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Ter uma arma de fogo é a melhor forma de se defender? EUA buscam respostas

Manifestantes protestam a favor do controle de armas nos EUA dias após o atirador Nikolas Cruz deixar 17 mortos em uma escola da Flórida - Joe Raedle/Getty Images/AFP
Manifestantes protestam a favor do controle de armas nos EUA dias após o atirador Nikolas Cruz deixar 17 mortos em uma escola da Flórida Imagem: Joe Raedle/Getty Images/AFP

Marcelo Freire

Do UOL, em São Paulo

22/02/2018 04h00

A cada novo caso de tiroteio em massa, em escolas, igrejas e outros lugares públicos, os norte-americanos elevam o tom em uma discussão contínua e acirrada sobre endurecer ou não o acesso a armas de fogo. Na raiz desse tema existe uma outra questão intensamente debatida: possuir uma arma realmente torna uma pessoa mais segura contra criminosos?

O tema mobiliza parte importante da população. Um levantamento feito em 2017 pelo Pew Research Center mostra que cerca de 40% dos norte-americanos afirmar ter, ao menos, uma arma em casa. Os Estados Unidos registraram em 2016 mais de 11 mil assassinatos por arma de fogo. Além disso, são mais de 20 mil suicídios com arma de fogo no país por ano.  

A resposta sobre a eficiência do porte de armas para defesa pessoal varia de acordo com o lado questionado. O UOL ouviu dois pesquisadores e especialistas sobre o tema, Gary Kleck (Universidade Estadual da Flórida) e David Hemenway (Harvard), com visões opostas sobre o tema e que chegam a conclusões diferentes sobre a questão.

O criminologista Kleck é coautor da pesquisa "Resistência Armada: O Predomínio e Natureza da Autodefesa com uma Arma", junto com Marc Gertz, publicada em 1995 e muito divulgada entre setores pró-arma --o estudo aponta que a arma é um instrumento eficiente de defesa, argumento ainda hoje sustentado por Kleck.

Hemenway, professor e pesquisador de Saúde de Harvard, vai na direção oposta, como concluiu seu estudo "A Epidemiologia do Uso de Arma como Autodefesa: Evidências das Pesquisas Nacionais Sobre Vítimas de Crimes", de 2015, escrito com Sara J. Solnick. Segundo a pesquisa, o índice de uso de armas como autodefesa é superestimado e sua eficiência, questionável.

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Imagem: George Frey/Getty Images/AFP

A pessoa está mais segura se possuir uma arma pessoal?

Segundo Gary Kleck, a pessoa que usa uma arma como proteção pessoal "tem menos chances de se ferir ou de perder posses" em um caso comum de violência. Mas ele ressalta que, para conter um atirador de uma escola, por exemplo, é "muito improvável" que um norte-americano comum consiga fazer isso. "São poucas as pessoas que carregam armas em lugares públicos", diz.

A visão é contestada pelos outros pesquisadores.

Não há nenhuma evidência de que ter uma arma deixe a pessoa mais segura. Pode inclusive torná-la menos segura, porque pode incitar um criminoso a feri-la para se proteger. Não há evidência firme de que uma arma pessoal detém crimes."

David Hemenway, pesquisador contrário ao uso de armas para defesa pessoal

De acordo com John J. Donohue, professor de direito em Stanford, os donos de armas "acreditam passionalmente" que estão mais seguros porque possuem armamento. Ele cita como exemplos as mães de Adam Lanza e Christopher Harper-Mercer, atiradores da escola Sandy Hook (2012) e da Universidade Comunitária Umpqua (2105), respectivamente.

"Ambas tinham um grande arsenal em casa que, pensavam, as protegeria de ameaças. Mas a lição é que normalmente há pouca ligação entre os que as pessoas acreditam passionalmente sobre armas e a verdade", diz Donohue, em entrevista sobre o tema para a Escola de Direito de Stanford em outubro de 2015,lembrando que o arsenal das mães acabou sendo utilizado em massacres.

