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'Não sou um carniceiro': Uma entrevista com o arquiteto da morte do Estado Islâmico

Iraquiano xiita da unidade Mobilização Popular, que apoia as forças do governo, monta guarda durante confrontos com militantes do Estado Islâmico na cidade de Saqlawiya, nos arredores de Fallujah. As Forças de Segurança do Iraque e combatentes sunitas avançaram nas regiões de Ramadi e Fallujah, como esforço para reconquistar a capital de Anbar dos jihadistas - Ahmad al-Rubaye/AFP
Iraquiano xiita da unidade Mobilização Popular, que apoia as forças do governo, monta guarda durante confrontos com militantes do Estado Islâmico na cidade de Saqlawiya, nos arredores de Fallujah. As Forças de Segurança do Iraque e combatentes sunitas avançaram nas regiões de Ramadi e Fallujah, como esforço para reconquistar a capital de Anbar dos jihadistas Imagem: Ahmad al-Rubaye/AFP

Christoph Reuter

17/07/2015 06h01

O portão pesado abriu lentamente, mas apenas depois que os guardas ligaram para o quartel-general para confirmar a identidade da equipe da "Spiegel" e a entrevista marcada para as 22h. Dentro havia uma pista de obstáculos de muros de concreto de quatro metros de altura com Humvees, equipados com metralhadoras, estacionados em dois cantos diferentes. Só aí é que o portão da prisão de fato apareceu.

A instalação de alta segurança fica em Bagdá, mas seu nome e localização exata não podem ser revelados. Essas foram as condições para uma entrevista com seu preso mais proeminente: um homem magro na faixa dos 30 anos conhecido por seu nome de guerra, Abu Abdullah. Por um ano e meio, ele foi o chefe de logística dos ataques suicidas realizados pelo Estado Islâmico em Bagdá. Abu Abdullah é um dos poucos líderes do Estado Islâmico capturados vivos. A maioria ou detona a si mesmo ou engole as cápsulas de veneno que muitos deles carregam para evitar a captura. Ou morrem em combate. Ser capturado vivo não faz parte do plano do grupo terrorista.

Mas Abu Abdullah foi dominado tão rapidamente que não teve tempo de se matar. Ele esteve sob vigilância por algum tempo antes de sua captura no final de julho de 2014, e sua fábrica de bombas, camuflada como uma oficina mecânica, foi tomada intacta pelas autoridades. Surpreendentemente, o homem também está falando na prisão.

O nome dele apareceu repetidas vezes durante meses de pesquisa sobre a estrutura da liderança do Estado Islâmico. Além disso, os investigadores da polícia iraquiana, o serviço secreto do Ministério do Interior e outras autoridades forneceram detalhes sobre os depoimentos dele à "Spiegel".

Esses fragmentos são consistentes com a imagem do Estado Islâmico de uma organização na qual as responsabilidades são divididas, até mesmo seladas internamente. As pessoas sabem apenas o máximo que precisam para suas operações –-como numerosas pequenas peças em um maquinário que podem ser substituídas imediatamente quando quebram. Mesmo se quisessem, a maioria dos membros do Estado Islâmico pode fornecer pouca informação sobre sua estrutura geral. Abu Abdullah, entretanto, ocupava uma posição chave em Bagdá, uma vital para os ataques terroristas na cidade. Era ele quem escolhia os locais para os ataques, quem equipava os homens-bomba e quem os acompanhava até pouco antes da detonação.

'Obras de arte'

Nós só fomos autorizados a falar com ele pessoalmente depois que as autoridades iraquianas o interrogaram por vários meses. A entrevista teve que ocorrer à noite, por causa do trânsito reduzido e, consequentemente, do risco menor de que um homem-bomba possa atacar o portão da prisão, como já aconteceu várias vezes no passado. As autoridades também não mediram esforços para manter sua localização e o cronograma de seus movimentos em segredo. "Abu Abdullah e outros presos importantes são transferidos constantemente de uma prisão para outra para impedir as tentativas de fuga", disse o capitão Safar, da polícia criminal.

