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Religioso turco rebate acusações e diz que Erdogan foi 'envenenado pelo poder'

17.jul.2016 - O escritor Fethullah Gulen, acusado de organizar um golpe contra Erdogan - Chris Post/AP
17.jul.2016 - O escritor Fethullah Gulen, acusado de organizar um golpe contra Erdogan Imagem: Chris Post/AP

Veit Medick e Roland Nelles*

20/07/2016 06h00

Em um encontro em seu condomínio na Pensilvânia, o religioso turco Fethullah Gülen se defende das denúncias feitas pelo presidente turco de que ele estaria por trás do golpe fracassado do último fim de semana (15). Ele afirma que o poder intoxicou Erdogan.

Gülen está sentado em uma pequena sala de visitas em sua casa. Há uma mesinha ao seu lado, um leque azul e um copo de água. Ele usa blazer escuro e chinelos de couro. O homem idoso quer dizer algo.

"Estou pronto para ser testado por uma comissão internacional", declara. "Se concluírem que sou culpado, irei para a câmara de execução. Mas isso não acontecerá, porque não fiz nada."

Gülen tem sido o foco de considerável atenção internacional nos últimos dias, depois que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, o acusou e a seu influente movimento islâmico de engendrar, de sua casa nos EUA, o fracassado golpe militar na Turquia no fim de semana.

O pregador vive no exílio nos EUA desde 1999 porque tem muitos inimigos em seu país. Sua organização, chamada Hizmet, opera uma rede global de escolas, empresas e canais de mídia e é tratada como grupo terrorista pelos seguidores de Erdogan. O condomínio protegido de Gülen, localizado perto da cidadezinha de Saylorsburg, na Pensilvânia, a cerca de 150 km de Nova York, é considerado por autoridades de Ancara o quartel-general de seu maior inimigo.

As acusações de Erdogan são sérias, e Gülen quer defender a si mesmo e a seu movimento. Ele diz que não teve nada a ver com a tentativa de golpee que o comportamento de Erdogan beira a insanidade. "Eu já disse várias vezes que sou contra qualquer forma de violência com o fim de alcançar objetivos políticos", diz ele. Gülen também afirma que apoia a democracia na Turquia. "Eu rejeito os golpes militares", diz ele.

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Uma rara visita

Os que visitam esse senhor de 75 anos são submetidos a uma revista de segurança na entrada de seu espaçoso conjunto residencial, quando guardas armados verificam cada convidado. Gülen é alvo de ameaças de morte anônimas, e o FBI o aconselhou a tomar precauções há vários anos. Há diversos edifícios na propriedade, que parece um parque, onde os seguidores de Gülen se dedicam à oração. Poucas pessoas são vistas, e há um Porsche SUV estacionado na frente. Não se costuma receber convidados aqui, e a mídia virtualmente não tem acesso.

Mas neste fim de semana Gülen abriu as portas para um grupo de repórteres. Ele vive em reclusão nos fundos da propriedade, e os convidados devem retirar os sapatos ou envolvê-los em filme plástico antes de entrar em seus cômodos. As mulheres devem cobrir os ombros.

A sala de recepção é formal, com muito ouro, enfeites, tapetes elegantes e belas porcelanas. Suras do Alcorão estão pendurados nas paredes e uma enciclopédia do islamismo pode ser vista nas prateleiras. Uma destas está coberta por diversos objetos: um helicóptero de combate de plástico, um globo, um vaso. Há um rádio portátil em um canto, e da janela se avistam os morros verdes ao redor.

Gülen está sentado em um sofá bege e parece frágil. Um de seus assessores diz que ele sofre problemas cardíacos e diabetes. Gülen fala em turco com voz baixa, mas suas respostas são longas, muito longas. O pregador se porta como um estadista e fala sobre Erdogan. Ele conhece bem o presidente turco.

Durante a ascensão do Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), de Erdogan, os dois eram aliados, unidos por sua profunda fé. Hoje se desprezam mutuamente.

Quando Gülen foi para o exílio, conclamou seus seguidores a tomar o poder na Turquia infiltrando-se nas instituições do Estado, o que levou as autoridades judiciais a emitir um mandado de prisão contra ele.

A ascensão de Gülen começou nos anos 1970, quando ele era imã em uma mesquita na cidade de Edirne, no noroeste da Turquia. O clérigo carismático distribuía seus sermões em fitas de vídeo e áudio, e seus seguidores não paravam de aumentar.

No mesmo período, ele formou uma rede de escolas, centros de tutoria e dormitórios particulares, que chamou de "casas de luz". Os ex-alunos dessas instituições acabaram formando uma rede de apoio a Gülen ao longo de décadas. Hoje eles possuem jornais, canais de televisão e bancos.

