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Série argentina com pastor político irrita evangélicos: Não somos Bolsonaro

O argentino Diego Peretti como pastor Emílio, em cena de "Vosso Reino", série da Netflix - Divulgação
O argentino Diego Peretti como pastor Emílio, em cena de 'Vosso Reino', série da Netflix Imagem: Divulgação

Luciana Taddeo

Colaboração para o UOL, em Buenos Aires

02/09/2021 04h00

Entre as séries mais vistas da Netflix desde sua estreia, na Argentina, há duas semanas, "Vosso Reino" —também disponível no Brasil— irritou lideranças evangélicas no país vizinho e acendeu um debate sobre os vínculos entre religião e política. Também fizeram questão de diferenciar a realidade argentina da brasileira.

Na primeira temporada, a trama se constrói a partir do assassinato, durante a campanha, de um candidato à Presidência, atacado a facadas. Após o crime, um pastor evangélico (vivido por Diego Peretti), da fictícia Igreja do Reino da Luz, sai da vice na chapa e assume a corrida eleitoral.

Aos brasileiros, será impossível não relacionar com o atentado sofrido por Jair Bolsonaro, em 2018. Mas seguem mais similaridades, com interferências de serviços de inteligência no poder, corrupção, cumplicidade do Judiciário com poderosos e o descaso com denunciantes de poucos recursos.

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Cena da primeira temporada de Vosso Reino, série da Netflix, com candidato morto após ataque com faca
Imagem: Divulgação

O roteiro é do cineasta Marcelo Piñeyro ("Kamchatka"), que também assina a direção, e da escritora Claudia Piñeiro, que garantem: a série é uma ficção.

"Quando escrevíamos, achávamos que era uma história distópica, nos sentíamos mais próximos à série 'Handmaid's Tale' do que a 'House of Cards'", afirma Piñeyro ao UOL. "Mas os jornais traziam o tempo todo notícias de diferentes partes do mundo que tinham a ver com o que tínhamos escrito, então dissemos: se não nos apressarmos, vamos acabar fazendo um documentário."

Segundo ele, a ideia da facada no candidato estava no papel antes do atentado a Bolsonaro e o projeto foi apresentado à Netflix também antes da eleição brasileira.

"Quando estávamos escrevendo, fui a São Paulo e, em uma conversa com amigos, escutei sobre Bolsonaro pela primeira vez. Na conversa —e não quero faltar com o respeito a ninguém—, ele parecia um personagem pitoresco da política brasileira, totalmente marginal. Quatro ou cinco meses depois, virou presidente", relata.

Atrasado pela pandemia, o recente lançamento gerou reações imediatas na Argentina. A mais dura delas foi um comunicado da Aliança Cristã das Igrejas Evangélicas da Argentina (Aciera), que congrega cerca de 15 mil igrejas, criticando a roteirista, uma conhecida escritora traduzida no Brasil, e que militou pela legalização do aborto no país.

O texto acusa Piñeiro de tentar "criar no imaginário popular a percepção" de que líderes evangélicos "só têm ambições de poder ou de dinheiro" e de tentar rotulá-los como "'seguidores de Bolsonaro', 'reacionários de direita' e agentes do mal".

O texto foi recebido pela comunidade artística e política como um ataque à roteirista e tentativa de censura indireta. Com o amplo repúdio e mensagens de solidariedade a ela, o pronunciamento acabou retirado do ar. Mas a polêmica continuou.

"Não somos Bolsonaro nem queremos ser", disse em entrevista o vice-presidente de relações institucionais da Aciera, Christian Hooft, após a repercussão negativa.

"Não tem nenhum evangélico aqui na Argentina que se pareça ao Bolsonaro", afirmou, em um programa de TV, Cynthia Hotton, evangélica que disputará eleições como deputada neste ano.

Ao UOL, Hooft repetiu que "a Igreja Evangélica argentina não é a brasileira". "A Argentina não tem um Bolsonaro e nem queremos ter, pelo menos na visão da Aciera. Não estamos nesta linha de uma igreja ligada ao partidarismo político", afirmou, ressaltando que há um "erro de percepção" sobre o perigo de um avanço evangélico e que a série "é uma ficção, mas não deixa de ter uma mensagem".

