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Análise: Um app bem-sucedido é um verdadeiro caça-níquel; veja como ele funciona

Doug Mills/The New York Times
Imagem: Doug Mills/The New York Times

Tristan Harris*

11/08/2016 06h00

Aplicativos de celular são feitos para serem viciantes. Eles se aproveitam da fraqueza humana para garantir sua constante atenção. Mas existe outro caminho.

Quando nos pegamos absortos em nossos celulares, achamos que é só por acaso e responsabilidade nossa. Mas não é. É também porque smartphones e aplicativos sequestram nossas propensões psicológicas e vulnerabilidades inatas.

Aprendi sobre as vulnerabilidades de nossas mentes quando eu era mágico. Os mágicos começam procurando por pontos cegos, vulnerabilidades e tendências das mentes das pessoas, de forma que eles consigam influenciar o que as pessoas fazem sem que elas nem mesmo percebam.

Uma vez que você sabe como provocar reações nas pessoas, você pode tocá-las como um piano. E é exatamente isso o que a tecnologia faz com sua mente. Desenvolvedores de aplicativos usam suas vulnerabilidades psicológicas na corrida para segurar sua atenção.

Quero lhe mostrar como eles fazem isso, e dar esperanças de que temos uma oportunidade de exigir um futuro diferente das empresas de tecnologia.

Se você é um aplicativo, como fazer para manter as pessoas viciadas? Vire uma máquina caça-níqueis.

A pessoa média verifica seu telefone 150 vezes por dia. Por que fazemos isso? Estamos fazendo 150 escolhas conscientes? Uma das principais razões é o ingrediente psicológico número um dos caça-níqueis: recompensas variáveis intermitentes.

Se você quer maximizar a viciabilidade, tudo que os desenvolvedores de tecnologia precisam fazer é associar a ação de um usuário (como puxar uma alavanca) a uma recompensa variável. Você puxa uma alavanca e imediatamente recebe ou uma recompensa atraente (para cada combinação, um prêmio!) ou nada. A viciabilidade é maximizada quando o índice de recompensa é mais variável.

E por acaso esse efeito realmente funciona nas pessoas? Sim. Máquinas caça-níqueis movimentam mais dinheiro nos Estados Unidos do que beisebol, filmes e parques temáticos todos juntos. Em comparação com outros tipos de jogos de azar, as pessoas se “envolvem de forma problemática” com máquinas caça-níqueis de três a quatro vezes mais rápido, de acordo com a professora da Universidade de Nova York Natasha Dow Schüll, autora de “Addiction by Design” (em tradução livre, “Projetado para Viciar”).

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Sentimento de pertencimento

Mas eis uma infeliz verdade: bilhões de pessoas carregam uma máquina caça-níqueis no bolso.

Quando sacamos nosso telefone do bolso, estamos jogando em uma máquina caça-níqueis para ver que notificações recebemos. Quando deslizamos o dedo para olhar o feed do Instagram, estamos jogando em uma máquina caça-níqueis para ver que foto aparece em seguida.

Quando atualizamos nosso e-mail, estamos jogando em uma máquina caça-níqueis para ver que e-mails chegaram. Quando passamos de um perfil para outro em aplicativos de encontros como o Tinder, estamos jogando uma máquina caça-níqueis para ver se tivemos um “match”.

Às vezes isso é intencional: aplicativos e websites enchem seus produtos de recompensas variáveis intermitentes porque é bom para os negócios. Outras vezes, como com o e-mail e os smartphones, é por acidente.

Outra forma como a tecnologia sequestra nossas mentes é ao induzir a probabilidade de 1% de estarmos deixando passar algo de importante. Mas os aplicativos também exploram nossa necessidade de aprovação social. Quando vemos a notificação “Seu amigo Marc marcou você em uma foto”, sentimos instantaneamente nossa aprovação social e sentimento de pertencimento na internet. Mas está tudo nas mãos das empresas de tecnologia.

O Facebook, o Instagram ou o Snapchat podem manipular a frequência com a qual as pessoas são marcadas em fotos ao sugerir automaticamente todos os rostos que deveríamos marcar. Então quando meu amigo me marca, ele na verdade está aceitando a sugestão do Facebook, e não fazendo uma escolha independente. Mas através de escolhas pensadas como essa, o Facebook controla o multiplicador para quão frequentemente milhões de pessoas experienciam sua aprovação social.

O mesmo acontece quando trocamos nossa foto de perfil. O Facebook sabe que esse é um momento quando estamos vulneráveis por aprovação social: “O que meus amigos acham da minha nova foto?” O Facebook pode posicioná-la em destaque no feed de notícias, de forma que ela permaneça por mais tempo e mais amigos curtam ou comentem. Cada vez que eles curtem ou comentam, somos sugados de volta para dentro da página.

