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Brasil tem relação com governo Trump, não com os EUA, dizem especialistas

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

04/11/2020 10h46

O futuro das relações do Brasil com os Estados Unidos depende do resultado da eleição presidencial norte-americana, que decidiá nos próximos dias se o republicano Donald Trump será reeleito ou se o democrata Joe Biden assume seu lugar na Casa Branca.

Para especialistas em relações internacionais em participação no UOL Debate, o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) fez aliança com Trump, e não com o governo americano, o que pode conturbar as relações bilaterais em caso de vitória do democrata.

No encontro, comandando pelo colunista do UOL Kennedy Alencar, quatro especialistas também comentaram a votação pelos correios, o risco institucional provocado pelas ameaças de Trump em recorrer à Justiça, a influência da pandemia na votação e a polêmica eleição indireta nos Estados Unidos.

Participaram do debate Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado), Maurício Moura, professor e pesquisador da Universidade George Washington (EUA); Rubens Ricupero, diplomata e ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos; e Jamil Chade, também colunista do UOL.

Como fica o Brasil?

Para Jamil Chade, o Brasil estabeleceu uma relação "com o governo Trump, não com os Estados Unidos".

Uma eventual derrota de Trump levaria o Brasil a ter um cenário internacional muito mais complicado.

Moura acredita que "uma vitória do Biden depende muito mais da postura do governo brasileiro do que da diplomacia americana" após o resultado das urnas.

Já Magnotta avalia que o Brasil ganhará com a vitória de Trump. "No caso de uma vitória do Biden, eu imagino que estamos mais propensos a uma ruptura. Importante dizer que não é uma ruptura em definitivo, não significa rompimento de relações bilaterais, nem é o caso. O Biden vai forçar o Brasil a repensar algumas das lideranças."

No meio ambiente, o governo Bolsonaro deve enfrentar dificuldades se Biden sair vencedor. Magnotta lembra que Trump não tem o assunto como sua preocupação central, enquanto "Biden já aparece como um crítico da Amazônia especificamente".

"No caso de uma eleição Biden, não só a pressão que os EUA passarão a exercer, mas a força que essa coalizão entre Estados Unidos e Europa significaria ao Brasil", diz a analista.

Chade diz ainda que muitos partidos ligados ao meio ambiente venceram na Europa, o que significa pressão inevitável a Bolsonaro. "Agora, ajudaria o Biden chegar com uma pressão dessas? Depende da reação do governo brasileiro."

Trump surpreende em votos por correio

Alencar lembrou que nos Estados Unidos é possível votar antes e que "a eleição começa em meados de setembro em alguns estados". Os votos podem ser enviados pelo correio e também presencialmente. Ao todo, 100 milhões de americanos votaram antecipadamente, com favoritismo de Biden nesse contingente.

"Mas o Trump, nos últimos dias, entendeu que os democratas estavam mobilizando a base e o Trump fez muitos comícios pedindo para o eleitorado dele votar, e houve um comparecimento significativo ontem, no dia da eleição", disse Alencar.

Para Moura a surpresa foi que "esses votos pelo correio não são tão democratas como se imaginava". Magnotta lembra que muita gente cantou vitória antecipada, "mas existem ainda pelo menos cinco estados em que é possível reversão".

"Vai ser aquela eleição na margem, como já foi em 2016", diz. "Eu destacaria, para resumir, o caso de Pensilvânia e Michigan, onde ainda falta contar uma quantidade relevante de votos antecipados que vieram pelo correio e que podem mudar a perspectiva. Na Pensilvânia, cerca de 1,4 milhão de votos não foram computados, por isso os candidatos seguem vivos."

Alencar explicou que os candidatos disputam 51 eleições separadas, em cada estado. Na maioria deles, "tem a regra de que o vencedor leva todos os delegados". "Por isso no Michigan, onde Trump ganhou da Hillary por 10 mil votos [em 2016], ele acabou levando os 16 delegados do estado. É muito importante acompanhar esses resultados em separado."

Risco constitucional

Na Europa, segundo Chade, "a grande preocupação é sobre o risco constitucional nos EUA". "Hoje tivemos uma declaração da ministra da Defesa da Alemanha dizendo muito do que o governo alemão pensa".

Não só no governo alemão, mas ouvi vários diplomatas europeus apontando na mesma direção, do risco de uma crise constitucional nos Estados Unidos.

