O gênero da violência

Tania González Peñas e Cristina Castillo Sánchez

María nos conta esta história em um café: "Meu marido me batia, o denunciei há cinco anos e ele acabou na prisão, cumpriu sua pena e saiu à rua há uma semana. Uso uma pulseira que toca se ele se aproximar a menos de 300 metros, e no outro dia ela tocou. Veio a polícia, deu uma ordem de busca e captura e o detiveram. Agora tenho que explicar para minha filha de 15 anos que seu pai volta para a prisão.

Trabalho como vendedora em uma empresa com um contrato temporário e faz uma semana que não vendo. Hoje me demitiram, alegando que não estou cumprindo meu trabalho. É o quarto trabalho que perco em cinco anos por culpa de ser uma mulher maltratada. Sou a vítima, mas parece que fui eu quem fez algo errado, e quando tento seguir adiante acontece algo que volta a me mergulhar na miséria".

A violência de gênero vai muito além das mulheres mortas. Esse pequeno episódio nos mostrou a crua realidade que sofrem as mulheres vítimas de violência, o pouco apoio que recebem por parte das instituições e a incredulidade que enfrentam em seus trabalhos. Encontram-se sem querer no círculo da violência. Sair desse buraco não é só manter-se vivas, mas ter o direito de começar de novo, um direito que está muito longe de ser uma realidade.

Estão se completando dez anos da entrada em vigor da Lei de Medidas de Proteção Integral contra a Violência de Gênero. Fazendo o balanço, encontramos dados alarmantes: 73% dos casos de violência de gênero não são denunciados; desde 2009 o número de denúncias declinou, sendo a tendência atual. Além disso, nos últimos sete anos aumentou 158% a suspensão das causas; as denúncias são arquivadas por falta de provas.

Esses dados nos indicam que algo não está funcionando. Parece que desde a entrada em vigor da lei estivemos dormindo, pensando que o problema da violência contra as mulheres seria resolvido. O governo se esquiva de maneira insultante, as campanhas institucionais de sensibilização contra a violência de gênero são dirigidas à mulher maltratada, como se a única responsável por sair dessa situação fosse ela.

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Um cartaz institucional de alguns anos atrás, no qual aparecia uma mulher com um olho roxo, dizia: "Não passe pelos sinais de maus-tratos, escolha viver". Quanta raiva e quanta impotência. O governo deveria saber que as mulheres mortas nas mãos de seus parceiros ou ex-parceiros e as mulheres que sofrem violência em seus lares não escolhem essa situação. E do que menos necessitam é que as instituições do Estado, que deveriam garantir seu direito a viver uma vida livre de violência, as acusam e exigem que denunciem, porque "se não denunciarem, não podemos fazer nada por elas", segundo as palavras da ministra da Saúde, Ana Mato.

Trata-se de uma lei que não penetra nas causas estruturais da violência de gênero e que, além disso, não está sendo cumprida. As leis são como papel molhado se não as dotarem de orçamento para que sejam efetivas. Esta lei, que pode ser melhorada em muitos aspectos, propunha avanços com relação à violência no âmbito dos casais, por exemplo, ao propor alternativas para garantir uma assistência integral às mulheres. Tudo ficou em promessas. E isto fez as mulheres mergulharem em uma espiral de violência da qual é cada vez mais difícil sair.

Entretanto, a sociedade, influenciada por um senso comum excessivamente machista, promovido pelas elites, criticava a lei por dar privilégios às mulheres contra os homens. Nada mais distante da realidade. Para não falar da errônea crença sobre as denúncias falsas, que na realidade representam 0,0038% dos casos, segundo dados de 2012 da Promotoria Geral do Estado. Esta tessitura nos mostra outro indicador machista assentado na mentalidade social: as mulheres mentem, porque têm intenções obscuras.

Para que uma mulher demonstre os maus-tratos nos juizados, pedem-lhe provas de todo tipo, sem entender o desgaste emocional e a falta de autoestima na qual estão mergulhadas, além de como é difícil gravar uma briga diante do medo de que a irritação aumente. É como se quando alguém denuncia que lhe roubaram o carro a polícia, em vez de abrir uma investigação, lhe perguntasse: mas tem certeza de que o roubaram? Não será que o pegaram emprestado e você não percebeu? Incredulidade de cara é mais violência.

Também se sabe pouco sobre o significado da violência de gênero. A Lei Integral a define em seu primeiro ponto: "A presente lei tem por objeto atuar contra a violência que, como manifestação da discriminação, da situação de desigualdade e das relações de poder dos homens sobre as mulheres, se exerce sobre estas por parte de quem seja ou tenha sido seus cônjuges ou dos que estejam ou tenham estado ligados a elas por relações semelhantes de afetividade, mesmo sem convivência". Esta definição deixa de fora uma grande variedade de casos de violência de gênero, como os de prostitutas mortas nas mãos de seus clientes ou os de casais homossexuais. Para não falar dos "danos colaterais" da violência: as filhas e filhos, familiares, novos parceiros.

A violência de gênero vai muito além das mortes e não será solucionada enquanto a sociedade não se envolver ativamente e contar com leis que vão à raiz do problema, que o Estado interfira e leve a sério a educação em valores de igualdade nas escolas. No [partido] Podemos, pensamos que é preciso dar um passo além no tratamento da violência de gênero, e uma das iniciativas que está sendo preparada defende um encontro aberto no qual se convidarão profissionais desse campo, especialistas, agentes da sociedade civil e movimentos sociais, no qual se debaterá e do qual serão tiradas propostas concretas em torno dessa temática. Porque acreditamos que são as e os profissionais que trabalham com vítimas e outros agentes especializados da sociedade civil quem sabe melhor como incidir nesta realidade.

Resta muito a fazer, mas devemos começar por escutar e apoiar as pessoas que temos por perto, intervir nas situações que percebamos, porque o pessoal é político, e dotar-nos de recursos para poder sair do ciclo de violência, ou ajudar outras a sair. Porque nós mulheres vemos muito claro que escolhemos viver, levamos toda a nossa história sobrevivendo, mas para isso precisamos de direitos que devem ser garantidos pelas instituições e respeitados pela sociedade. Deixemos de nos esquivar e assumamos o problema que temos pela frente. Por uma vida livre de violências.

*Tania González Peñas é eurodeputada pelo partido Podemos. Cristina Castillo Sánchez pertence ao Círculo Podemos Feminismos.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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