Todos respondem naturalmente à aprovação social, mas certos grupos, especialmente adolescentes, são mais vulneráveis a ela do que outros. É por isso que é tão importante reconhecer o quão poderosos os desenvolvedores são quando exploram essa vulnerabilidade.

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O império

O LinkedIn é outro criminoso. O LinkedIn quer o máximo possível de pessoas criando obrigações sociais umas para as outras, porque a cada vez que elas são recíprocas (ao aceitar uma conexão, ao responder a uma mensagem, ou ao endossar a qualidade de um colega) elas precisam voltar ao site do LinkedIn, onde fazem com que as pessoas passem mais tempo.

Assim como o Facebook, o LinkedIn explora uma assimetria na percepção. Quando você recebe o convite de alguém para se conectar, você imagina que essa pessoa está fazendo uma escolha consciente para convidá-lo, quando na verdade ela provavelmente respondeu inconscientemente à lista de contatos sugeridos pelo LinkedIn.

Em outras palavras, o LinkedIn transforma seus impulsos inconscientes em novas obrigações sociais que milhões de pessoas se sentem obrigadas a retribuir. Tudo isso enquanto lucram com o tempo que as pessoas gastam fazendo isso.

Bem-vindo ao império das mídias sociais.

A cultura ocidental é construída em torno de ideais de escolhas e liberdade individuais. Milhões de nós defendemos com veemência nosso direito de fazer escolhas “livres”, enquanto ignoramos como nossas escolhas são manipuladas desde o começo por menus que nem sequer escolhemos.

Isso é exatamente o que mágicos fazem. Eles dão às pessoas a ilusão da livre escolha enquanto arquitetam o menu de forma que eles vençam, não importa o que você escolha.

Quando as pessoas recebem um menu de opções, elas raramente perguntam: “O que não está no menu?” Ou: “Por que estão me dando essas opções e não outras?” “Eu sei quais são os objetivos do provedor do menu?” “Este menu está ajudando minha necessidade original, ou essas opções são uma distração?”

Por exemplo: imagine que você saiu com seus amigos em uma noite de terça-feira e quer continuar conversando em algum outro lugar. Você abre o Yelp para encontrar recomendações nas proximidades e ver uma lista de bares. O grupo todo olha cada um para seu celular comparando bares, analisando as fotos uns dos outros, comparando coquetéis. Seria esse menu ainda relevante para a vontade inicial do grupo?

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Mesmo quando não estamos com fome

Não que bares não sejam uma boa escolha, mas a verdade é que o Yelp substituiu a pergunta original do grupo (“para onde podemos ir, para continuar conversando?”) por uma pergunta diferente (“que bar tem boas fotos de coquetéis?”). Além disso, o grupo cai na ilusão de que o menu do Yelp representa todas as opções de lugares aonde  ir.

Quanto mais opções a tecnologia nos dá em praticamente todos os domínios de nossas vidas (como notícias, eventos, lugares aonde ir, amigos, namoro, empregos), mais presumimos que nosso celular é sempre o menu mais útil de onde escolher. Mas será que é mesmo?

“Quem está solteiro e topa um encontro?” vira um menu de rostos no Tinder (em vez de eventos locais com amigos, ou aventuras urbanas próximas). “Quem está livre hoje e quer sair?” vira um menu de pessoas que nos mandaram mensagens de texto por último. “O que está acontecendo no mundo?” vira um menu de feed de notícias.

As empresas que maximizam o “tempo gasto” desenvolvem aplicativos para manter as pessoas consumindo coisas, mesmo quando não estão mais com fome. Como? Fácil. Pegue uma experiência que era limitada e finita, e a transforme em um fluxo sem fim.

O professor de Cornell Brian Wansink demonstrou isso em seu estudo, demonstrando que você pode fazer com que uma pessoa continue tomando uma sopa indefinidamente ao lhe dar uma tigela sem fundo que automaticamente vai se repondo à medida que a pessoa come. Com tigelas sem fundo, as pessoas comem 73% mais calorias do que aquelas com tigelas normais.

As empresas de tecnologia exploram o mesmo princípio. Os feeds de notícias são desenhados propositalmente para se auto preencherem com motivos para manter o usuário descendo a página, e eliminam propositadamente qualquer razão para que você pause, reconsidere ou saia da página.

Esse é também o motivo pelo qual sites de vídeos e mídias sociais como Netflix, YouTube e Facebook começam a tocar automaticamente o próximo vídeo após uma contagem regressiva, em vez de esperar que você faça uma escolha consciente.

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Tragédia dos comuns

As empresas de tecnologia costumam alegar que só estão tornando mais fácil para que os usuários vejam o vídeo que eles querem assistir, quando na verdade estão de fato servindo a seus interesses comerciais. E você não pode culpa-las, porque aumentar o “tempo gasto” é a moeda pela qual elas competem.

