um dos corpos."