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Governo espanhol quer exumar corpo de ditador e proibir fundação que cuida de legado

Manifestantes seguram faixas com retratos de pessoas mortas ou torturadas durante a ditadura de Francisco Franco em frente à antiga sede da Segurança Nacional, em Madri - Gerard Julien/AFP
Manifestantes seguram faixas com retratos de pessoas mortas ou torturadas durante a ditadura de Francisco Franco em frente à antiga sede da Segurança Nacional, em Madri Imagem: Gerard Julien/AFP

Aritz Parra

Da Associated Press, em Madri

06/08/2018 20h25

Mesmo em seu túmulo, o ditador Francisco Franco, que governou a Espanha com mão de ferro, continua dividindo o país.

O novo governo de centro-esquerda da Espanha disse que remover o corpo embalsamado do general de um mausoléu será o primeiro entre muitos movimentos simbólicos que visam lidar com a conturbada história espanhola.

Críticos do governo e dos descendentes de Franco prometem preservar a memória de um regime que eles afirmam merecer levar crédito por "modernizar a Espanha".

Proibir a fundação que preserva o legado de Franco é precisamente o que deveria ser feito, diz Fernando Martinez, o funcionário designado para supervisionar os esforços do governo para desenterrar e identificar as 114 mil ou mais vítimas da Guerra Civil Espanhola de 1936-39 e das quatro décadas de ditadura que se seguiram sob Franco, morto em 1975.

“Exumar o corpo do ditador começará a curar as feridas deste país. Mas essa tarefa só será concluída quando a última sepultura com uma vala comum neste país for aberta”, disse Martinez à Associated Press, em entrevista no Ministério da Justiça em Madri, onde sua nova Diretoria Geral para a Memória Histórica está sendo formada.

Martinez diz que a criação de um Censo atualizado de enterros anônimos em valas em todo o país está entre as tarefas mais urgentes para o novo governo do primeiro-ministro Pedro Sanchez. Outros movimentos incluem a reabertura de um escritório para ajudar parentes de vítimas --fechado sob o governo conservador anterior--, a criação de um novo sistema de pagamento de reparos e a transformação do atual local de enterro de Franco em um museu contra o fascismo.

"Vamos acelerar e compensar o tempo perdido, é uma questão de dignidade democrática", disse Martinez, que foi nomeado em julho depois que Sanchez derrubou o conservador Mariano Rajoy, em junho.

Três missões patrocinadas pela ONU (Organização das Nações Unidas) para a Espanha desde 2013 criticaram as autoridades por não terem um plano nacional para procurar pessoas desaparecidas, pela má coordenação em exumações e pelos mapas desatualizados de sepulturas. Eles também levantaram preocupações sobre a falta de ação dos tribunais espanhóis em processar alguns dos crimes mais sombrios do período.

Mas um painel de especialistas em direitos humanos da ONU recentemente elogiou o movimento das autoridades por “colocar o direito à verdade no topo da agenda política”, liderando os esforços para procurar por aqueles desaparecidos, bem como por prometer criar uma Comissão da Verdade para investigar crimes que ocorreram sob Franco até a sua morte.

“Esta decisão representa um passo fundamental para a realização do direito à verdade para todas as vítimas de graves violações dos direitos humanos”, escreveram os relatores.

O governo quer adotar as mudanças, alterando a Lei de Memória Histórica de 2007, que ficou aquém das exigências dos sobreviventes e parentes das vítimas quando o governo conservador de Rajoy cortou orçamentos para exumações e reparações.

Emilio Silva, presidente da Associação para Recuperação da Memória Histórica (ARMH), diz que o novo governo deveria usar seus poderes executivos para remover Franco do Vale dos Caídos --um mausoléu macabro a 50 quilômetros a noroeste de Madri. Ele também quer que o governo abra todos os túmulos das vítimas de Franco, em vez de dar início a um grande confronto político entre vozes conservadoras e progressistas no Parlamento.

