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Agenda de direitos humanos não pode ser desvalorizada em um país como Brasil, diz Comissão da OEA

A chilena Antonia Urrejola Noguera, relatora para o Brasil na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos) - Divulgação/CIDH OEA
A chilena Antonia Urrejola Noguera, relatora para o Brasil na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos) Imagem: Divulgação/CIDH OEA

Talita Marchao

Do UOL, em São Paulo

05/11/2018 18h52

O crescimento dos discursos de ódio no Brasil está no radar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA (Organização dos Estados Americanos), que iniciou nesta segunda-feira (5) a primeira visita ao país em mais de duas décadas. Em entrevista ao UOL, a relatora do órgão para o Brasil, a chilena Antonia Urrejola Noguera, defende que "não pode haver retrocessos nestas áreas. A agenda de direitos humanos não pode ser desvalorizada em um país tão importante como o Brasil, seja na opinião pública, seja nos meios de comunicação, seja nas políticas públicas."

A última visita da CIDH ao Brasil foi em 1995. O grupo iniciou os trabalhos em Brasília nesta segunda e deve visitar oito estados, entre eles Minas Gerais, onde passarão pela cidade de Mariana, palco do maior desastre ambiental brasileiro. Durante as duas semanas em que estará no país, a comissão visitará ainda o Rio de Janeiro, onde planeja conversar com os responsáveis pelas investigações do caso envolvendo o assassinato da vereadora Marielle Franco e também os responsáveis pela intervenção militar na segurança pública do estado.

"No Brasil, temos observado um aumento do número de denúncias de violações de direitos humanos junto aos espaços internacionais. Isso normalmente ocorre quando a sociedade civil não está encontrando canais internos para resolver de maneira satisfatória as suas demandas. É uma tendência observada desde os grandes eventos que o país sediou, do impacto ambiental das grandes obras realizadas, do impacto dos protestos de junho de 2013, da recente intervenção e militarização da segurança pública no Rio de Janeiro, do aumento das tensões com os trabalhadores rurais e com os povos indígenas, com as reformas legislativas que afetam os direitos dos trabalhadores", afirma Antonia Urrejola.

"Os discursos de intolerância e ódio devem ser um ponto de atenção, pois sabemos que repercutem no dia a dia da afirmação dos direitos e na proteção da integridade física e psicológica das pessoas defensoras de direitos humanos. É necessário pensar em como avançar para seguir na rota de ampliar a inclusão e a proteção social com enfoque de direitos humanos", diz a chilena.

A qualidade da democracia brasileira está proporcionalmente relacionada com a proteção aos direitos humanos. É preciso estar atentos com o que os governantes falam e não apenas com o que fazem

Antonia Urrejola Noguera, relatora da CIDH

Questionada sobre como a CIDH vê o aumento de militares eleitos para cargos públicos e compondo o Executivo do próximo governo, Antonia Urrejola ressalta que "a eleição de militares é parte da democracia, respeitadas as regras de cada país. O importante sempre é que todos os representantes eleitos tenham compromisso com o Estado de Direito, o que pressupõe profundo respeito à Constituição do país e aos tratados e convencionais internacionais que o país soberanamente aderiu e ratificou."

"Se espera de todos os países que a sua institucionalidade de direitos humanos aumente, e não diminua, pois as violações e os desafios de proteção aos cidadãos estão aumentando frente a uma sociedade cada vez mais complexa. Por exemplo, o Brasil foi um dos primeiros países a criar e manter um ministério ou uma secretaria com status ministerial próprio para os Direitos Humanos, uma boa prática e um exemplo que foi seguido por muitos outros países", lembra a chilena. "A vinculação das Forças Armadas a um Ministério da Defesa ocupado por um civil foi outra conquista democrática valiosa para os países da América Latina nos últimos anos. No Brasil, foi instituído pelo presidente Fernando Henrique Cardoso nos anos 90", recorda a relatora.

A chilena Antonia Urrejola Noguera, relatora para o Brasil na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao lado da jamaicana Margarette May Macaulay, presidente da Comissão da OEA, em reunião no Itamaraty - Divulgação/CIDH-OEA - Divulgação/CIDH-OEA
A chilena Antonia Urrejola Noguera, relatora para o Brasil na CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos), ao lado da jamaicana Margarette May Macaulay, presidente da Comissão da OEA, em reunião no Itamaraty
Imagem: Divulgação/CIDH-OEA

Atualmente, pela primeira vez desde a criação do Ministério da Defesa brasileiro, ele é chefiado por um militar, o general do Exército Joaquim Silva e Luna. O presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), já confirmou que o general da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira será o próximo ministro da Defesa.

