O caçador de impostores dos campos nazistas

Luis Gómez

Em Madri (Espanha)

  • Marta Calvo/Efe

    5.mai.2015 - O historiador espanhol Benito Bermejo na entrada do campo de concentração de Mauthausen, na Áustria

    5.mai.2015 - O historiador espanhol Benito Bermejo na entrada do campo de concentração de Mauthausen, na Áustria

Benito Bermejo é famoso por descobrir impostores nos campos nazistas

Benito Bermejo conserva o hábito do clássico detetive que fareja uma pista, pesquisa nos arquivos, interroga as testemunhas e, se acaso estas tiverem morrido, pergunta a seus parentes sobre alguma recordação. Durante 20 anos investigou o que aconteceu com os 9.200 espanhóis deportados para os campos de extermínio nazistas. Sobretudo em Mauthausen (Áustria), cuja libertação completam hoje 70 anos. Desmascarou impostores, verificou milhares de identidades e descobriu detalhes ocultos durante décadas.

Bermejo não é um historiador comum, algo que se percebe à primeira vista, e não só porque se desloca de bicicleta durante todas as estações do ano (percorre 4 mil quilômetros anuais, segundo seus cálculos). Não é professor, não tem um cargo estável em instituição pública ou privada. Não vive de salário. É autônomo e, sobretudo, independente: não deve prestar contas a ninguém de suas investigações.

Viveu de bolsas de pesquisa por algum tempo, deu aulas de espanhol na França durante um ano e se curtiu como investigador para a realização de documentários. Esse é seu currículo. Pai de duas filhas, é casado com uma funcionária que trabalhou sete anos em um arquivo. Sintetiza em uma frase o que foi essa experiência para sua mulher: "Em todo esse tempo, seu chefe só se dirigiu a ela uma vez".

Homem especialmente modesto, Bermejo não polemiza, nem busca o abraço da imprensa, mas quem quiser corroborar algum detalhe do que ocorreu em Mauthausen deve passar por Bermejo. Não há caso, detalhe, fotografia, não há sobrevivente ou caído nos campos que não tenham passado por seu escrutínio. Aí está sua obra "Memorial" (em colaboração com a historiadora Sandra Checa), um volume seco e imenso (580 páginas), tremendo e tão austero que vive de três adjetivos: falecido (F), evadido (E) e libertado (L), onde estão registrados nome, sobrenome, procedência e destino dos 7.200 espanhóis deportados para Mauthausen.

Formado na Universidade de Salamanca, onde preparou em 1989 uma tese sobre o aparelho de propaganda do franquismo inicial, Bermejo desfrutou de uma bolsa francesa para dar aulas de espanhol na França. E foi ali que fez contato com o exílio espanhol e com o depoimento dos deportados nos campos nazistas. Conheceu as primeiras testemunhas e começou a perceber que não havia um relato rigoroso do que sucedeu com os espanhóis: alguns depoimentos interessados, outros contraditórios, obras sem cotejar e finalmente também algumas histórias falsas.

Depois de anos de obscura investigação, em 2005 Bermejo adquiriu repentino destaque ao desmascarar Enric Marco, o presidente da associação de deportados de Mauthausen, um homem que se fez passar por deportado. Meses antes havia feito o mesmo com Antonio Pastor, outro que simulou ser um músico preso no campo. Ambos foram personagens carismáticos, que chegaram a ser condecorados por instituições oficiais, mas afinal eram impostores. Nenhum foi deportado.

"Aceitamos que a testemunha tem a verdade, e isso supõe uma rendição incondicional", disse o escritor Javier Cercas, autor de um livro sobre Marco ("El Impostor"). "Por outro lado, houve a conversão das vítimas em heróis. Isso é uma perversão. Os heróis são os que dizem não, como o historiador Benito Bermejo, que foi na contracorrente do que diz a maioria."

E na contracorrente Bermejo também indagou sobre o fato mais fascinante ocorrido em Mauthausen: foi protagonizado por Francisco Boix, um jovem fotógrafo (também era um personagem muito ousado), que trabalhou no laboratório fotográfico do campo. Ali se guardava todo tipo de imagem, das visitas ilustres a Mauthausen, como a de Himmler, dos assassinatos e da vida cotidiana no campo.

Depois da derrota de Stalingrado, receberam ordem de destruir os arquivos, e dessa tarefa se encarregou Boix junto com outros deportados, exceto que Boix tentou subtrair uma parte desses documentos, até 20 mil fotos segundo seu testemunho. Boix chegou a ser a única testemunha espanhola no julgamento de Nuremberg. Mas Boix, que viveu alguns anos na França e trabalhou como repórter fotográfico para o jornal "L'Humanité", morreu jovem, aos 30 anos, em 1951.

Durante décadas, essa história foi contada por Antonio García, outro espanhol que trabalhou no departamento de fotografia. E García não simpatizava com Boix, a quem chegou a considerar pouco menos que um colaborador dos nazistas. Sua versão enriqueceu um relato quase cinematográfico de como um grupo de espanhóis arriscou a vida para salvar esses documentos.

E esse depoimento único (Boix estava morto) transcendeu de um livro para outro, até que o historiador Bermejo descobriu que naquele laboratório não houve dois espanhóis, mas três. O terceiro era José Cereceda, que parecia ter desaparecido do mapa. Ninguém havia reparado em Cereceda. Bermejo o encontrou na França, em sua casa perto dos Pirineus, procurando na lista telefônica. E Cereceda contou outra verdade: "Aquilo foi obra de Boix. García e eu não fazíamos outra coisa além de ver, ouvir e calar".

Bermejo chegaria mais longe. Pesquisando em arquivos e novamente na lista telefônica, localizaria perto de Berlim um dos chefes do laboratório, o sargento das SS Hermann Schinlauer. Viajou até sua casa e o entrevistou. Lembrava-se dos três espanhóis, a quem chamava por seus nomes de batismo em alemão, Franz (Boix), Josef (Cereceda) e Antony (García). Aquela conversa terminou com um surpreendente pedido do ex-nazista: "Se você visitar Josef, dê lembranças de minha parte".

Boix será o protagonista de sua tese de doutorado. O que não quer dizer que Bermejo esteja disposto a entrar na comodidade do historiador com lugar fixo.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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