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Da esq. para a dir., Chino Darín, Mercedes Moran, Alfonso Tortz, Diego Peretti, Victoria Almeida e Daniel Kuzniecka na série Vosso Reino, da Netflix
Imagem: Divulgação

O pastor cita a ampla participação evangélica em marchas contra a legalização do aborto, mas afirma que "é muito simplista dizer que, por estarem contra a lei, os evangélicos são de direita ou ultradireita". "Eles também estão contra os abusos dos direitos humanos, dos direitos dos imigrantes e da deterioração ambiental, que é uma agenda mais de esquerda. Há evangélicos peronistas e antiperonistas, kirchneristas e antikirchneristas", explica.

Já Hotton falou como futura candidata, dizendo que os evangélicos não se sentiam representados pela política e que por isso não se restringiram aos templos. Tentou se dissociar de Bolsonaro, mas já disse querer uma bancada religiosa no Congresso argentino, como acontece no Brasil.

Poder evangélico

Para a teóloga e comunicadora Claudia Florentin, a associação com o Brasil foi rápida porque o país é visto como o maior exemplo do apoio de evangélicos a um governante, "não somente dos de caráter neopentecostal, mas também de igrejas protestantes de caráter mais histórico, como aconteceu com alguns funcionários que Bolsonaro nomeou, que eram de igrejas presbiterianas", diz, citando também a presença da pastora Damares Alves no comando de um ministério.

Florentin, que é feminista e foi pastora por 12 anos, diz que há algumas províncias argentinas com forte presença evangélica, mas que há poucos dados concretos para afirmar que há influência em nível nacional.

"Tem lugares onde colocaram funcionários, há legisladores e legisladoras que vão tendo incidência, ainda que não haja um bloco evangélico", explica.

"Acho que não há uma grande incidência na política e que isso é mais o que as igrejas evangélicas queriam que acontecesse. Por isso constantemente se fala que 'somos 15% da população'. Se você tem que falar isso o tempo todo, acho que quer marcar que tem um potencial", diz. Ela pontua, no entanto, que houve muita pressão evangélica e católica sobre legisladores para impedir a legalização do aborto.

Sobre a igreja retratada na série, ela diz que esperava encontrar algo mais próximo ao que está familiarizada, mas que viu "uma salada de manifestações religiosas que não tem nada a ver com o ser evangélico" que conhece. "Mas depois me reconciliei com o fato de que é uma ficção", diz.

Hoje aqui na Argentina há alguns personagens que são assim, que parecem criação de um programa cômico, e não deveríamos subestimar porque crescem com base em um discurso muito cheio de semear ódios, ressentimentos, temores e principalmente levando tudo para o terreno emocional, porque não falam só do pior do ser humano, mas também de outras coisas, mas principalmente tentando tirar toda a possibilidade de racionalidade de um debate.
Marcelo Piñeyro, diretor de "Vosso Reino"

A roteirista Claudia Piñeiro afirma que a intensidade do debate atual evidencia "que a sociedade queria falar disso". "Se todo mundo está falando disso, é porque essa questão estava presente e o assunto importa", diz.

Segundo ela, "as pessoas deram continuidade à discussão de como as igrejas influem através da política nas agendas de partidos de ultradireita para cercear os direitos das pessoas e de tantas outras coisas que vistas na série, como os serviços de inteligência política".

Você não sabe a quantidade de mensagens que recebi de gente que esteve 20 anos em uma igreja evangélica, e ficou sem todo seu dinheiro, sua casa, alguns me disseram que sofreram abusos, e teve quem disse que passou por coisas piores do que as que contamos.
Claudia Piñeiro, roteirista, sobre mensagens que recebeu após o lançamento

O diretor acrescenta que a série propõe uma reflexão para além das igrejas evangélicas, abordando mecanismos supranacionais por trás de uma tentativa de restauração conservadora, para preservar cada vez mais a concentração do poder político e econômico.

"A série tenta refletir sobre o que está acontecendo no mundo, e cada país tem suas características. Não é uma série contra o Bolsonaro, eu não moro no Brasil, não penso nele todos os dias, e a Argentina tem problemas suficientes. A série está tendo impacto na Europa, na Coreia, na Turquia, porque marca direções da contemporaneidade com as quais as pessoas começam a refletir de acordo com sua realidade. Dizer que a série fala do Brasil é um modo de desviar o foco", conclui Piñeyro.