Durante o governo do ex-primeiro-ministro Nouri al-Maliki, em particular, a corrupção era tão onipresente que até mesmo os mais perigosos terroristas do Estado Islâmico escapavam com frequência da prisão, sem contar as várias fugas em massa. Juízes, políticos e policiais corruptos, que aceitavam suborno do Estado Islâmico, também eram um problema. "Na época, nós queríamos que os terroristas presos fossem executados o mais rápido possível, para impedi-los de simplesmente saírem andando da prisão", lembra um investigador do serviço secreto. Ele diz que a situação melhorou sob o novo primeiro-ministro, Haider al-Abadi, e que algumas das autoridades corruptas foram suspensas. Entretanto, eles contestam suas suspensões em tribunais que provavelmente estão abertos a suborno.

Segundo um dos investigadores, a batalha da polícia e do serviço secreto iraquianos contra o Estado Islâmico mais se parece com uma guerra do que com combate ao crime. Os agentes do Estado Islâmico detonam a si mesmos em ondas, às vezes vários de uma vez, em Bagdá –-em mesquitas, nos mercados, em frente aos postos de controle e restaurantes. Quando os investigadores falam sobre os organizadores dos ataques, não há nenhum pingo de cinismo em suas vozes. "Eram obras de arte", disse o capitão Safar sobre os carros-bomba de um certo Abu Samir. "Eles eram tão sofisticados que destruíam tudo. Não restava nada do carro e nada para investigar sobre como os explosivos foram montados."

Aos olhos deles, o único motivo para não executar os membros do Estado Islâmico presos é por poderem fornecer informação. Isto é, se falarem, como Abu Abdullah. "Ele cita nomes, conhece detalhes sobre os suspeitos, coopera –-em pequenas doses, mas fala", disse o investigador. Enquanto ele falar, ele não será sentenciado à morte.

A polícia e o serviço secreto insistem que não fizeram uso de tortura para fazê-lo confessar. "Nós já o seguíamos", disse Safar, "e tínhamos vídeos de seus encontros com as pessoas que realizavam os ataques e outros contatos. Ele cooperou desde o início. Falar conosco é seu seguro de vida".

Abu Abdullah também nos disse que tem sido tratado de modo decente, mas isso não pôde ser confirmado. Quanto ao conteúdo do que diz, corresponde à perícia dos explosivos usados nos ataques. Os investigadores acreditam que os depoimentos de Abu Abdullah são um retrato preciso do que fazia.

Seus interrogadores o descrevem como um fanático equilibrado –-um que organizou pelo menos uma dúzia e meia de ataques que resultaram em centenas de vítimas. Ele escolhia os alvos e enviava os homens-bomba com coletes suicidas ou carros-bomba.

Ele se arrepende do que fez? "Realmente não", disse um investigador, que acrescentou que isso realmente não importa. "Você mesmo poderá perguntar para ele em breve." A entrevista ocorreu em uma cela vazia com a porta aberta e com um policial montando guarda. Quando Abu Abdullah foi trazido, ele estava com uma venda marrom, que só foi removida depois que ele se sentou em uma cadeira dobrável na cela. Durante parte da conversa, ele segurou a venda em suas mãos algemadas, a amassando enquanto falava de modo monótono, oferecendo detalhes do aparato de poder interno do Estado Islâmico.

Spiegel: Qual critério você usava para selecionar os locais de seus ataques?

Abu Abdullah: A intenção era atingir o máximo de pessoas possível –-especialmente policiais, soldados e xiitas.

Spiegel: Que tipos de locais eram?

Abu Abdullah: Postos de controle da polícia, mercados, mesquitas –-mas apenas os xiitas.

Spiegel: Você se arrepende de ter matado essas pessoas?

Abu Abdullah: Eram infiéis! Os xiitas são infiéis, estou convencido disso.

Spiegel: Mas são muçulmanos como você.

Abu Abdullah: O motivo para terem tido a oportunidade de se arrependerem e se tornarem sunitas.