"Eles temem uma reação legal", disse Silva sobre o governo. Mas ele considera desenterrar covas sem identificação e compensar os parentes de vítimas identificadas como “coisas humanas muito básicas". "Não deveria haver necessidade de discuti-las."

Com uma imponente cruz de 150 metros de altura que pode ser vista a quilômetros de distância, o sombrio mausoléu em estilo neoclássico e a basílica do Vale dos Caídos foram construídos por Franco como uma homenagem aos mortos durante a chamada "cruzada gloriosa" em derrubar o governo democrático da Espanha.

Cerca de 34 mil pessoas de ambos os lados da guerra fratricida estão enterradas no local --a maioria delas nunca foi identificada-- com os restos mortais de Jose Antonio Primo de Rivera, o fundador do partido fascista espanhol Falange. O túmulo de Franco, uma simples lápide de granito com apenas seu nome gravado, preside o altar da basílica. Flores novas estão sempre em exibição.

Os eventos públicos que apoiam o regime de Franco foram proibidos em 2007, mas o local grandioso continua a ser um destino de peregrinação popular para os nostálgicos da ditadura.

Ativistas dizem que todo o lugar emana um ar totalitário e é um insulto à memória das vítimas. Eles também estão zangados com o estado decrépito dos restos mortais, com vazamentos de água que transformaram as criptas em “pilhas de ossos”, segundo a avaliação de um especialista em 2011.

Martinez diz que a revisão da lei incluirá uma proposta para remover símbolos que celebram a ditadura e transformará o Vale em um monumento para a reconciliação e um museu que abordará os abusos durante a construção do local, incluindo o uso de prisioneiros políticos como trabalhadores escravos.

Mas o governo, que não conseguiu exumar Franco até julho como prometido, está enfrentando uma série de obstáculos, incluindo sua fraca posição no Parlamento.

Centenas de pessoas nostálgicas ao franquismo realizaram protestos no Vale, e partidos conservadores estão acusando a administração de Sanchez de reabrir um capítulo que consideram fechado em vez de se concentrar em problemas do século 21.

Enquanto isso, descendentes da família de Franco estão se recusando a cooperar com as autoridades, montando um processo legal contra os planos de exumar o ditador e se recusando a levar seus restos mortais para a sepultura da família na Galícia. Com sua recusa, as autoridades enfrentam o dilema do que fazer com os restos mortais de Franco.

Exumar o corpo de Franco, disse Martinez, visa "consolidar nossa democracia", que foi instituída pacificamente no final dos anos 70 após a morte do ditador.

Martinez recusou-se a arriscar uma data para a exumação de Franco. Mas mesmo que tenha sucesso, o governo de Sanchez enfrentará a tarefa politicamente sensível de proibir a Fundação Nacional Francisco Franco, que até 2003 estava recebendo financiamento público para salvaguardar documentos do regime de 1939-1975.

A Fundação Franco não respondeu aos pedidos da AP para comentários, mas em recentes declarações online, autoridades disseram que qualquer tentativa de bani-las seria contra a Constituição espanhola, que protege a liberdade de expressão. O presidente da fundação, o general aposentado Juan Chicharro, escreveu que o órgão deve se defender da "proibição escalonada de todos aqueles que não se dobram às exigências totalitárias" da esquerda espanhola.

Silva da ARMH disse que "proibir a fundação não limita sua liberdade de expressar suas ideias", apenas restringe seu acesso ao financiamento público.

Martinez acredita que a questão não é sobre liberdade de expressão, mas sobre proteger a democracia da Espanha.

"Cada fundação que justifica o franquismo não tem espaço na democracia, da mesma forma que não apoiaria o fascismo ou a ideologia nazista, porque são ideologias que vão contra os valores e liberdades democráticas", disse ele. "Aqueles de nós a favor da democracia têm um mandato para defender a democracia."