Segundo a pesquisa "A Epidemiologia do Uso de Arma como Autodefesa", de Hemenway, que ouviu 14 mil cidadãos norte-americanos que foram vítimas de criminosos entre 2007 e 2011, apenas 0,9% das vítimas usou uma arma para se defender, indicando que esses casos são raros.

A conclusão de Gary Kleck e Marc Gertz na pesquisa "Resistência Armada" - que ouviu 5.000 norte-americanos, não necessariamente vítimas de crimes, em 48 dos 50 Estados do país - tem um viés diferente. Pouco mais de 1% disse ter usado uma arma para autodefesa no ano anterior, e os pesquisadores consideraram esse percentual para indicar que, em todo os EUA, há cerca de 2,5 milhões de casos anuais de armas utilizadas nesse contexto. No entanto, a metodologia do estudo, e particularmente o repasse do percentual para toda a população do país (266 milhões de pessoas em 1995), foi alvo de críticas de outros pesquisadores.

1º.out.2017 - Público corre no momento do ataque de atirador em festival em Las Vegas, Nevada - David Becker/Getty Images/AFP - David Becker/Getty Images/AFP
1º.out.2017 - Público corre enquanto o atirador Stephen Paddock dispara contra a multidão em um festival de música country em Las Vegas; 58 pessoas morreram
Imagem: David Becker/Getty Images/AFP

O quanto o uso pessoal de armas de fogo aumenta a violência?

Outro estudo publicado sobre o tema, "Ferimentos e Mortes Causados por Armas de Fogo em Residências" (Arthur L. Kellermann, 1998), analisou 628 tiroteios que ocorreram em lares em cidades do país. A pesquisa concluiu que para cada uso de arma como autodefesa em uma residência ocorrem: quatro tiroteios acidentais; sete tentativas de homicídio, roubos ou outros crimes violentos; e 11 suicídios/tentativas de suicídio.

Os dados publicados por Kellermann em 1998 indicam um problema frequentemente apontado pelos pesquisadores que cobram um controle maior sobre a venda de armas. "Há muitas evidências de que as armas em residências aumentam suicídio, homicídios de mulheres em casa e acidentes com armas", afirma Hemenway.

Citado pela "Scientific American", o pesquisador Garen  Wintemute, da Universidade da Califórnia, acrescenta: "Há estatísticas constantes que apoiam o argumento de que o acesso a armas de fogo está associado a um risco maior de mortes ou ferimentos causados por esse instrumento", argumenta.

Kleck, novamente, discorda. Segundo ele, o fato de muitas armas já estarem em circulação faz com que praticamente todos os casos de violência no país sejam cometidos com elas.

A arma não causa um efeito uniforme em promover ou contar a violência, independentemente de quem esteja usando. A saída é deixar as armas longe de pessoas violentas, que são uma parcela menor da população, mas não pode diminuir a chance das outras pessoas de se defenderem dos crimes."

Gary Kleck, pesquisador que apoia o uso de armas para defesa pessoal

Ele também rejeita o argumento de que as armas aumentam a taxa de suicídios - "a pessoa que quiser fazer isso fará de qualquer jeito, seja com armas ou com outros métodos", diz - e nega que o índice de disparos acidentais com armas tenha aumentado. Mas admite, no entanto, que existe um "custo" pelo alto número de pessoas com arma em casa. "Há o risco de ela ser roubada por um criminoso", reconhece Kleck.

Para John Donohue, falando especificamente dos massacres cometidos por atiradores nos EUA, a questão passa pela cultura "obcecada por armas" comum a boa parte da população. "Essa cultura faz com que algumas pessoas com doenças mentais personifiquem essa ideologia que aponta as armas como um instrumento para lidar com os inimigos que cada um enxerga. Combine isso com o acesso fácil a armas poderosas e chegamos a essa situação", afirma, sobre a frequência dos tiroteios em massa no país.