As opiniões sobre o imã não poderiam ser mais divergentes. Pessoas que deixaram seu movimento descrevem a comunidade como uma seita, semelhante à cientologia. Outros consideram Gülen um dos mais importantes pregadores do islamismo moderno, que busca disseminar uma interpretação mais tolerante da religião.

Durante muito tempo, Erdogan foi um dos mais importantes apoiadores de Gülen --e eles até fizeram uma aliança informal: os seguidores de Gülen garantiam votos para o AKP e Erdogan dava proteção aos obscuros negócios do movimento de Gülen depois que chegou ao poder, em 2002.

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Caminhos divergentes

Mas depois das eleições parlamentares em 2011, nas quais o AKP recebeu quase 50% dos votos, Erdogan parece ter-se sentido forte o suficiente para romper o pacto com Gülen. Erdogan, que era primeiro-ministro na época, demitiu importantes autoridades judiciais e funcionários do partido considerados seguidores de Gülen. Ele também ordenou que o serviço secreto monitorasse o movimento.

A ruptura final entre os dois se deu em novembro de 2013, quando Erdogan anunciou sua decisão de fechar os centros educacionais do movimento de Gülen. Cerca de 2 milhões de jovens turcos frequentam as escolas para se preparar para os exames de admissão na universidade. Elas são a principal fonte de renda de Gülen, mas também servem como lugares onde ele pode recrutar novos seguidores.

Há anos, Erdogan acredita que Gülen tenta desafiar seu poder. Enquanto isso, Gülen acredita que seu antigo amigo se tornou um tirano decidido a eliminar qualquer oposição.

"Erdogan é tão faminto de poder que acredita que todo mundo também é", diz Gülen. "Erdogan vem de uma família pobre e hoje vive em muitos palácios. O sucesso e o poder o envenenaram."

Hoje em dia, Gülen tenta se apresentar como o polo oposto ao presidente em Ancara. Sua organização tem milhões em ativos à disposição, mas o próprio Gülen afirma que quase não tem posses pessoais. Seus assessores dizem que ele vive somente para sua fé. Seu pequeno apartamento, que ele abriu aos visitantes nesse dia, tem dois quartos. Ele dorme em um colchão no chão, e a seu lado há uma mesa com livros, pequenas garrafas de óleo e uma caixa de joias otomana. Uma foto do Domo da Rocha em Jerusalém pende da parede e uma bandeira turca cobre a prateleira.

Um exame mais atento sugere que aqui se dá muita consideração à segurança. A grande varanda de Gülen é dotada de painéis pretos para que ele não possa ser visto facilmente, e os quartos do apartamento só são abertos com um cartão eletrônico especial. Um elevador conduz Gülen diretamente à garagem, de onde ele é levado regularmente ao hospital para exames. Fora isso, segundo as pessoas próximas, ele nunca sai de casa.

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Por que o isolamento?

Gülen já foi descrito como extremamente introvertido, mas é difícil imaginar que isso seja verdade. Como, afinal, alguém tão reservado poderia construir um movimento tão grande e influente? Os seguidores do movimento estão em cargos importantes em todos os níveisdo Estado --no judiciário, nos militares e na esfera política. Quando Erdogan mostra sua força no aparato do governo, como faz agora, partes da rede de Gülen também são afetadas.

Mas esse senhor tranquilo, de aparência modesta, também tem um punho firme no jogo políticoem seu país. Gülen insinua que pode ter sido o próprio Erdogan quem encenou a tentativa de golpe para reforçar seu poder, e nota que o presidente falou sobre uma oportunidade de ouro para realizar um expurgo. Afinal, disse ele, os rebeldes não conseguiram eliminar a liderança política logo no início. De fato, ele expõe sua própria teoria da conspiração para enfrentar a de Erdogan. Mas não tem provas.

Nesse conflito, é difícil distinguir quem diz a verdade de quem mente, mesmo que parcialmente. A política interna turca há muito tempo está cheia de intrigas, propaganda e disputas de poder. Mas uma visita a Gülen não deixa a impressão de que ele seja algum tipo de cérebro do terror ou um golpista. Mas é impossível ter certeza. Em tais aparições, é difícil saber o que é real e o que encenação.

Então o que acontecerá agora? Erdogan está exigindo que os EUA extraditem Gülen, mas ainda não fez um pedido formal, e Gülen não acredita que será extraditado. Erdogan, diz ele, não tem provas para mostrar aos americanos. "O sistema judicial dos EUA funciona. Os americanos não vão me entregar se não houver um motivo concreto."

Seu elogio é mais que desnecessário. Com situação de residente permanente, ele diz que gosta muito dos EUA e se sente em casa aqui. De fato, ele até se interessou pela política americana.

"Hillary Clinton é uma boa mulher", diz Gülen. "É uma figura de esperança para este país."

*Reportagem adicional por Christoph Sydow