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'Não somos cidadãos da Ucrânia', diz líder separatista de Donetsk

Alexander Zakharchenko, o primeiro-ministro da auto-proclamada República Popular de Donetsk, na Ucrânia - Alexander Khudoteply/ AFP
Alexander Zakharchenko, o primeiro-ministro da auto-proclamada República Popular de Donetsk, na Ucrânia Imagem: Alexander Khudoteply/ AFP

Christian Neef

01/05/2015 06h01

Alexander Zakharchenko é o líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, que não é reconhecida pela comunidade internacional. Em uma rara entrevista, ele diz que sua maior esperança é que Moscou anexe seu território, assim como fez com a Crimeia.

O encontro ocorre em um prédio discreto, em uma rua comercial no centro de Donetsk. Não há sinal indicando quem reside atrás da porta, onde guardas armados com fuzis semiautomáticos estão posicionados. Após subir as escadas até o segundo andar, um homem de suéter azul, cuja perna está envolta em bandagens, está sentado atrás de uma mesa em um gabinete. Há dois meses, a bala de um atirador atingiu sua perna. O incidente ocorreu durante os combates pela cidade ucraniana de Debaltseve, que em fevereiro foi tomada pelos separatistas que agora controlam Donetsk.

O homem à mesa é Alexander Zakharchenko, o "líder", chefe de governo e comandante-em-chefe da autoproclamada República Popular de Donetsk. Ele tem a patente de major. Após a vitória dos separatistas em Debaltseve, a república rebelde vizinha de Luhansk lhe concedeu a patente de general. Zakharchenko é um homem procurado no restante da Ucrânia, onde é acusado de formar uma organização terrorista.

Seu nome também aparece nas listas de sanções dos Estados Unidos e da União Europeia, o que o impede de viajar ao Ocidente. O fato de seu gabinete na rua da Universidade, em Donetsk, ser tão discreto é uma precaução. O chefe da república separatista já sobreviveu a uma tentativa de assassinato. Em consequência, ele não está disposto a se mudar para a antiga sede do governo. O prédio alto e exposto no Bulevar Pushkin seria um alvo fácil para um ataque aéreo.

Zakharchenko, 38, nunca se envolveu em política antes. Ele trabalhava como eletricista em uma mina, ganhava dinheiro ilegalmente extraindo carvão e cursou, mas sem concluir, a faculdade de Direito. Zakharchenko se transformou em uma figura pública em abril de 2014, quando ele e seis homens armados ocuparam o gabinete do prefeito de Donetsk para pressionar pela realização de um referendo pela independência contra o novo governo em Kiev.

A guerra começou logo depois. Em maio, Zakharchenko era o comandante da cidade, e três meses depois se tornou o chefe do governo separatista. Até hoje, o maior obstáculo para verdadeiras negociações de paz entre os rebeldes e a Ucrânia é o fato de que Kiev se recusa a negociar diretamente com Zakharchenko. Mas é possível entender a República Popular de Donetsk sem conhecer Zakharchenko e como ele pensa? Provavelmente não.

A "Spiegel" passou meses tentando sem sucesso obter uma entrevista com ele, até a semana passada, quando a entrevista foi aprovada. Zakharchenko raramente se encontra com pessoas do Ocidente. "Será difícil para você voltar à Alemanha depois deste encontro com um 'terrorista'", disse o líder separatista. Ele respondeu calma e prontamente às nossas perguntas, apesar de algumas de suas respostas estarem cheias de ironia.

Spiegel: Sr. Zakharchenko, o senhor diz que a liderança ucraniana está no processo de lançar uma nova guerra. De fato, estão ocorrendo disparos de novo ao longo da linha de cessar-fogo –no aeroporto de Donetsk e perto da cidade portuária de Mariupol. O acordo de Minsk fracassou?

Zakharchenko: O aeroporto e a cidade sitiada de Shyrokyne, perto de Mariupol, são lugares simbólicos, tanto para nós quanto para o exército ucraniano. Kiev deseja retomar o aeroporto o mais rápido possível. Ele não está cumprindo nenhum dos termos do acordo de Minsk. Acima de tudo, ele supostamente deveria estabelecer contato direto conosco, o que não aconteceu até agora.

