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Traficantes se unem para doar comida em bairros pobres de Cidade do Cabo

Danny, integrante da gangue Hard Livings, entrega alimentos em território rival durante a pandemia de covid-19  - Nardus Engelbrecht/AP
Danny, integrante da gangue Hard Livings, entrega alimentos em território rival durante a pandemia de covid-19 Imagem: Nardus Engelbrecht/AP

Do UOL, em São Paulo

18/05/2020 11h57

Usando uma máscara de proteção com as cores da gangue da qual faz parte na Cidade do Cabo, na África do Sul, Preston poderia ser morto no bairro de Manenberg, região onde quem manda é o grupo rival Hard Livings. "Eles atirariam em mim", diz o homem de 35 anos.

Mas, desta vez, ele é bem-vindo. Com a quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, quadrilhas adversárias no tráfico de drogas fizeram uma trégua e se uniram para ajudar comunidades pobres, diz reportagem de hoje no site da Associated Press.

Preston se juntou a integrantes de outras gangues para entregar pão, farinha e legumes a famílias passando dificuldade. Muitas pessoas perderam empregos com o fechamento de indústrias em Manenberg.

"Nós (as gangues) decidimos trabalhar juntos para ajudar", disse Danny, um dos participantes da ação solidária. "E não temos nenhum problema (um com o outro), você vê. Sem problemas."

A ideia partiu de um religioso australiano, Andie Steele-Smith, conhecido como "pastor das gangues". Os homens vão aos locais de entrega na traseira de sua caminhonete.

Steele-Smith disse que, "assim que esses caras tiveram a oportunidade de fazer algo bom, eles a agarraram com as duas mãos e estão fazendo tudo o que podem".

As gangues também se beneficiam, recebendo comida e a chance de permanecerem relevantes em tempos difíceis. Seus membros também parecem gostar do papel de "Robin Hoods" modernos.

Uma das cidades mais violentas do mundo

Para J.P. Smith, que trabalha no gabinete de segurança pública da prefeitura, as ações dos traficantes não mudam o fato de que seu real negócio é assassinato, extorsão, tráfico de drogas e armas, corrupção de policiais e juízes. Ele observa que houve 900 assassinatos relacionados a gangues na área da Cidade do Cabo no ano passado.

"Nada disso desaparece porque os bandidos de repente fingem fazer algo legal", disse Smith. "O trauma que infligiram às comunidades por décadas não será esquecido em troca de alguns pães".

A Cidade do Cabo foi classificada em 2019 como a 11ª cidade mais perigosa do mundo. De acordo com o Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Criminal da Cidade do México, que compilou a lista, a Cidade do Cabo teve 2.868 homicídios em 2018, o segundo maior número da lista, atrás de Caracas, na Venezuela.

De acordo com Smith, a trégua e a distribuição de comida podem ter levado à redução de problemas em Manenberg nas últimas semanas registrada pela polícia.

O bairro foi criado pelo governo do apartheid da África do Sul na década de 1960 como um depósito de lixo para não-brancos pobres que foram despejados das principais terras da Cidade do Cabo. Steele-Smith o descreve como "esquecido" e sem esperança.

Morte é única saída

Os traficantes ouvidos pela AP sob condição de que apenas seus primeiros nomes fossem revelados dizem que têm muito em comum: todos foram baleados e todos foram presos.

Danny, 61, conta que esteve atrás das grades por 29 anos por assassinato e assalto à mão armada. Santjie, 31, já entrou e saiu da cadeira várias vezes, diz ele.

Os dois e Preston acham que é natural terem entrado para as gangues, uma vez que os integrantes são recrutados no início da adolescência ou ainda mais jovens.

Preston afirma que talvez deixe a facção, mas Danny adverte: "Se você virar as costas para a gangue, é um alvo".

"Um traidor", Preston concorda.

Sair de uma gangue significa abrir mão de proteção. Um ditado local diz que a única saída certa de uma gangue na região é a morte.

O reverendo Eric Hofmeyer, que foi integrante da Hard Livings a partir dos 9 anos de idade, deixou o grupo aos 21, na década de 1980. Ele diz que sobreviveu a duas facadas por gangues rivais e que escapou da morte quando a polícia impediu uma tentativa de sua própria gangue de matá-lo.

Ele diz que o projeto de doação de alimentos mostra que a nova geração está aberta a mudanças.

"Acredito que exista uma saída para esses jovens", disse ele.