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Conheça os núbios: povo expulso das margens do Nilo há 50 anos, que agora sonha voltar para casa

Crianças núbias que vivem na aldeia "tahgeer" de Eneiba - Nariman El-Mofty/AP
Crianças núbias que vivem na aldeia "tahgeer" de Eneiba Imagem: Nariman El-Mofty/AP

Hamza Hendawi

Da Associated Press, em Aswan (Egito)

18/07/2018 04h01

O mundo dos pais e avós foi virado de ponta-cabeça há mais de 50 anos, quando foram expulsos de aldeias ao longo do rio Nilo para dar lugar à Barragem Alta. Agora, uma geração mais jovem reviveu a causa há muito adormecida dos núbios do Egito, fazendo campanha por um retorno às suas terras e lutando para preservar sua cultura.

Mas o momento não poderia ser pior.

As recentes marchas pacíficas dos núbios foram reprimidas pelo presidente Abdel-Fattah el-Sissi. Para um Estado dominado pelos militares e pelas agências de segurança, a afirmação dos núbios de sua identidade e herança diferentes em meio à maioria árabe parece uma ameaça à estabilidade.

"Este país tem tantas cores e etnias e é tão destrutivo que estamos tentando reforçar apenas uma identidade", disse Fatmah Imam, ativista núbia nascida e criada no Cairo. Mesmo durante seus dias na universidade, ela lembrou, a mensagem incutida era a de que o país deveria ser homogêneo.

É doloroso para mim ver que sou impossibilitada de manifestar a minha identidade. Vejo o Egito como um mosaico

Fatmah Imam, ativista da etnia núbia

Os núbios são um grupo étnico antigo que, durante os tempos faraônicos, viveu ao longo do Nilo em um território que ia do sul do Egito ao norte do Sudão, chegando a governar por um período na 25ª dinastia, 3.000 anos atrás. Mais escuros do que a maioria dos egípcios, eles têm uma língua e uma cultura distintas da maioria árabe do país.

O século 20 trouxe uma série de deslocamentos, começando com a construção do primeiro reservatório em Assuã em 1902. O maior êxodo veio com a construção da represa nos anos 50 e 60 sob o domínio do carismático e autoritário Gamal Abdel-Nasser. Cerca de 50 mil pessoas foram submetidas a um reassentamento forçado em 1963 e 1964, e a criação do lago Nasser inundou a terra ancestral.

O sonho deles, desde então, é retornar à terra ao longo do lago perto de suas aldeias originais.

Rapaz núbio nada no rio Nilo, na região de Aswan - Nariman El-Mofty/AP - Nariman El-Mofty/AP
Rapaz núbio nada no rio Nilo, na região de Aswan
Imagem: Nariman El-Mofty/AP

Ativistas núbios encontraram inspiração na revolta pró-democracia de 2011 que derrubou o autocrata Hosni Mubarak. Em 2014, pareceu haver um grande avanço quando os criadores de uma nova Constituição incluíram uma cláusula que, pela primeira vez, reconheceu os núbios como um grupo étnico e comprometeu o Estado a organizar seu retorno às terras tradicionais e desenvolver essas áreas até 2024.

Mas, até agora, nada de concreto foi feito, dizem ativistas.

Sucedendo uma geração traumatizada pelo deslocamento, jovens ativistas núbios dizem que estão determinados a trazer mudanças.

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Mohammed Haroun, 65, senta-se em frente à sua casa em Wadi Karkar, um novo complexo em construção no deserto - Nariman El-Mofty/AP - Nariman El-Mofty/AP
Mohammed Haroun, 65, senta-se em frente à sua casa em Wadi Karkar, um novo complexo em construção no deserto
Imagem: Nariman El-Mofty/AP

“Você não deve se preocupar com o futuro. Eu pessoalmente sinto que o futuro, se Deus quiser, será querido e generoso para todos vocês”, disse o então presidente egípcio Gamal Abdel-Nasser aos núbios em 1960.

Os núbios mais velhos lembram-se vividamente de suas vidas em sua terra original. Eles falam de aldeias dispersas de casas grandes pintadas em cores brilhantes espalhadas ao longo do Nilo. O recuo das águas do rio após inundações anuais deixava as terras férteis.

O mais importante para eles era o vínculo com o Nilo. Por gerações eles viveram em suas margens. Seus rituais estavam intimamente ligados a ele. Eles batizavam seus filhos em suas águas e, antes dos casamentos, os noivos se banhavam no rio. Nos feriados, eles boiavam pratos de comida em sua corrente para os míticos guardiões do rio. Embora muçulmanos, os núbios têm tradições de um passado cristão misturadas com sua identidade; por exemplo, em casamentos, os convidados geralmente clamam a Jesus e a Maria por bênçãos, bem como ao profeta Maomé, do islamismo.

Quando o governo reinstalou os núbios na década de 1960, eles ouviram que faziam um grande sacrifício pelo progresso do Egito, abandonando suas aldeias por causa de uma represa que levaria energia elétrica e modernizaria a nação.

