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Ela se vestiu de menino para enganar o talibã e estudar; hoje, ensina garotas afegãs a liderar

Por cinco anos, Shabana vestiu-se de menino e frequentou uma escola secreta  - Divulgação/Sola
Por cinco anos, Shabana vestiu-se de menino e frequentou uma escola secreta Imagem: Divulgação/Sola

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

24/03/2018 04h01

A afegã Shabana Basij-Rasikh, 28, tinha seis anos quando o movimento islâmico talibã proibiu as garotas de irem para a escola, em 1996. Por se tratar de um grupo radical, a ordem era inegociável. Mas não para seus pais, que, apesar dos riscos, continuaram incentivando a educação das filhas --uma situação cheia de peculiaridades, claro, se considerado aquele ambiente tão marcado por tirania, violência e ameaças.

Durante os cinco anos seguintes à proibição, Shabana se vestiu como garoto e frequentou uma escola secreta em Cabul. O fato de ter cabelo curto, ser franzina e usar trajes tradicionalmente masculinos, conta, tornava seu visual convincente. Vestida de menino, carregava os livros em sacolas de mercado para não despertar suspeitas. Também por este motivo fazia todos os dias um trajeto diferente --assim o percurso, que levava até 40 minutos, se estendia com frequência por mais de uma hora de caminhada.

Ela acompanhava a irmã cinco anos mais velha, que usava burca: as duas sempre fingiam ter ido às ruas para fazer compras. Havia ainda dois irmãos, que puderam continuar na escola tradicional, outra irmã mais velha, já formada no colegial, e uma mais nova, sem idade para frequentar as aulas. Os pais sabiam a hora que as duas filhas saíam de casa, mas nunca quando voltariam: um cronograma desorganizado, inclusive no tempo de duração das aulas, deixava menos evidente o grave ato de desobediência.

Chegávamos em casa e dizíamos que tínhamos medo, implorávamos para que não nos mandassem mais à escola. Não entendíamos como eles [pais] arriscavam tanto para termos educação: achávamos uma atitude até cruel 

O medo era constante. Assim como as dúvidas sobre o que os talibãs sabiam a respeito da escola secreta, localizada na sala de estar de uma casa comum, onde dezenas de crianças se espremiam. O maior temor se materializava nos carros de patrulhas talibãs, com poder para interrogar qualquer pessoa. “Se isso acontecesse, eles encontrariam nossos livros e nos forçariam a levá-los até nossa casa ou a escola. Colocaríamos muita gente em risco, pois era uma época em que não havia celular para dar alertas”, contou em conversa via Skype. 

Roupas de menino, escola secreta e medo do talibã: a vida de uma jovem estudante no Afeganistão shabana ensina - Divulgação/Sola - Divulgação/Sola
Shabana, à direita, ensina estudante em escola só para garotas no Afeganistão
Imagem: Divulgação/Sola

Da escola secreta para a palestra em Harvard

Duas décadas separam esta entrevista dos desafios que Shabana enfrentou para estudar na infância. Com voz calma, ela hoje relata essas lembranças em inglês fluente --consegue achar graça de algumas situações e diz que, quando não se sentia ameaçada, tinha uma vida comum e até divertida.

O aprendizado da língua estrangeira começou em 2004, também sob influência dos pais: respeitados no Afeganistão pelo bom nível de educação, eles diziam sentir-se analfabetos em outros países por não saberem falar a “língua global”.

A fluência veio durante os cinco anos em que estudou nos Estados Unidos --por lá terminou o colegial e fez faculdade de relações internacionais com foco no Oriente Médio e em questões de mulheres e gênero. Tem também no currículo um doutorado honorário da Universidade de Londres, diversos prêmios, palestras --inclusive em Harvard-- e destaques em relevantes listas internacionais (como uma de mulheres em papéis de liderança, elaborada pela rede CNN em 2014). 

O reconhecimento vem principalmente do trabalho de Shabana como presidente e cofundadora da Sola, sua escola no Afeganistão para formar mulheres líderes.

O projeto foi criado em 2008, quando ainda vivia nos EUA, com foco em conseguir intercâmbio estudantil para afegãs. Transformou-se em um internato no Afeganistão, que a princípio oferecia três anos de ensino médio concluídos em outros países --60 alunas já passaram por esse processo. Atualmente, a duração do curso é de sete anos e há 70 estudantes, sendo que nenhuma delas paga por isso (o dinheiro vem de doações). O objetivo, diz Shabana, é atender simultaneamente 135 garotas. 

Shabana Basij-Rasikh, que tem uma escola para garotas no Afeganistão SOLA  - Divulgação/Sola - Divulgação/Sola
Sola tem atualmente 70 alunas que vivem e estudam no local; objetivo é chegar a 135
Imagem: Divulgação/Sola

Sai o regime talibã, entram as escolas

Para entender como a garota do começo deste texto chegou tão longe é preciso concluir aquela primeira história.

Shabana continuou indo à escola secreta até os 11 anos, com seus pais insistindo na importância da educação: “O talibã pode tirar tudo de nós, mas não aquilo que está dentro da nossa cabeça. O conhecimento é um poder que temos e queremos que vocês também tenham”, diziam aos filhos. Foi só quando o governo caiu, em 2001, que ela pôde pela primeira vez frequentar uma instituição pública de ensino para garotas. Ou uma “escola de verdade”, nas palavras do pai. 

Na ocasião, todas as alunas tiveram de fazer uma prova para saber em que nível elas estavam. Seu conhecimento era equivalente ao da sétima série, com todas as suas colegas de classe sendo seis anos mais velhas. Aquelas na sua faixa etária estavam na primeira série, seis anos atrasadas, pelo fato de terem sido forçadas a abandonar os estudos durante o regime talibã. “Pela primeira vez, entendi o que os meus pais haviam feito: percebi naquele momento a importância de estudar, apesar dos riscos”, lembra, emocionada.  