Publicações no Instagram de Nikolas Cruz, autor do massacre em uma escola na Flórida, mostra várias armas - Instagram via AP - Instagram via AP
Nikolas Cruz, autor do massacre em uma escola na Flórida em fevereiro de 2018, publicava várias fotos de armas em seu Instagram
Imagem: Instagram via AP

Mocinho x bandido?

Uma expressão comum de grupos pró-armas é que "elas, nas mãos de uma pessoa boa, ajudam a conter uma pessoa ruim". Essa relação, no entanto, é contestada pelo outro lado. "Esse argumento não faz sentido", diz Hemenway, para quem não é possível dividir as pessoas simplesmente entre boas e ruins.

Questionado pela "Scientific  American" sobre essa expressão, Philip Cook, estudioso do tema há cerca de 40 anos, disse que essa dicotomia é falsa e perigosa. "Um americano comum pode perder o equilíbrio emocional, fazer um julgamento errado ou interpretar uma cena equivocadamente. Ou pode ter bebido álcool", diz ele, argumentando que uma pessoa nessa situação pode causar uma consequência mais grave se estiver portando uma arma.

Kleck observa a expressão de uma outra maneira. "Se não podemos falar exatamente em pessoas boas ou ruins, existe uma maneira de entender isso, em termos de legislação. A lei norte-americana faz uma distinção clara, embora não seja perfeita, entre pessoas que foram ou não condenadas por crimes", diz ele.

"Assim, tiramos as armas de quem tenha sido condenado por um crime, que é mais suscetível de cometer outro crime no futuro, e não tiramos do restante da população. Não é uma solução perfeita porque há pessoas que ainda não estão condenadas e cometerão violência se pegarem uma arma, mas essa é a alternativa mais prática que temos. É melhor do que nada", ressalta.

Armas nos EUA - Alex Wong/Getty Images/AFP - Alex Wong/Getty Images/AFP
Imagem: Alex Wong/Getty Images/AFP

Há espaço para uma solução comum?

Apesar do debate e das visões opostas, há sim uma solução comum apontada por defensores e críticos das armas: a intensificação da verificação de antecedentes na comercialização do produto. Hoje, por exemplo, apenas as lojas oficiais são obrigadas a realizar essa prática --onde comprou sua AR-15 o atirador da Flórida; em transações particulares, boa parte dos Estados não exige qualquer verificação de antecedentes do comprador.

Gary Kleck aponta que, primeiramente, os EUA precisam expandir essa obrigação também no caso de transferências particulares.

Outro passo importante seria ampliar o banco de dados de indivíduos vetados de adquirir armas e garantir que todas as autoridades tivessem acesso a essas informações. "Isso seria aceito por quase todo mundo. Ninguém se opõe a isso, ou a impedir que pessoas com doença mental possuam armas. Os dois lados podem se unir nessa questão", diz Kleck.

Donohue concorda. "A verificação universal de antecedentes criminais é a que tem maior apoio da população, mas outras medidas precisam ser tomadas, como a melhoria do sistema para garantir que todos os indivíduos vetados de comprar armas estejam devidamente identificados."

Kleck também defende mudanças na lei para dificultar o acesso de pessoas que possuam algum tipo de distúrbio mental - perfil muitas vezes associado ao de atiradores em massa - às armas. Ele diz que é preciso revisar a questão da confidencialidade médica para que as informações sobre o quadro de saúde dessas pessoas estejam disponíveis para as autoridades, consequentemente impedindo que elas possam comprar armas de fogo.

Segundo ele, o grande empecilho para medidas que restringem a venda de armas é a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês), a maior organização pró-armas do país, e outros grupos mais extremos que são contra a verificação universal de antecedentes. "Mas a NRA já teve outra posição sobre isso, então isso pode ser novamente alterado. De qualquer maneira, acredito que nos próximos anos mais parlamentares a favor do controle de armas ingressarão no Congresso, tirando poder de políticos de extrema-direita que impedem essas mudanças", diz ele.