Spiegel: Quantos ataques você organizou no total? E onde obteve os explosivos para eles?

Abu Abdullah: Não consigo me lembrar de todos eles, mas no quarto de ano antes de minha prisão, foram 15. Para os carros-bomba, usávamos explosivos plásticos C4 e explosivos removidos dos projéteis de artilharia. Mas para os cintos suicidas, em geral eu perfurava os cartuchos das armas antiaéreas, cujo efeito da pólvora era mais intenso. Então preparava os cintos e coletes em tamanhos diferentes.

Mesmo à noite, ainda é brutalmente quente, e um ventilador faz barulho em algum lugar no corredor. Abu Abdullah enxuga o suor em sua testa com a venda. Ele faz uma breve pausa, então diz que contou de novo e que foram 19 ataques em três meses, não 15. Ele fala com voz calma, concentrado e claramente tentando não deixar de fora nenhum detalhe.

Spiegel: Como você escolhia os homens que detonariam a si mesmos?

Abu Abdullah: Eu não os escolhia. Esse trabalho cabia aos planejadores militares, que estavam acima de mim na hierarquia. Os homens eram trazidos até mim e a maioria vinha de Fallujah. Eu só era responsável pela parte final da operação, e isso significava preparar os homens na minha oficina e então levá-los ao local certo. Eu recebia antecipadamente da liderança as medidas da pessoa para poder fazer o cinto do tamanho certo. Mas sempre tinha cintos de diferentes tamanhos preparados.

Spiegel: As famílias dos homens-bomba eram notificadas após a morte deles?

Abu Abdullah: Eu também não era responsável por isso. A pessoa que o envia também cuida da família.

Spiegel: De onde vinham os homens?

Abu Abdullah: A maioria deles vinha da Arábia Saudita, Tunísia, Argélia, cerca de 1 entre 10 era iraquiano. E também tivemos dois ocidentais, um australiano e um alemão, Abu al-Qaqa al-Almani.

Ahmet C., de Ennepetal, Renânia do Norte-Vestfália, um alemão de 21 anos de descendência turca, lutou pelo Estado Islâmico sob esse nome. No espaço de poucos meses, o estudante colegial mudou radicalmente. Ele distribuía o Alcorão nas zonas de pedestres das cidades alemãs e então viajou para a Síria via Turquia. De lá, ele foi trazido pelo Estado Islâmico para o Iraque. Ele realizou um de pelo menos cinco ataques que atingiram postos de controle da polícia e do exército, entre outros alvos, em 19 de julho de 2014. "Dois cavaleiros do Islã e heróis do califado foram lançados", dizia uma proclamação do EI sobre ele e outro homem-bomba suicida, como se fossem armas.

Spiegel: O homem-bomba alemão não falava árabe e você não fala inglês. Como vocês se comunicavam?

Abu Abdullah: Ele entendia algumas poucas palavras, mas usávamos principalmente gestos. Foi minha operação mais curta. O local onde eu o peguei era próximo do local da detonação. Ele estava em Bagdá pela primeira vez na vida e 45 minutos depois estava morto. Eu pensei: agora até mesmo pessoas da Alemanha estão vindo aqui para detonarem a si mesmas. Me deu uma sensação de alegria conhecer um cristão que se converteu ao Islã e sacrificou a si mesmo. Eu me senti próximo dele, porque também só encontrei a verdadeira fé tarde na vida.

Abu Abdullah está errado. Ahmet C. nunca foi cristão. Ele era um muçulmano alemão. Abu Abdullah se converteu de xiita em sunita aos 16 ou 17 anos, após ser recrutado por um pregador. Ele veio de uma antiga família xiita de Bagdá e tinha parentesco com um líder da milícia radical xiita Asa'ib Ahl al-Haq, a chamada Liga dos Justos, que por anos realizou ataques contra as tropas americanas no Iraque. Hoje, o grupo luta contra o Estado Islâmico em muitas frentes.

Spiegel: Alguns dos homens que você acompanhou tinham dúvidas a respeito de sua missão?

