Topo

Vacina é fundamental diante do risco de vírus ficar resistente, diz especialista em ebola

Katrin Elger e Veronika Hackenbroch

25/12/2014 06h01

O médico britânico Jeremy Farrar é uma figura chave na luta contra o ebola e outras doenças infecciosas. Em uma entrevista para a "Spiegel", ele diz que o desenvolvimento de vacinas é fundamental, porque vírus e bactérias resistentes aos medicamentos representam riscos imensos.

Jeremy Farrar, 53, é diretor do Wellcome Trust, a segunda maior fundação do mundo de apoio à pesquisa médica. Antes de se juntar ao Wellcome Trust, ele passou 18 anos como chefe de pesquisa clínica em um hospital para medicina tropical no Vietnã e como consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Acompanhe abaixo a entrevista:

Spiegel: Sr. Farrar, o Wellcome Trust conta com uma dotação de cerca de 22 bilhões de euros e fornece perto de 880 milhões de euros para apoio de pesquisa científica e humanidades e compromissos públicos. Como é administrar tanto dinheiro?

Farrar:
(risos) Bem, isso faz soar mais poderoso do que é. Eu não estou envolvido em cada detalhe de cada decisão. Se um pedido de verba ou projeto de pesquisa será apoiado ou não é determinado por um painel interno e externo de especialistas. Mas, é claro, eu não teria aceitado o cargo se não acreditasse que o Wellcome Trust pode ajudar a mudar o mundo.

Spiegel: Atualmente, vocês estão investindo cerca de 15 milhões de euros em projetos relacionados ao ebola, aproximadamente 5 milhões de euros desse dinheiro destinado ao desenvolvimento de vacinas contra o ebola. Já no início de agosto, quando quase ninguém falava seriamente sobre essa possibilidade, o senhor defendia o uso de vacinas experimentais nessa epidemia. Isso não é arriscado?

Farrar:
Nós não vivemos no século 19. Nós vivemos no século 21. Nós temos que usar todos os recursos que temos disponíveis, incluindo os da ciência moderna, para deter essa epidemia. Eu acho que é possível que a epidemia prossiga até a segunda metade de 2015. Se tivermos uma vacina segura e eficaz, isso poderia ter um grande papel. Sem contar em futuras epidemias.

Spiegel: O senhor acha que ocorrerão novos surtos no futuro?

Farrar:
Sim, futuras epidemias são inevitáveis. Ainda resta um grande reservatório do vírus ebola em animais, provavelmente em primatas e morcegos que vivem na floresta. Ocasionalmente, quando os seres humanos entram em contato com esses animais, eles são infectados. A maior preocupação que eu teria é a possibilidade de, à medida que o vírus se espalha mais amplamente, o vírus se estabelecer em animais domésticos, ratos ou morcegos que vivem próximos de um grande número de pessoas em grandes cidades. Logo, é possível a ocorrência de mais surtos de ebola nesses grandes centros urbanos, de forma que ter uma vacina seria crucial.

Spiegel: É possível erradicar completamente uma doença contagiosa como essa?

Farrar:
É possível para algumas doenças contagiosas, como a varíola, mas não em uma infecção com tamanha reserva animal como o ebola. Além disso, a erradicação só é possível com uma vacina. Com outras intervenções –drogas ou mudança comportamental, por exemplo– isso é impossível.


Spiegel: Mas não é possível o desenvolvimento de uma vacina para cada doença contagiosa. Mesmo hoje, ainda não há uma vacina eficaz para HIV, tuberculose ou malária.

Farrar:
Exatamente. Essas são três das maiores matadoras no mundo e são um exemplo muito bom do que acontece quando não temos uma boa vacina disponível. Houve um progresso tremendo em todas essas três doenças, porque encontramos drogas eficazes. Há dez anos, cerca de 1,2 milhão de pessoas morriam de malária a cada ano. Esse número agora é de menos de 600 mil, devido aos medicamentos e mosquiteiros. Mas é muito importante entender que não derrotamos essas três doenças.

Spiegel: A tuberculose agora pode ser tratada eficazmente com antibióticos.

Farrar:
Sim, apesar da resistência ao medicamento ser um grande problema. Algumas pessoas agora comparam o HIV à diabete por causa da eficácia do tratamento antiviral. A história do HIV tem sido uma de imenso sucesso nos últimos 30 anos. Mas sempre que um tratamento com medicamentos é o principal método de controle, o desenvolvimento de resistência ao medicamento é inevitável.