Bolsonaro confirmou ainda a criação de um "superministério" de Justiça, comandado pelo juiz Sérgio Moro, que unirá a pasta com o ministério de Segurança Pública e parte do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que combate lavagem de dinheiro. Serão parte deste superministério ainda a Polícia Federal, a Força Nacional, a Funai (Fundação Nacional do Índio) e a Comissão de Anistia, que trata de violações de direitos humanos da Ditadura Militar

"A organização administrativa de qualquer Estado cabe ao seu próprio governo. Existem alguns princípios e recomendações internacionais importantes. Em matéria de transparência, é recomendável que os órgãos de controle interno da administração sejam autônomos e não subordinados às outras estruturas as quais terá que fiscalizar, para assim reforçar as garantias de sua independência", recomenda Antonia Urrejola.

O que a Comissão de Direitos Humanos da OEA quer verificar?

De acordo com Antonia Urrejola, o convite foi feito pelo governo brasileiro no começo do ano, e em comum acordo com o Itamaraty, a visita foi iniciada após as eleições presidenciais. "Nossa tarefa principal é tirar uma fotografia da situação dos direitos humanos no país atualmente, identificar as principais violações e estabelecer recomendações para o Estado", diz a comissária da OEA. 

O grupo já se reuniu nesta segunda-feira com representantes do Itamaraty, do Ministério de Direitos Humanos, da PGR (Procuradoria-Geral da República), da DPU (Defensoria Pública da União), da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e do STF (Supremo Tribunal Federal).

Entre nossas principais preocupações, estão os problemas estruturais clássicos, que passam pela situação dos direitos das populações historicamente discriminadas e dos grupos mais vulneráveis como os indígenas, os afrodescendentes, os camponeses, as pessoas privadas de liberdade, os setores excluídos nos grandes centros urbanos, a população de rua, as pessoas que estão em extrema pobreza, por exemplo
Antonia Urrejola

A chilena cita ainda que "algumas estatísticas disponíveis apontam para um aumento dos conflitos e violência no campo e nas cidades. Há por exemplo, um alarmante número de assassinatos de líderes sociais, rurais e ambientais. O funcionamento do sistema de segurança e do acesso à Justiça, o ambiente de pluralidade e tolerância, a liberdade de expressão e manifestação, a intervenção militar no Rio de Janeiro, as rebeliões nos complexos penitenciários, as pessoas afetadas por desastres ambientais são alguns dos outros temas relevantes na nossa visita."

CIDH( Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos) é recebida no Itamaraty; é a primeira visita do organismo ao Brasil em mais de duas décadas - Divulgação/ CIDH OEA - Divulgação/ CIDH OEA
CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA (Organização dos Estados Americanos) é recebida no Itamaraty; é a primeira visita do organismo ao Brasil em mais de duas décadas
Imagem: Divulgação/ CIDH OEA

O grupo da CIDH visitará, no Pará, zonas de conflito de terras e indígenas; na Bahia, o foco são as comunidades quilombolas e o tema de liberdade religiosa. No Mato Groso do Sul, a comissão também visitará terras indígenas. No Maranhão, o foco é o sistema penitenciário; em Roraima, a situação dos migrantes venezuelanos. Em São Paulo e no Rio, serão verificadas a situação das populações de rua e das favelas e como estão os seus direitos econômicos, sociais e culturais. "Queremos encontrar com familiares de vítimas de violência policial, mas também com os familiares de policiais assassinados", diz a relatora para o Brasil.

"O Brasil é um país que sempre esteve na vanguarda internacional para defender e promover as posições mais avançadas em matéria de Direitos Humanos. É da sua tradição diplomática, plural e liberal. A abertura do Brasil para os órgãos internacionais de direitos humanos deve ser valorizada e reconhecida. Ao mesmo tempo, no plano interno, a desigualdade e a discriminação social e racial como causas de violações de direitos humanos sempre formaram um desafio particular para o país e a sua superação não foi alcançada totalmente pelos últimos governos, apesar de muitos avanços."

No fim da visita, na próxima semana, serão anunciadas conclusões preliminares e as primeiras recomendações ao governo brasileiro. Um relatório completo deve ser divulgado posteriormente, ainda sem data definida. "Queremos contribuir e cooperar com o Estado brasileiro para identificar seus principais desafios atuais e orientar suas políticas públicas de acordo com os padrões fixados nos sistemas interamericano e universal de direitos humanos. Essa dinâmica sempre foi muito positiva e esperamos que possa continuar", diz a relatora.

"No passado, por exemplo, uma contribuição relevante da CIDH ao Brasil foi relacionada a uma solução amistosa para o caso Maria da Penha litigado junto à nós. O Brasil se comprometeu a elaborar e aprovar uma lei de proteção contra a violência doméstica. Surgiu a Lei Maria da Penha e, até hoje, inúmeras mulheres foram amparadas e beneficiadas. Esse é um exemplo concreto sobre como a interação do sistema internacional de proteção aos direitos humanos aliados ao compromisso das autoridades estatais pode gerar positivamente avanços significativos para os países", relata Urrejola.