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Para analistas, relação com Argentina esfria, mas comércio não sofre agora

27.out.2019 - Cristina Kirchner e Alberto Fernández na comemoração em Buenos Aires da vitória de sua chapa na eleição presidencial da Argentina - Martin Zabala - 27.out.2019/Xinhua
27.out.2019 - Cristina Kirchner e Alberto Fernández na comemoração em Buenos Aires da vitória de sua chapa na eleição presidencial da Argentina Imagem: Martin Zabala - 27.out.2019/Xinhua

Luciana Taddeo

Colaboração para o UOL, em Buenos Aires

03/11/2019 04h01Atualizada em 03/11/2019 15h06

Resumo da notícia

  • Bolsonaro e Fernández, novo presidente argentino, têm trocado farpas públicas
  • Analistas preveem que relação entre os países esfrie
  • Mas também apostam que o pragmatismo falará mais alto

A troca de farpas entre o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e o futuro presidente da Argentina, Alberto Fernández, inaugura conflitos sem precedentes na relação bilateral desde a retomada da democracia no Brasil, em 1985, segundo analistas políticos ouvidos pelo UOL.

É a primeira vez em décadas que os países têm presidentes que não só têm posições ideológicas antagônicas, como também verbalizam essas diferenças. Ainda assim, de acordo com especialistas consultados pela reportagem, o comércio com a Argentina, quarto principal destino das exportações brasileiras, não deverá ser afetado num primeiro momento.

Na última sexta-feira (1º), Bolsonaro afirmou que não participará da posse de Fernández. Do outro lado da fronteira, o chanceler de Mauricio Macri, Jorge Faurie, enviou uma carta ao embaixador brasileiro na Argentina pedindo "maior prudência". Faurie se queixou no documento, de caráter pessoal, de que houve "expressões inapropriadas" usadas no Brasil para se referir ao novo governo argentino.

"Vamos ver turbulências que não se viam há muito tempo", diz o sociólogo Ariel Goldstein, autor do livro Bolsonaro: La democracia de Brasil en Peligro.

Goldstein escreveu também um livro sobre as relações entre o peronismo e o varguismo. Ele acredita que a natureza de Fernández e Bolsonaro é "tão diferente e conflituosa" na defesa de valores que os atritos deverão se manter.

Bolsonaro não irá à posse do novo presidente argentino

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Futuro turbulento

Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro fez diversas declarações contra o candidato peronista. Após a vitória de Fernández, que terá Cristina Kirchner como vice, o presidente brasileiro disse que a Argentina "escolheu mal" e que não cumprimentaria o novo chefe da Casa Rosada.

Por outro lado, Fernández se pronunciou mais de uma vez, inclusive depois de eleito, pela liberdade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem visitou na prisão.

Apesar das declarações recentes de Fernández, Goldstein avalia que o confronto não convém ao presidente eleito devido à importância comercial do Brasil para a economia argentina e pelo peso do país para a América Latina.

"O custo político de brigar com o Brasil é mais alto para Fernández", analisa, afirmando que esta deve ser a relação mais conflituosa dos últimos 30 anos.

Por isso, ele considera um erro as reiteradas demonstrações de Fernández a favor de Lula.

"Ao fazê-las, ele pensa mais na relação com Lula do que em preservar o vínculo com o Brasil, que é estratégico", diz Goldstein.

Quanto ao futuro da relação, ele não é otimista: "Pode ser que deixem de brigar e que haja um trato mais frio, distante", diz, afirmando não acreditar em uma fluidez em nível presidencial.

Pragmatismo

Apesar da evidência de desavenças, o sociólogo e outros analistas apostam no pragmatismo de ambas as partes, inclusive por pressão dos setores econômicos.

Para Thomaz Favaro, diretor para o Cone Sul da consultora Control Risks, as pressões sobre a Argentina têm ainda outro papel: passar o recado de que Bolsonaro está disposto a tomar medidas drásticas se a Argentina optar pelo protecionismo.

"Acho que, num primeiro momento, não deve afetar [o comércio] porque o governo Bolsonaro vai dar o benefício da dúvida e tempo para o Fernández montar sua política comercial, e sentar para negociar algumas vezes. Agora, passado determinado prazo poderia haver algum tipo de impacto na política comercial", afirma.

Ele descarta que o Brasil esteja em vias de deixar o Mercosul por conta da troca de farpas, citando também o setor industrial que seria prejudicado.

Mas para Favaro, provavelmente o Mercosul já não contará com a diplomacia presidencial, que sempre foi importante para destravar impasses, já que no bloco, "o avanço depende do acordo tácito entre os diferentes governos de turno".

Mas ele explica que ainda não se sabe se Fernández será protecionista. E aponta a retórica de Bolsonaro sobre a embaixada de Israel, nunca transferida a Jerusalém, e as acusações à China, onde Bolsonaro realizou uma visita na semana passada, depois de acusar o país de querer "comprar o Brasil".

"Depois que põe a faixa presidencial, o discurso muda", diz, ressaltando que na aproximação com os Estados Unidos, a política externa de Bolsonaro foi condizente ao discurso: "Algumas coisas sobrevivem e não dá para saber o que vai sobreviver", diz.

O ex-embaixador da Argentina no Brasil Juan Pablo Lohlé, diretor do Cepei (Centro de Estudos Políticos Estratégicos Internacionais), também menciona os exemplos da embaixada de Israel e da China como exemplos de quando o pragmatismo imperou sobre as posições pessoais.

"Não estávamos acostumados a esse bate boca, que nunca tinha acontecido. Mas depois pode ser que as coisas se resolvam. Sou otimista porque acho que, no final, o econômico vai primar sobre o político", afirma, apostando na "racionalidade". "Os vínculos de interesse são mais importantes que as pessoas que os representam", diz.

Segundo ele, no entanto, sem uma distinção entre os interesses dos Estados e as visões políticas pessoais, "é muito difícil que os países se entendam". Sem esta separação, acredita que a relação ficará em um "freezer", com o funcionamento do comércio, mas sem afinidade política.

"Lula não vai ser o governo, que agora é do Bolsonaro, e o Bolsonaro tem que aceitar que aqui na Argentina o Macri não vai mais governar porque perdeu as eleições. É preciso voltar ao realismo", afirma.