Spiegel: Isso é realmente uma grande ameaça à saúde global?

Farrar:
Não há dúvida de que o mal emergente mais perigoso é a resistência aos medicamentos. A cada ano, centenas de milhares de pessoas morrem de malária, HIV ou tuberculose resistente a medicamentos, assim como infecções resistentes a medicamentos nas unidades de terapia intensiva de todo o mundo. Pegue o fenomenal fitoterápico chinês para malária –Qinghaosu, artemisinina, uma das muito poucas drogas realmente milagrosas. Após cerca de 20 anos de uso no Sudeste Asiático, nós estamos começando a ver malária resistente à artemisinina no Camboja e agora ela está se espalhando para Mianmar, Vietnã, Tailândia e Indonésia. Inevitavelmente, isso pode se espalhar para a África.

Spiegel: Formas resistentes de tuberculose também se tornaram uma séria ameaça.

Farrar:
Sim, e também de HIV. O HIV não é uma doença como a diabete. Um vírus muda, sofre mutação, e em algum estágio os medicamentos atuais não funcionarão tão bem. Há um número limitado de alvos para as novas drogas neste vírus. Eu não acho que isso vá acontecer amanhã. Mas acontecerá em algum momento. Se não desenvolvermos novas ideias até lá, e isso inclui o desenvolvimento de uma vacina, então o diagnóstico "HIV positivo" poderia voltar a ser como era nos anos 80 e início dos anos 90. Eu era um médico jovem aqui em Londres na época em que o HIV apareceu. Foi terrível. Todas aquelas pessoas, a maioria jovens, simplesmente morriam, havia muito pouco o que fazer. Uma infecção intratável. Mas não sou pessimista. Se formos inovadores e fizermos as coisas certas, nós podemos impedir que eventos assim aconteçam. O mundo pode ser melhor.

Spiegel: Quais são as outras doenças nas quais devemos ficar de olho?

Farrar:
Bem, a lista é longa. Chikungunya está se tornando mais importante, uma doença viral com febre alta e dor terrível nas juntas. Ela é um problema imenso no momento no Caribe e na América do Sul, onde ocorreram centenas de milhares de casos. Ela é transmitida pela mesma família de mosquitos que transmite a dengue. A Chikungunya está cada vez mais próxima do sul da Europa, onde já há casos de dengue.

A dengue é uma doença tropical que causa 25 mil mortes por ano em todo o mundo, e está aumentando e se disseminando globalmente. Diferente do mosquito que transmite a malária, o mosquito da dengue se adapta perfeitamente ao meio urbano. Ele se beneficia da tendência mundial de urbanização, maior movimentação e mudança no ambiente. O mesmo vale para a peste, que atualmente está causando uma grande epidemia em Madagáscar. Há pessoas demais vivendo muito próximas somado a um ambiente excelente para os ratos, o hospedeiro das pulgas transmissoras da doença. Isso facilita a disseminação da peste.

Spiegel: Em outras palavras, nosso mundo moderno, com seus padrões sem precedentes de higiene, também favorece a disseminação de doenças infecciosas?

Farrar:
Sim, de muitas formas. Até mesmo as doenças associadas à vida moderna, como a diabete e o câncer, podem ajudar a promover infecções, por enfraquecerem o sistema imunológico. Doenças transmissíveis e doenças não transmissíveis muitas vezes se sobrepõem. Se você tem diabete, sua chance de ter tuberculose é maior porque seu sistema imunológico é mais fraco. Se você tem HIV e não for bem tratado, suas chances de ter certos cânceres são maiores.

Mas acima de tudo, doenças infecciosas são transmitidas entre pessoas. Nós estamos muito mais interligados hoje, nós nos deslocamos mais e com muito mais velocidade, e isso causa a disseminação global dessas doenças. Eu nasci em 1961 em Cingapura e vivi em quatro continentes diferentes na infância. Quando cheguei pela primeira vez ao Reino Unido, nós viemos de navio. A viagem levou oito semanas. Se tivesse me infectado com uma doença perigosa naquela viagem, ou eu estaria morto ao chegar a Southampton ou teria me recuperado. Eu não teria infectado ninguém na Europa.

Spiegel: Hoje, 40 anos depois, é possível fazer essa viagem em um único dia.

Farrar:
É simplesmente notável o quanto o mundo mudou em uma única geração. E isso tem implicações profundas para a disseminação de doenças infecciosas.