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Falta de vontade e China afastam Brasil de Taiwan, diz diplomata taiwanês

O chefe do Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil, diplomata Tsung-Che Chang, em entrevista ao UOL - Antonio Temóteo/UOL
O chefe do Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil, diplomata Tsung-Che Chang, em entrevista ao UOL Imagem: Antonio Temóteo/UOL

Antonio Temóteo e Luciana Amaral

Do UOL, em Brasília

02/09/2020 04h00Atualizada em 04/09/2020 11h08

Quando pré-candidato à Presidência, em 2018, Jair Bolsonaro (sem partido) procurou a representação de Taiwan no Brasil interessado em visitar a ilha e conhecer seu modelo educacional, que costuma aparecer no topo de rankings internacionais. Foi prontamente atendido pelo diplomata Tsung-Che Chang.

Dois anos depois, o agora representante do Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil, interlocutor do governo de Taiwan, afirma que, ao contrário do esperado, não enxerga vontade do governo Bolsonaro em manter relações com a ilha. Na avaliação de Chang, um dos principais empecilhos para essa aproximação é a força geopolítica e comercial da China.

"Há muitas barreiras, há muito constrangimento que vem de ameaça da China. A realidade no Brasil é que o governo pensa mais na China do que em Taiwan. Não sentimos muita vontade do governo brasileiro em conversar com Taiwan", afirmou Chang, em entrevista ao UOL concedida na última sexta-feira (28).

Taiwan é considerado pela China como parte de seu território, mas conta líderes eleitos democraticamente e economia própria e vive em torno de discussões de uma possível independência. A ilha tem cerca de 23,7 milhões de habitantes e resiste ao sistema comunista chinês desde 1949.

Assim como a maioria dos países, o Brasil mantém relações diplomáticas com a China sem considerar Taiwan uma nação independente. O país asiático defende o princípio "Uma só China". Ou seja, a unificação de territórios hoje tidos como rebeldes.

O Brasil conta com um escritório comercial em Taipei, capital de Taiwan. O mesmo acontece com o governo taiwanês em território brasileiro. No entanto, a delegação estrangeira não é recebida no Itamaraty — reuniões com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também não acontecem.

"Parece um tabu [na Esplanada dos Ministérios]", diz Chang que afirma não querer causar atritos para a diplomacia brasileira, mas explorar mais possibilidades com Taiwan. Cita, por exemplo, os setores de turismo e de tecnologia eletrônica. Taiwan se destaca na fabricação de peças para celulares e computadores, inclusive com empresas instaladas no Brasil.

A balança comercial entre Brasil e Taiwan foi de US$ 3,7 bilhões em 2019, segundo o Ministério da Economia (com a China foi US$ 98,6 bilhões no mesmo período). No topo das exportações do Brasil à ilha estão milho, soja e minério de ferro.

O mercado noturno de Keelung, cidade de Taiwan - Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação - Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação
O mercado noturno de Keelung, cidade de Taiwan
Imagem: Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação

Além da atual relação entre Taiwan e Brasil, Chang conversou com a reportagem sobre a rede 5G da chinesa Huawei, o pedido da Embaixada da China a deputados federais para que não se manifestassem a favor de Taiwan e como a ilha enfrentou a pandemia da covid-19. Taiwan contabiliza somente 488 casos com sete mortes pelo coronavírus até o momento.

Procurado pelo UOL, o Itamaraty não comentou diretamente as declarações de Chang. A pasta reforçou que o Brasil não mantém relações diplomáticas com Taiwan desde 15 de agosto de 1974 e reconhece o princípio de "Uma só China", com a República Popular da China como único governo legal e Taiwan como parte do território chinês. "A denominação usada pelo governo brasileiro para designação da ilha é a de Taiwan: Província da China", acrescentou, em nota.

Confira os principais trechos da entrevista:

Quando pré-candidato, Bolsonaro visitou Taiwan. O senhor participou e auxiliou nessa viagem?

Foi uma visita surpresa. Bateram à nossa porta dizendo que ele tinha interesse em visitar Taiwan, mas só tinha dois dias. Então, perguntamos o que queria saber. Disseram que queria conhecer o sistema educacional. Acompanhei a delegação, fiquei dois dias com Bolsonaro, a família dele.

Nosso governo tem se voltado a expandir a relação com o Brasil. Mas o Brasil é sempre muito tímido nessa atitude, porque imagina que tem grande parceria e comércio com a China. Mesmo sem relação diplomática, podemos fazer muita coisa. Não temos relações com os norte-americanos desde 1979, mas assinamos muitos acordos bilaterais quase todos os anos. Há muitos países assim. Isso não impede uma relação comercial substancial. O que impede é a [falta de] vontade. Quando não tem vontade, não tem jeito.

Depois da eleição, Bolsonaro procurou os senhores?

Foi ele quem bateu à nossa porta [antes]. Abraçamos ele muito bem em Taiwan. Pessoalmente, gostei dele. Minha impressão é que ele é uma pessoa muito aberta, fala diretamente. Infelizmente, quando chegamos aqui, você sabe que qualquer tipo de viagem assim vai provocar a China. Chegou ameaça da China e não sei o que ele fez, mas, qualquer coisa afastou o governo de fazer mais contatos.

Ameaças da China fizeram Bolsonaro recuar?

Não sei o que se passou, mas não sentimos muita vontade do governo brasileiro de conversar com Taiwan, porque pensa mais na China. Temos que preparar a chegada de investimentos, turistas. Estou batendo às portas aqui. Por exemplo, estive na Embratur (Instituto Brasileiro do Turismo) [para simplificação de vistos e rotas aéreas].