Em troca, as autoridades prometeram que o sistema socialista lhes garantiria um futuro próspero: novas casas com eletricidade, água corrente e terras agrícolas.

Funcionários correram para retirar os núbios enquanto as águas do Nilo subiam. Os núbios dessa geração se lembram das famílias empacotando freneticamente as posses e puxando gado para os barcos fluviais, enquanto oficiais, soldados e membros do único partido político da época, a União Socialista, gritavam: "Yallah, yallah!" ou, em português: "Vamos lá!"

Os núbios foram transferidos para 44 novas aldeias, a maioria concentrada na área de Kom Ombo, ao norte de Assuã, a mais de 200 quilômetros de sua região natal.

O que encontraram por lá foi um golpe assustador. Em algumas aldeias, as casas ainda não haviam sido construídas, havia apenas contornos de giz. As moradias que estavam prontas eram pequenas e apertadas. Muitas vezes não havia água corrente ou eletricidade. Plantações não puderam ser cultivadas porque ainda não havia sido construído um canal.

Mas a situação era ainda pior, já a maioria das aldeias ficava a quilômetros de distância do Nilo. O fato das novas aldeias terem os mesmos nomes das aldeias núbias submersas era quase cruel. Os locais ficaram conhecidos como as aldeias de "tahgeer", ou exílio.

"As pessoas sentiram que foram enganadas e os primeiros anos aqui foram muito duros", lembrou Mohammed  Dawoud, 71, sentado em uma mesquita depois das orações do atardecer em Abu Simbel, uma das aldeias tahgeer.

Os núbios até hoje sentem o trauma de terem tido sua comunidade destruída. Muitos deixaram as novas aldeias empobrecidas para se mudar para o Cairo, Alexandria e outras cidades para encontrar empregos, muitas vezes como empregados domésticos ou porteiros. Os hábitos desapareceram. Embora a língua núbia ainda seja falada em alguns lares, ela não é ensinada nas escolas, assim como a história ou cultura núbia também não são. Não há dados oficiais, mas algumas estimativas colocam o número de núbios hoje de 3,5 milhões a 5 milhões.

Nos 50 anos que se passaram desde então, as aldeias tahgeer tornaram-se indistinguíveis das cidades árabes vizinhas, uma expansão de blocos de apartamentos feios cobertos de poeira instalados em meio à pobreza e ao subdesenvolvimento.

Naemah Hussein, 85, mora na aldeia "tahgeer" de Eneiba, no Egito - Nariman El-Mofty/AP - Nariman El-Mofty/AP
Naemah Hussein, 85, mora na aldeia "tahgeer" de Eneiba, no Egito
Imagem: Nariman El-Mofty/AP

Falando em árabe com um forte sotaque núbio, Naemah Hussein, uma avó de 85 anos, disse que sua casa em sua aldeia original de Eneiba ficava às margens do Nilo, onde ela batizou seus dois primeiros filhos. Eneiba, na época, tinha um dos melhores portos fluviais do país, construído pelos ingleses na década de 1930.

Hoje ela mora no tahgeer  Eneiba, longe do Nilo. Desde que foi expulsa, teve mais quatro filhos.

"Bem, é uma vida", disse Hussein, um dos filhos, com uma resignação amarga. "Agora nem nos meus sonhos eu vejo o rio."

Visão geral de Abu Simbel, uma das aldeias "tahgeer", a sudoeste de Aswan, no Egito - Nariman El-Mofty/AP - Nariman El-Mofty/AP
Visão geral de Abu Simbel, uma das aldeias "tahgeer", a sudoeste de Aswan, no Egito
Imagem: Nariman El-Mofty/AP

Nossos filhos agora servem aos netos dos estrangeiros e dos paxás. E nós estamos aqui, deixados como cabras no vale do diabo. ... Eles nos mataram, meu filho. As pessoas com pele clara nos mataram.

Do conto Adeus minha avó, de Haggag  Oddoul

Haggag Oddoul, aos 74 anos, passou a vida narrando as misérias do deslocamento dos núbios em dúzias de romances e contos enquanto lutava pelos direitos de sua comunidade.

Governos sucessivos, disse ele, tentam dissolver a comunidade e veem qualquer diversidade como ameaça. Ele diz que os árabes suspeitam que os núbios, se estivessem de volta às terras, procurarão se separar. Eles negam.

"Fazemos parte das tamareiras e do Nilo", disse à AP em sua casa, um pequeno apartamento que divide com sua esposa em Alexandria.

Oddoul fez parte da comissão que escreveu a constituição de 2014 e foi uma força importante na inclusão da cláusula que reconhece o direito dos núbios a retornar.

Ele vê isso como um ganho - "Eu ainda acho que a constituição é mais do que apenas tinta no papel".