As empresas também sabem que a interrupção é boa para os negócios. Tendo escolha, o WhatsApp, o Snapchat e o Facebook Messenger preferiram desenvolver seu próprio sistema de mensagens para interromper os receptores imediatamente em vez de ajudar os usuários a respeitarem a atenção do outro, porque aumenta a probabilidade de eles responderem se for imediato.

É do interesse deles aumentar o sentimento de urgência. Por exemplo, o Facebook automaticamente avisa a pessoa que envia quando você “visualiza” a mensagem, em vez de deixar que você evite revelar se leu ou não. Como consequência, você se sente mais obrigado a responder.

O problema é que maximizar as interrupções porque é bom para os negócios acaba criando uma tragédia dos comuns, arruinando a atenção geral e causando bilhões de interrupções desnecessárias a cada dia.

Você está chateado com o fato de que a tecnologia sequestra seu poder de escolha? Também estou. Eu listei somente algumas técnicas, mas existem milhares delas. Imagine prateleiras de livrarias, seminários, oficinas e cursos que ensinam a aspirantes a empreendedores da tecnologia técnicas como essas. Imagine salas repletas de engenheiros cujo trabalho diário é inventar novas formas de manter você viciado.

Não escrevi isto para deprimir você, ou fazer com que pense que nossa única escolha e desconectar completamente. Não precisa ser tudo ou nada. Queremos um mundo onde ou usamos smartphones e somos sequestrados constantemente, ou não podemos usá-los de jeito nenhum?

É inevitável que bilhões de pessoas tenham celulares no bolso, mas eles podem ser projetados para exercer um papel que não seja sequestrar sua mente.

Temos uma oportunidade de exigir da indústria da tecnologia um futuro diferente. Assim como o movimento dos alimentos orgânicos permite que exijamos da agricultura industrial um futuro diferente, que inclua saúde e sustentabilidade. Chamo isso de “tempo bem gasto”.

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A internet do “tempo bem gasto”

Em vez de maximizar o “tempo bem gasto” (em nome da publicidade), imagine se os aplicativos oferecessem versões alternativas, híbridas/pagas de serviços que maximizassem o “tempo bem gasto” e fossem classificados dessa forma em lojas de aplicativos.

Imagine se, em vez de só lançar celulares novinhos a cada ano, a Apple e o Google projetassem telefones para proteger as mentes de serem sequestradas e dessem meios para que as pessoas fizessem escolhas conscientes.

Imagine se houvesse uma “declaração de direitos” digital estabelecendo padrões de criação para aplicativos e websites. Por exemplo, padrões de criação que obrigassem os aplicativos a darem às pessoas um meio direto de navegar até o que elas querem (como procurar um evento no Facebook), separadamente do que os aplicativos querem (sem serem sugados para dentro do feed de notícias).

Imagine se as empresas tivessem uma responsabilidade de reduzir os efeitos de máquina caça-níqueis ao converter as recompensas variáveis intermitentes em recompensas menos viciantes, mais previsíveis com um design melhor. Por exemplo, elas poderiam fornecer meios para que as pessoas determinem horários previsíveis durante o dia ou semana para quando elas quiserem checar aplicativos do tipo “máquina caça-níqueis”, e se ajustem de acordo quando chegam novas mensagens.

Imagine se as empresas de tecnologia nos ajudassem proativamente a sintonizar nossas relações com amigos e empresas em termos do que definimos como “tempo bem gasto” para nossas vidas, e não em termos do que podemos estar perdendo.

Imagine uma organização independente que representasse os interesses públicos—como um consórcio de diversos especialistas do setor ou uma agência reguladora para a tecnologia—que ajudasse a definir esses padrões e monitorasse quando as empresas de tecnologia os infringissem.

Imagine se os navegadores e os smartphones, através de onde as pessoas fazem essas escolhas, de fato estivessem cuidando das pessoas e as ajudassem a prever as consequências dos cliques. Quando você coloca o “custo real” de um clique na frente das pessoas, você está tratando seus usuários ou público com dignidade e respeito.

Em uma internet de “tempo bem gasto”, as escolhas podem ser classificadas em termos de custo e benefício projetado, de forma que o padrão seja as pessoas terem o poder de fazer escolhas informadas, e não elas terem de fazer um esforço extra.

A liberdade definitiva é uma mente livre, e precisamos de que a tecnologia nos ajude a viver, sentir, pensar e agir livremente.

Precisamos de que nossos smartphones sejam exoesqueletos para nossas mentes e relações interpessoais que coloquem nossos valores, e não nossos impulsos, em primeiro lugar. Vamos proteger nossas mentes com o mesmo rigor que a privacidade e outros direitos digitais.

*Tristan Harris, 31, é confundador do movimento pelo Time Well Spent  (Tempo bem gasto), mágico e especialista em como a tecnologia sequestra nossas vulnerabilidades psicológicas. Até 2016, ele foi filósofo de produtos do Google, onde estudou como a tecnologia afeta a atenção, o bem-estar e o comportamento de um bilhão de pessoas.