Fui completamente inundada por um sentimento de amor e admiração pelos meus pais, sem saber se algum dia eu poderia agradecê-los por terem me dado um futuro diferente. Prometi naquele dia que faria meu melhor para deixá-los orgulhosos 

Shabana Basij-Rasikh, que tem uma escola para garotas no Afeganistão SOLA  - Divulgação/Sola - Divulgação/Sola
Shabana estudou nos EUA; ela diz que se sentia culpada pelo fato de sua família e amigos não terem acesso àquela realidade
Imagem: Divulgação/Sola

A novidade de viver em paz

O primeiro grande passo no cumprimento de sua promessa foi passar em um processo seletivo do governo norte-americano para concluir o colegial nos Estados Unidos --o que Shabana fez em 2005.

Sobre esta experiência, ela diz ter ficado impressionada com o fato de as garotas não precisarem se esforçar para ir à escola, um direito garantido nos EUA, e pelos muitos recursos disponíveis nas mais diversas áreas: “Era tudo novo para os meus olhos e eu me espantava com o fato de as pessoas não darem valor àquilo”.

Entre tantas novidades, a maior delas foi, pela primeira vez na vida, experimentar a sensação de paz. “Não acreditava que era possível viver sem nenhuma preocupação. A princípio eu achava que algo ruim aconteceria e então eu diria: ‘Ah, está vendo? A vida é assim’”. Quando nada de ruim aconteceu, Shabana começou a curtir sua nova vida --aprender a andar de bicicleta, define, lhe deu a sensação de “ser a dona do mundo”.

O tempo todo, no entanto, ela diz que experimentava uma sensação de culpa pelo acesso àquela realidade que seus familiares e amigos do Afeganistão desconheciam.

Em 2006 voltou para seu país e, de lá, inscreveu-se para processos seletivos em universidades norte-americanas. Foi aprovada no Middlebury College (Vermont, EUA), onde estudou de 2007 a 2011 --ainda era universitária quando colocou em prática o projeto da Sola. Hoje formada, ela afirma que trabalhar na escola é a forma que encontrou de combater a ignorância, brigar com o talibã e mostrar sua gratidão pelas oportunidades que recebeu.

Alguns dizem que sou corajosa, uma heroína por ter criado a Sola. Mas não é nada disso: criei essa escola para me sentir melhor, sentir menos culpa. Faço tudo isso também por razões que podem ser consideradas egoístas 

Shabana Basij-Rasikh, que tem uma escola para garotas no Afeganistão SOLA girl power  - Divulgação/Sola - Divulgação/Sola
Escola tem um rígido processo seletivo, pois o objetivo é formar as futuras líderes afegãs
Imagem: Divulgação/Sola

A escola para formar líderes afegãs

A organização internacional Human Rights Watch, de defesa de direitos humanos, calcula que dois terços das garotas afegãs estavam fora da escola em 2017. O impacto disso fica evidente na diferença entre o número de professoras e professores do país: segundo a Sola, na província de Paktika são 3.111 contra 16 --deste total, somente uma das educadoras chegou até a formação colegial.

Muitas famílias ainda desencorajam a educação das garotas, especialmente nas áreas rurais. Quando chegam à adolescência, são grandes as chances de elas se casarem para começar suas próprias famílias. E, apesar de o governo afegão não ser mais representado por talibãs, esse grupo continua presente, violento e atuante no país, tentando impor suas crenças --inclusive aquela de que as mulheres não devem estudar. 

Também por isso a Sola mantém diversas medidas de segurança, como não divulgar seu endereço nem os nomes das alunas ou dos funcionários. Shabana é a única pessoa identificada nominalmente nesse projeto.

O que fazemos é perigoso: mantemos a discrição e levamos as questões de segurança a sério. Mas seria ainda mais perigoso não fazer nada por essas garotas

Mesmo em um cenário desfavorável, o número de garotas que tentaram uma vaga na Sola neste ano chegou a 130. Destas, apenas 12 foram aprovadas em um processo de seleção descrito por Shabana como rígido.  Além do histórico escolar, um critério importante é a capacidade de as garotas usarem o conhecimento adquirido para melhorar a vida das pessoas à sua volta. O objetivo, como deixa claro o nome da escola, é formar líderes.

Quando você educa uma garota, muda toda a história daquela família, incluindo as gerações que vêm depois. Uma mãe educada nunca vai criar seus filhos de outra forma

Shabana Basij-Rasikh, que tem uma escola para garotas no Afeganistão SOLA sala de aula  - Divulgação/Sola - Divulgação/Sola
Curso na Sola tem duração de sete anos; garotas concluem a formação no exterior
Imagem: Divulgação/Sola

“É incrível sua transformação. Muitas chegam tímidas e algumas são as primeiras em suas famílias a receber educação formal. Em um ano elas desabrocham, ficam mais responsáveis, independentes, confiantes, espertas, curiosas, gentis. A mudança é visível”, afirma Shabana. As garotas moram na escola, onde Shabana também passa parte do tempo --é comum ela viajar a outros países para divulgar o projeto e arrecadar dinheiro.

Quanto a seus pais, tão presentes nessa história, Shabana conta que acompanham suas conquistas e a ajudam a manter os pés no chão. “Não tinha contado a eles sobre a palestra em Harvard, mas alguém postou no Facebook e assim ficaram sabendo. Meu pai me ligou logo na sequência, dizendo estar orgulhoso de mim: são poucas as pessoas de 20 e poucos anos que recebem um convite desse tipo.” Elogio feito, o patriarca reforçou que a filha não deixasse aquilo tudo subir à cabeça. Prova de que a educação é um processo sem fim.