Mas, ele disse, os núbios nunca conseguirão seus direitos sem pressionar por eles. Ele citou como inspiração o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos e a ardente retórica do falecido campeão peso-pesado de boxe Muhammad Ali.

A geração de hoje, disse ele, está menos disposta a tolerar a discriminação, apontando para o estereótipo do núbio entre os egípcios como um servo feliz - o garçom alegre ou o leal porteiro.

Jovens núbios são agressivos agora. Fiquei cansado do estereótipo do núbio do bonzinho. Agora sou o núbio agressivo. 

Ativista Waleed Toka posa para foto no Cairo - Nariman El-Mofty/AP - Nariman El-Mofty/AP
Ativista Waleed Toka posa para foto no Cairo
Imagem: Nariman El-Mofty/AP

“Eles (os núbios) vão para um lugar onde serão compensados pela opressão, humilhação e desemprego com justiça, dignidade, trabalho e prosperidade”, discursou para os núbios Hikmat Abu Zeid, ministro da Solidariedade Social, antes do início das evacuações em 1963.

Siham  Othman, uma professora de 30 anos nascida em Assuã, foi criada ouvindo histórias do país antigo. Após a evacuação, sua família acabou em Alexandria e seu avô se tornou um marinheiro mercante, viajando pelo mundo.

Quando ele contava história a ela, nunca falava sobre suas viagens, apenas sobre os núbios, Othman disse.

"Ele é quem plantou o sonho de voltar em mim", disse ela.

"A geração mais velha de núbios aceitou o status quo", disse ela. “O ativismo deles estava restrito a conferências, mas sem ativismo de rua. Agora há um novo espírito."

Mas a situação é difícil. Othman está entre os 50 ativistas núbios que estão sendo julgados, enfrentando acusações que poderiam levá-los à prisão por até cinco anos, após protestos no ano passado.

Em setembro, cerca de 100 nubianos marcharam por Aswan, cantando canções tradicionais e batendo tambores. A polícia rapidamente interrompeu a manifestação, prendendo mais de duas dúzias de pessoas. Uma delas, um conhecido ativista que sofre de vários problemas de saúde, morreu sob custódia, provocando um novo protesto e uma nova onda de prisões.

No ano anterior, um comboio de carros partiu de Assuã para as terras núbis. Eles foram interceptados pelas forças de segurança e, depois de um impasse de quatro dias, foram forçados a retornar a Aswan.

"O governo está se tornando cada vez mais rígido em sua abordagem à questão núbia", disse Othman.

Isso parece ser pelo menos em parte por causa da maneira como as agências de segurança abordam a questão. Logo após a aprovação da Constituição de 2014, o Parlamento elaborou uma lei para o desenvolvimento de terras núbias, mas as agências de inteligência questionaram a algumas disposições, disse um alto funcionário envolvido na questão. Ele falou sob condição de anonimato porque não estava autorizado a falar com a imprensa.

Então el-Sissi emitiu um decreto estendendo uma zona de segurança ao longo da fronteira com o Sudão, uma rota importante para os militantes que entram no Egito para se juntar a uma insurgência no Sinai. A expansão colocou uma série de áreas que os núbios querem retornar para dentro da zona, onde o assentamento é barrado.

Em maio, o Parlamento aprovou uma lei criando uma agência estatal para desenvolver economicamente todo o sul do Egito, mas não mencionou especificamente os núbios. Ativistas se opõem à lei, dizendo que ela visa diluir sua causa a agrupando com um desenvolvimento mais amplo.

Em um debate sobre a legislação, o presidente do Parlamento, Ali Abdel-Al, um defensor próximo de el-Sissi, ecoou a ideia de que reconhecer a identidade núbia ameaça a estabilidade. Ele chamou a cláusula constitucional sobre os núbios de “uma mina terrestre” e disse que referir-se a qualquer grupo de egípcios por sua identidade étnica era perigoso.

Durante uma visita a Aswan no ano passado, el-Sissi falou amplamente sobre o cumprimento das exigências núbias, mas falou sobre o desenvolvimento sem mencionar o retorno do etnia.

“O governo quer implementar a Constituição e quer ver os núbios retornarem à sua região. Mas isso precisa de tempo ”, disse Mustafa Bakry, um legislador próximo aos militares que fizeram a mediação entre ativistas e o governo.

O ritmo lento e a repressão convenceu alguns ativistas que o retorno não ocorrerá tão cedo. Eles estão se concentrando em resgatar a cultura núbia do desaparecimento. Um deles lançou um canal no YouTube que transmite em língua núbia por duas horas todos os dias. Outro desenvolveu um aplicativo móvel para ensinar aos jovens o idioma.

Fatmah Imam disse que os ativistas não devem diminuir a pressão, que, segundo ela, forçou as autoridades a falar sobre o assunto. "Não temos escolha senão continuar nossa luta", disse ela.

"Pelo que vejo, há muita raiva reprimida entre os núbios. Nem tudo ainda veio à tona."