Spiegel: Logo, Kiev é o único culpado por ainda não haver paz?

Zakharchenko: No acordo de Minsk, 90% das exigências se aplicam a Kiev. Nós fizemos tudo  que era possível. Nós retiramos tecnologia militar e entregamos prisioneiros ao outro lado.

Spiegel: Todos os prisioneiros?

Zakharchenko: O que você quer dizer com todos? Nós entregamos os últimos 16 ucranianos, mas então a guerra prosseguiu, e cada lado agora está fazendo novos prisioneiros. E Kiev não está retirando seus armamentos pesados.

Spiegel: O senhor também não o fez. A Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) confirmou que seus homens dispararam mísseis contra a cidade de Avdiivka nos últimos dias.

Zakharchenko: E eu posso lhe dizer o motivo. Se retiramos nossas armas e o outro lado dispara contra nós, nós temos que responder. Isso é lógico, não é? E esse é o motivo para os armamentos pesados estarem voltando para suas antigas posições.

Spiegel: Logo, a guerra continua.

Zakharchenko: Porque Kiev está ocupando ilegalmente parte de nosso território. Nós definimos "nosso território" como toda a região de Donetsk, dentro das fronteiras que antes a tornavam parte da Ucrânia.

Spiegel: Há sugestões de que a Rússia ainda apoia vocês com tropas e tecnologia militar. Um piloto de tanque russo seriamente ferido confirmou isso em uma entrevista. É hipocrisia continuar negando.

Zakharchenko: Ouça, dois dos meus primos agora estão aqui na República Popular de Donetsk. Eles são cidadãos russos, mas também são meus parentes. Um deles antes morava em Astrakhan e outro em Irkutsk. Um deles é um ex-oficial de carreira. É isso o que você chama de ajuda militar russa? Eu digo que meus primos vieram aqui me ajudar. Kiev chama isso de ajuda russa.

Zakharchenko não está disposto a discutir as revelações do soldado russo Dorzhi Batomunkuyev, que admitiu em uma entrevista em março que ele e todo seu batalhão, que consiste de 31 tanques, foram enviados a Donetsk em 8 de fevereiro. Ele disse que os tanques foram pintados em cores de camuflagem em seu quartel de origem, e que posteriormente foram ordenados a entregarem todos seus documentos e telefones. Segundo o soldado, ninguém lhes deu ordem de marchar, e apenas perceberam para onde estavam indo quando viram a placa dos limites da cidade de Donetsk.

Spiegel: Vamos ignorar o exército russo por um momento. Com quantos homens o senhor conta? 23 mil, como disse recentemente? Mais 60 mil reservistas?

Zakharchenko: Há mais do que isso agora, mas é um segredo militar. Esses 60 mil são voluntários que se alistaram no comando militar e pegariam em armas em uma emergência.

Spiegel: Não parece que o senhor conseguirá chegar a um acordo político com Kiev. O presidente Petro Poroshenko descreve a República Popular de Donetsk e Luhansk como "território ocupado". O senhor agora está ameaçando tomar Mariupol e Carcóvia.

Zakharchenko: Eu sempre disse que a República Popular de Donetsk é composta por toda a antiga região de Donetsk. Nós vemos qualquer parte dela que não esteja em nossas mãos como estando ilegalmente ocupadas. Carcóvia não faz parte disso.

Spiegel: As fronteiras da antiga região de Donetsk ainda estão muito distantes de você.

Zakharchenko: O que você quer dizer com distantes? São apenas 120 quilômetros.

Spiegel: Como o senhor pretende capturar esse território adicional?

Zakharchenko: Quanto mais rápido, melhor. E por meios pacíficos, se possível.

Não há sinal de um acordo pacífico, com nenhum dos lados disposto a recuar no momento. Zakharchenko fala rapidamente, e seus fatos e argumentos são com frequência contraditórios. Assim como seu oponente, o presidente ucraniano Poroshenko, o "líder" de Donetsk escolhe a dedo os elementos do acordo de Minsk que lhe favorecem, ou os reinterpreta. É uma colcha de retalhos da verdade.