Abu Abdullah: Não, caso contrário teriam falhado em executá-las. Eles estavam preparados há muito tempo para suas missões. Quando chegavam até mim, estavam calmos, às vezes até mesmo contentes. Quando vestiam o cinto eles diziam, por exemplo, "Cabe bem!" Abu Mohsen Qasimi, um jovem sírio, ainda fazia piadas dois minutos antes de dar início à sua tarefa, e antes de partir sozinho, ainda se despediu amistosamente. Com um jovem saudita, eu estava me perguntando como poderíamos trocar de lugar sem chamar atenção, porque eu estava inicialmente ao volante. Nós fingimos que o carro teve um problema, ambos descemos e empurramos o carro um pouco. Ninguém percebeu nada. Nós dois rimos.

Spiegel: Você está corando ao contar essa história. Aparentemente são lembranças agradáveis. Você faria tudo de novo?

Esse foi o único momento na conversa de uma hora e meia em que Abu Abdullah hesitou. Ele empalideceu, como se tivesse sido pego em flagrante. Então diz que não pode responder à pergunta.

Spiegel: O fluxo constante de novos visitantes à oficina mecânica não chamava atenção?

Abu Abdullah: Nós cuidamos para que parecessem homens jovens normais, sem barba, de camiseta, com cabelo penteado e com gel. Eu tinha uma equipe de motoristas; as minas também podiam ser retiradas na minha oficina, apesar de eu não ser diretamente responsável por elas. Apenas pelos cintos dos homens que detonavam a si mesmos.

Spiegel: Qual era a idade dos homens-bomba?

Abu Abdullah: O mais novo tinha 21 anos, o mais velho por volta de 30.

A energia cai e a cela fica na escuridão até os celulares pertencentes ao fotógrafo e aos guardas oferecerem uma luz pálida. Até mesmo em uma prisão de alta segurança, a eletricidade cai por vários minutos. Abu Abdullah continua falando.

Spiegel: Como você se tornou o chefe de logística em Bagdá?

Abu Abdullah: Eu fui escolhido pelos planejadores militares do Estado Islâmico. E provei rapidamente que podia fazer isso. Eu não era um simples seguidor, eu era um planejador, um pensador.

Spiegel: E você conhecia Bagdá muito bem.

Abu Abdullah: Sim, esta é minha cidade. Eu nasci aqui.

Spiegel: Qual é sua lembrança mais antiga de Bagdá?

Abu Abdullah: Quando eu era pequeno eu costumava ir ao Parque Saura, o zoológico de Bagdá, com meus pais nos fins de semana. Meu pai costumava me comprar sorvete. Às vezes também íamos aos mercados de Shorjah.

Spiegel: São boas lembranças?

Abu Abdullah: Sim, era bom.

Spiegel: Como você pode matar indiscriminadamente pessoas em sua própria cidade? Você evitava os locais dos quais tinha lembranças pessoais?

Abu Abdullah: Não, absolutamente não! Isso não exercia nenhum papel. Eu não fazia por ser sanguinário. É a jihad. Eu achava que em algum momento esses xiitas se converteriam ou deixariam a cidade. Não sou um carniceiro. Estava executando um plano.

Spiegel: Mas o plano nunca funcionou, independente de quantas pessoas morressem. Apenas intensificou o ódio.

Abu Abdullah: Eu achava que as pessoas que experimentassem uma explosão começariam a pensar e ficar com medo...

Spiegel: Mas não funcionou.

Abu Abdullah: Não importa. Minha ideia era continuar até todos se converterem. Ou emigrarem. Não importava quando. Não importava!

Sua voz ganha um tom agitado de alguém que precisa explicar repetidamente um conceito simples para um tolo.

Spiegel: Você também detonaria a si mesmo?

Abu Abdullah: Eu nunca pensei nisso. Não era meu trabalho. Fui escolhido para planejar as operações, não executá-las eu mesmo. Eu era um coordenador, não um executor.

Spiegel: Como você vê seu futuro?

Abu Abdullah: É incerto.