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Devastado por corrupção e pobreza, Haiti é refém de 77 gangues armadas

Jovenel Moise, presidente do Haiti, durante Assembleia Geral da ONU em 2018 - Arquivo - Timothy A. Clary/AFP
Jovenel Moise, presidente do Haiti, durante Assembleia Geral da ONU em 2018 Imagem: Arquivo - Timothy A. Clary/AFP

Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

07/07/2021 13h38

Desde que um terremoto devastou o Haiti há 11 anos, o país caribenho nunca mais se reconstruiu, apesar dos bilhões de dólares injetados no país a partir de ajuda internacional. Mergulhado na pobreza e com parcos direitos humanos, o Haiti virou refém de ao menos 77 gangues, que se aproveitaram da entrada recorde de armas no país nos últimos anos.

A esperança tampouco foi renovada com a eleição em 2017 do presidente Jovenel Moise —o mandatário foi assassinado hoje aos 53 anos em sua casa. Moise foi eleito com margem apertada de 55% dos votos em um pleito alvo de denúncias de fraude e baixa presença de eleitores.

Já no ano seguinte, a instabilidade política explodiu diante da dificuldade de o governo enfrentar a crise, que ia desde reivindicações por direitos humanos, raramente respeitados, à falta de fornecimento de itens básicos.

Segundo relatório da organização não governamental HRW (Human Rights Watch), 2,6 milhões de pessoas —quase um quarto da população do Haiti— vivem abaixo da linha de pobreza.

Em julho de 2018, a crise se agravou depois que Moise anunciou o fim dos subsídios aos combustíveis, levando milhares de pessoas às ruas. Em fevereiro de 2019, os protestos aumentaram ainda mais após declaração de emergência econômica.

Nas ruas, o pedido de renúncia do presidente ganhou força, mas Moise respondeu reprimindo os protestos com uso de força excessiva, ainda segundo a HRW.

"O evento de hoje talvez seja o mais dramático, mas a violência política e acusações de corrupção é o dia a dia do Haiti há muitos anos", diz Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FVG (Fundação Getúlio Vargas).

77 gangues tomam o Haiti

Em meio a essa crise, o Haiti assistiu a um forte aumento da criminalidade, em parte devido à entrada recorde de armas nos últimos anos, segundo dados da CNRDDR (Comissão Nacional de Desarmamento, Desmantelamento e Reintegração).

A comissão, que contabiliza ao menos 77 gangues armadas no país, afirma que a circulação de armas dobrou nos últimos cinco anos, alcançando 500 mil unidades, só 45 mil legalizadas.

Essas controlam as periferias —relatos de sequestros em troca de resgate são cada vez mais frequentes. Até crianças e pastores, arrancados de igrejas durante os cultos, são alvos das quadrilhas.

O pesquisador lembra que as gangues mais poderosas construíram uma federação batizada de O Grupo dos 9 em Família e Aliança, uma referência aos nove principais líderes criminosos.

Em 7 de julho, o chamado G9 colocou nas ruas da capital Porto Príncipe 50 de seus membros em carros blindados, iguais aos usados pela Polícia Nacional, para exigir reconhecimento legal.

Leonardo Paz conta que as gangues existem há muito tempo no Haiti, mas ganharam força depois que o ex-presidente Jean-Bertrand Aristide dissolveu o Exército haitiano em 1994 (reconstituído só em 2017) por falta de verbas para mantê-lo e por medo de golpe.

"Muitos desses militares se reorganizaram em gangues, como milícias de grupos políticos", conta Paz. "Hoje, essas gangues vivem um novo pico em razão dessa coalização entre algumas delas."

ONU defendeu urgência para eleições

Diante do caos no país, o Conselho de Segurança da ONU, os Estados Unidos e a Europa pediram na semana passada a "realização urgente de eleições presidenciais e legislativas livres em 2021" no Haiti diante da "deterioração das condições políticas, de segurança e humanitárias".

A ONU exigiu ainda que "os perpetradores de violações e abusos aos direitos humanos" sejam processados e condenou a "crescente violência das gangues".

A violência de gênero, por exemplo, é alta. O Haiti não possui qualquer lei contra violência doméstica e assédio sexual. O estupro só foi explicitamente criminalizado em 2005, por decreto.

O caos político e social ininterrupto no Haiti, diz o pesquisador, "se deve à extrema pobreza do país", o menos desenvolvido das Américas. "A população está sempre revoltada", diz.

Moise tinha razão?

O professor relembra que Moise foi eleito em 2016, mas a eleição acabou anulada por suspeita de fraude. Eleito em novo pleito em 2017, o ex-presidente dizia que seu mandato acabaria só em 2022 e não neste ano, como desejava a oposição.

Moise governa por decreto desde janeiro do ano passado após suspender dois terços do Senado e toda a Câmara dos Deputados em 2020.

Em fevereiro, Moise denunciou uma tentativa de golpe e atentado frustrado contra a sua vida. Na ocasião, 23 pessoas foram presas, incluindo um juiz do Tribunal de Cassação e uma inspetora da Polícia Nacional.

Moise prendeu juiz dizendo que queriam dar um golpe e assassiná-lo. Talvez ele tivesse razão

Leonardo Paz, especialista em relações internacionais

Independência sangrenta

Uma das colônias mais ricas da França no século 18, o Haiti se voltou contra a coroa em 1791 em uma das mais violentas revoluções das Américas.

Uma das táticas dos grupos de escravizados fugitivos era se esconder nas florestas para ataques surpresa aos colonos brancos, donos das plantações de cana-de-açúcar e café.

Com decapitações e esquartejamentos, os revolucionários precisaram de 13 anos para expulsar a França, acabar com a escravidão e declarar a independência do primeiro país latino-americano na história em 1804.