Zakharchenko gosta de repetir que não é um político, mas apenas um funcionário que está servindo seu país, e que é independente da Rússia. Todavia, o retrato do presidente russo Vladimir Putin está pendurado na parede de seu gabinete, e a bandeira russa está atrás de sua cadeira. O restante dos móveis são de várias eras. Há uma armadura de cavaleiro no canto e encostado em uma janela está um bastão Bulawa, um símbolo de poder dos governantes cossacos ucranianos. Pistolas modernas estão em exibição em uma estante, juntamente com as obras reunidas de Vladimir Ilyich Lênin. A paisagem mental dos separatistas parece tanto confusa quanto diversa.

Spiegel: Por que nem o senhor e nem o líder da República Popular de Luhansk quiseram assinar o acordo em Minsk, em fevereiro, que (a chanceler alemã) Angela Merkel, (o presidente francês) François Hollande e Vladimir Putin negociaram?

Zakharchenko: Porque as primeiras versões –e há 14 delas– absolutamente não correspondiam a nada que pudéssemos aceitar. No final, nós assinamos aquela que continha os termos mais vantajosos para nós na ocasião.

Spiegel: Sob pressão de Vladimir Putin.

Zakharchenko: Sim, houve uma pressão tremenda –não apenas da Rússia, mas também dos europeus e de Kiev. Entretanto, nós vemos o acordo de Minsk como apenas a primeira etapa de um possível acordo. O outro lado, entretanto, alega que o acordo resolve todas as questões contenciosas. Nós insistimos em negociar diretamente com Kiev.

Spiegel: Os ucranianos desejam ver uma força de paz internacional posicionada em Donbass, a Bacia de Donetsk. Por que o senhor rejeita isso?

Zakharchenko: Segundo a ONU, há uma série de condições para emprego dessas tropas. Kiev teria que admitir que uma guerra real está ocorrendo na Ucrânia, e também teria que declarar estado de guerra. Mas Poroshenko não quer isso, porque assim o Fundo Monetário Internacional se recusaria a conceder empréstimos adicionais. Além disso, nós somos capazes de resolver os problemas daqui nós mesmos. Tropas estrangeiras dificilmente seriam capazes de deter as operações de combate.

Spiegel: Alguns membros do Parlamento russo, a Duma, querem ver forças de paz russas enviadas a Donbass. Essa seria uma opção?

Zakharchenko: Eu acabei de dizer que precisamos resolver nossos problemas nós mesmos.

Spiegel: Os ucranianos querem primeiro a realização de eleições regionais no leste da Ucrânia. O senhor, entretanto, insiste que primeiro deve haver uma emenda constitucional definindo o status dos territórios separatistas. Podem ser necessários meses até que isso aconteça.

Zakharchenko: E por que não podemos resolver esses problemas ao mesmo tempo? Por que o bloqueio econômico não é suspenso primeiro?

Spiegel: Se eleições forem realizadas em seu território, os cidadãos que fugiram para outras partes da Ucrânia depois do início da guerra também poderiam votar?

Zakharchenko: O número deles é menor do que o de refugiados que foram para a Rússia. Até o início da guerra, a República Popular de Donetsk contava com uma população de 4,8 milhões. Mais de um milhão vive atualmente na Rússia e talvez 2,3 milhões ainda estejam aqui. Outros 700 mil estão agora em território da República Popular de Donetsk ocupado pela Ucrânia.

Spiegel: O senhor espera ter o apoio deles. O governo de Kiev supostamente assumiria pleno controle da fronteira com a Rússia logo depois das eleições. O senhor aceitaria isso?

Zakharchenko: Na verdade, nós é que assumiríamos o controle. Segundo o acordo de Minsk, nós formamos o serviço de fronteira, e o desenvolvimento de postos de fronteia será concluído nas próximas três semanas. Cruzar a fronteira ilegalmente não mais será possível.

Spiegel: Se vocês forem os únicos controlando a fronteira, tecnologia militar russa continuará entrando livremente no país.

Zakharchenko: Você já as viu pessoalmente na fronteira?

Spiegel: Vocês não permitem nossa presença lá, nem mesmo da OSCE, com poucas exceções. Mas a batalha por Debaltseve, em fevereiro, não teria sido possível sem ajuda russa.

Zakharchenko: Eu comandei 587 homens quando Debaltseve foi capturada. Acredite em mim, eu não vi nenhuma unidade militar russa regular. E fui ferido lá.