Josep Boreau, chefe da diplomacia europeia, usou as redes sociais para dizer que o resultado das eleições não é conhecido ainda e que não iria se pronunciar até o resultado final.

"Mas tivemos por exemplo o primeiro-ministro da Eslovênia [terra natal da primeira-dama Melania Trump] dizendo de forma escancarada que, sim, o Trump venceu, e que, sim ele é o presidente pelos próximos quatro anos", diz Chade. "Muitos esperavam o dia de hoje, inclusive a OMS [Organização Mundial de Saúde], para redefinir suas estratégias para 2021."

O temor é que Trump consiga vitórias na Justiça depois de conseguir emplacar maioria de juízes conservadores na Suprema Corte.

Para Moura, porém, a chance de Trump judicializar a campanha "é enorme". "Agora, tenho um lado otimista: as decisões da Suprema Corte, depois que terceirizou a gestão das eleições para os Estados, têm sido na linha de deixar os estados resolverem".

Magnotta diz que o segredo é observar o comportamento dos republicanos nos próximos dias de apuração.

"Como vai se dar o equilíbrio institucional dentro do partido para saber se os republicanos vão embarcar nessa aventura que seria uma denúncia sem precedentes como essa que a gente está assistindo agora", disse ela em relação à suposta fraude nos votos pelos correios.

Pandemia mudou tudo

A resposta de Trump à pandemia foi reprovada por dois terços dos americanos, segundo Alencar. Para Moura, "a pandemia mudou tudo. Não existiria esse resultado do Biden sem a pandemia".

"Eu sempre achei o Trump favorito nessa eleição em função do cenário econômico. Era muito difícil trocar o presidente com a economia crescendo e o desemprego em baixa", afirmou. "A pandemia mudou o jogo, se não fosse ela, a gente teria o Trump eleito nesse momento."

Para Chade, "em dez ou 15 anos, quando contarmos a história de 2020, a gente vai contar a história da politização da pandemia".

"Essa vai ser uma das principais histórias, claro, dos mortos, de tudo que aconteceu, mas claro, a politização da máscara, do tratamento, da vacina", afirmou o colunista do UOL. "Nesse contexto, ela não garante a vitória de Biden, mas certamente determinará a forma que as pessoas votaram."

Magnotta lembra que "até janeiro e fevereiro nós tínhamos um cenário de larga vantagem para o Trump". "A pandemia representa sobrevida aos democratas. Se em algum momento Biden passou a ser visto como um candidato viável é por conta dessa crise que se abateu como cisne negro nos EUA", disse.

Eleição indireta

O sistema eleitoral americano é diferente do brasileiro por ser indireta: vence quem ficar com 270 dos 538 colégios eleitorais do país. "Esse sistema é democrático? Ainda funciona?", questiona Alencar ao lembrar que, "desde 1992 houve sete eleições presidenciais nos EUA, os democratas ganharam seis no voto popular, mas levaram quatro mandatos."

Magnotta não tem dúvidas de que se trata de uma democracia, "até porque as eleições acontecem com base nas regras do jogo que foram definidas e vêm sendo cumpridas desde então".

"A questão é se ela é justa, é confiável, equilibrada ou gera distorções", diz ela, para quem é "improvável que qualquer modificação aconteça". Isso implicaria modificar a Constituição, a mesma desde 1789.

"Modificar a Constituição mexe muito com imaginário social americano", afirma a especialista ao afirmar que a mudança provavelmente aconteceria de estado em estado. "Aqueles que se beneficiam do status quo dificilmente vão ser favoráveis a mudança", diz.

Para o ex-embaixador brasileiro Rubens Ricupero, o resultado final, independente de qual for, "vai mostrar que a sociedade americana está doente e as instituições estão doentes".

"Mudar o sistema é difícil, agora hoje em dia é quase impossível defender um sistema como esse como sendo realmente democrático. Não é a primeira vez que aquele que tem a maioria dos votos acaba não sendo presidente", diz.

A sociedade americana continua tão profundamente dividida e polarizada como estava antes e em 2016.

Os Estados Unidos não têm um órgão oficial que divulga, em tempo real, os resultados das urnas, como o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) no Brasil. Por isso, as agências de notícias e veículos de comunicação como AFP, AP e Fox fazem extrapolações estatísticas e apontam os vencedores por estado. A AFP chegou a considerar definida a apuração do Arizona — e Joe Biden somava mais 11 votos até a manhã desta quinta-feira (5). A contagem de votos continua no estado.