O arranha-céu Taipei 101 em festa com fogos de artifício. O edifício é um dos mais altos do mundo e é conhecido pelas celebrações de passagem de ano. - Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação - Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação
O arranha-céu Taipei 101 em festa com fogos de artifício. O edifício é um dos mais altos do mundo e é conhecido pelas celebrações de passagem de ano.
Imagem: Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação

Sem relações diplomáticas diretas com o Brasil, qual é a dificuldade no dia a dia? Conversam com o ministro Ernesto Araújo?

Neste último ano, inclusive com meu antecessor, ninguém falou com nenhum ministro. Parece um tabu. Foram informados de que não falam com Taiwan. Não posso telefonar e marcar com qualquer ministro. Não vão me atender. Por isso, a situação é difícil.

Em maio, a Embaixada da China no Brasil enviou carta à Câmara dos Deputados pedindo que parlamentares não parabenizassem a nova presidente de Taiwan, Tsai Ing-Wen. Como o senhor enxergou a atitude da China?

Na nossa experiência, não é a única carta. [A China] tem feito muitas cartas dessa natureza não só no Brasil mas no mundo nos últimos 50 anos. Tentaram marginalizar Taiwan. Um professor na escola disse que a diplomacia comunista chinesa é diplomacia de máfia. Quando não gosta, faz comportamentos mafiosos. Não sei como funciona aqui, mas esse tipo de comportamento não é normal. Não precisa fazer isso. Já não temos relação diplomática [com o Brasil]. Nosso objetivo não é criar problema aqui, é fazermos intercâmbio.

Vi que muitos jovens brasileiros não gostaram e subiram a hashtag 'viva, Taiwan' no Twitter. Até nossa presidente respondeu ao tuíte de um deputado do Brasil. Não temos muitas notícias do Brasil em Taiwan, mas esse caso chegou no topo.

Bolsonaro disse, em viagem à China, estar em um país capitalista. Segundo as declarações do senhor, ele só viu uma parte da China real?

Sim, [Bolsonaro viu uma parte] para turistas. Você vai ver muitas coisas maravilhosas: construções, edifícios modernos. Pensa que o país está se desenvolvendo muito bem. [Mas] você não pode fazer coisas sem autorização do partido. Esse é um problema da China. Lá tem uma lei de inteligência que determina que, quando o governo pede uma informação de qualquer empresa, a empresa tem a obrigação de entregar.

O presidente Jair Bolsonaro em visita à China - Florence Lo/Reuters - Florence Lo/Reuters
O presidente Jair Bolsonaro em visita à China
Imagem: Florence Lo/Reuters

Vai acontecer isso com a Huawei caso forneça equipamentos para a rede 5G no Brasil?

Falam que são negócios, mas não são.

Vista aérea do porto da cidade de Kaohsiung, ao sul de Taiwan - Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação - Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação
Vista aérea do porto da cidade de Kaohsiung, ao sul de Taiwan
Imagem: Escritório Econômico e Cultural de Taipei no Brasil/Divulgação

Vemos uma disputa grande entre os Estados Unidos e a China pela rede 5G de telecomunicação. Diante acusações dos EUA contra a Huawei, como acredita que o Brasil deva se posicionar nessa briga?

Todos os negócios que o chinês tem não são negócios normais, porque a economia da China é de origem comunista. Quando [o governo chinês] tomou conhecimento de que esse comunismo não vai conseguir desenvolver o país, começou a pegar elementos do capitalismo. A maior parte das empresas na China é estatal — ou não é estatal, mas tem controle [do governo]. Qualquer empresa, quando chega a um certo nível, precisa instalar uma cédula comunista. E, através dessa cédula, [que o Partido Comunista] controla a companhia. Lá não tem privado grátis.

Qual a perspectiva para a independência total de Taiwan?

Como temos moeda própria, governo, presidente, território fixo, população, já somos um país independente. Só que não conseguimos mudar o nome. Por isso, a China tem sempre de obrigar a pessoa a respeitar [o princípio de] "Uma China Só". Para nós, a questão não é uma China, duas Chinas ou três Chinas. A questão é uma luta de democracia, liberdade e direitos humanos. Isso a China não tem.

Alunos sentados em carteiras com divisórias, uma medida para impedir a disseminação do coronavírus em Taipei, capital de Taiwan - Ann Wang/Reuters - Ann Wang/Reuters
Alunos sentados em carteiras com divisórias, uma medida para impedir a disseminação do coronavírus em Taipei, capital de Taiwan
Imagem: Ann Wang/Reuters

Taiwan registrou poucas mortes em razão da covid-19 e poucos casos da doença. Que medidas o governo tomou?

A chave do sucesso é que taiwanês conhece chinês. Já houve uma experiência na pandemia da Sars (síndrome respiratória aguda grave). Pedimos informação e nada. O governo comunista não tem transparência. No final do ano passado, vimos que algo acontecia em Wuhan. Falaram que era coisa ligeira. Alertamos a OMS (Organização Mundial da Saúde) de que algo estava mal lá. Fechamos a fronteira com a China. Aplicamos testes e quarentena em quem chegou da China. Quartos e leitos já estavam preparados. Fizemos comissão com médicos para reação. Preparamos e custeamos hotel e comida para estrangeiros, até com chip para internet. A experiência anterior fez o povo ficar alerta.

O governo brasileiro procurou Taiwan em busca de troca de experiências no combate ao coronavírus?

Não, porque o governo não fala com Taiwan. Mas, temos alguns amigos. Nossa comunidade taiwanesa ajudou os brasileiros. O governo [taiwanês] confiscou a produção de máscara, porque é essencial, chave para proteção. Agora a produção está em 100 milhões por dia. Com a situação controlada em Taiwan, exportamos não para ganhar dinheiro, são doadas. Chegaram ao Brasil cerca de 1 milhão de máscaras.