Spiegel: Muitos grupos rebeldes estão lutando de modo independente ao seu lado. O senhor tem algum controle sobre essas unidades armadas?

Zakharchenko: Segundo Minsk, nós somos obrigados a desarmar as unidades que não fazem parte do exército popular ou dos batalhões de defesa do território. Isso foi feito sem qualquer excesso, e essas pessoas foram incorporadas no Ministério do Interior ou em outros batalhões.

Mas o mundo em sua república está longe de tão ordenado quanto Zakharchenko tenta retratar. Seus homens no Ministério da Defesa de fato veem o desarmamento dos rebeldes que agem de modo independente como um problema. O programa só começou em abril, eles dizem, e apenas nos primeiros cinco dias, 65 homens foram presos por se recusarem a entregar suas armas voluntariamente.

Spiegel: O senhor já considerou a possibilidade de uma federação com a Ucrânia?

Zakharchenko: Sim, há um ano. Mas agora isso acabou.

Spiegel: O senhor agora quer que a Rússia reconheça sua república. Mas isso "complicaria imensamente" uma solução para o conflito, diz o ministro das Relações Exteriores alemão, Frank-Walter Steinmeier.

Zakharchenko: A Alemanha deveria nos reconhecer ainda mais cedo. Isso tornaria as coisas mais fáceis para as pessoas daqui.

Spiegel: As condições são ruins em sua república desde o início do bloqueio econômico. O que o senhor está fazendo para combater o problema?

Zakharchenko: Nós começamos a pagar as pensões, estamos lentamente retomando a produção de carvão e a ferrovia estará operando de novo em breve. Seja carvão ou metal, nós retornaremos aos níveis de produção de 2014.

Spiegel: O dinheiro para as pensões está vindo da Rússia? É por isso que estão recebendo em rublos?

Zakharchenko: Nós fornecemos carvão à Rússia e somos pagos em rublos. Mas você acha que a Ucrânia poderia sobreviver sem nosso carvão? Ela está comprando por todo tipo de rota tortuosa. A UE também está interessada, incluindo a Bulgária, Polônia, Romênia e, especialmente, a Espanha. Isso significa que recebemos rublos, hrivnas e dólares.

Spiegel: Quem o senhor acha que deve pagar pela reconstrução de Donbass?

Zakharchenko: A Ucrânia, é claro. Ela destruiu tudo aqui.

Spiegel: A Ucrânia está praticamente falida.

Zakharchenko: Nós não nos importamos se a Ucrânia está falida. Não somos cidadãos da Ucrânia. Nós apresentaremos a conta para ela. Talvez dinheiro alemão também ajude.

Durante a entrevista, Zakharchenko mencionou repetidamente os "fascistas" em Kiev. Ele critica o fato de o governo de Poroshenko estar recebendo 500 milhões de euros da "chanceler de ferro", Angela Merkel. Ele insiste que sua República Popular é que teria direito ao dinheiro, como compensação pelas perdas na guerra. Mas o dinheiro alemão está sendo "roubado" em Kiev, ele argumenta. É óbvio que o líder da República Popular depende totalmente da Rússia. O rublo já chegou a Donetsk, onde a moeda russa pode ser usada para pagar por gasolina nos postos. Caixas registradoras em rublos também podem ser encontradas nos supermercados e os itens nos cardápios dos restaurantes contam com preços em rublos.

Mesmo assim, há um toque de melancolia na resposta final de Zakharchenko. A entrevista já prosseguia por uma hora e, às vezes, se transformava em uma discussão acalorada. No final, ocorreu uma grande discussão entre o líder separatista e o repórter sobre se o levante na Praça Maidan, em Kiev, foi um golpe de Estado e se o atual governo em Kiev é uma "junta fascista". Zakharchenko ainda insiste que sua república está combatendo fascistas, e diz que a Rússia sente o mesmo.

Spiegel: Todavia, seu ex-primeiro-ministro, Alexander Borodai, lamenta que a Rússia não apoie o desejo de independência da população de Donbass da mesma forma que apoia os russos na Crimeia. O senhor concorda?

Zakharchenko: Essa é a opinião pessoal dele. Mas se houvesse uma "primavera russa" aqui, como ocorreu na Crimeia, eu votaria por ela com ambas as mãos.