Legislação avançada transforma Espanha em destino de gays perseguidos

José Marcos

Em Madri (Espanha)

  • Pierre-Phillipe Marcou/AFP

Fady, um sírio de 34 anos que tem estresse pós-traumático, demorou dois meses para se recuperar da surra que dois bandidos contratados por sua família lhe deram por ser homossexual. "Ainda estava internado no hospital quando recebi uma ligação de meu pai. Ele disse que o que havia me acontecido era um aviso. 'Ou você muda ou na próxima vez o mato'", conta Fady, que fugiu de seu país há quase quatro anos e refez sua vida em Madri. O governo acaba de lhe conceder asilo político.

"A Espanha, e dentro dela Madri, se transformou no centro receptor de pessoas LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transexuais] de todas as partes do mundo, que, devido à situação em que vivem em seus países, nos quais existe perseguição legal e social, sobretudo na África e no Oriente Médio, são obrigadas a se deslocar e às vezes a fugir", explica Manuel Ródenas, diretor do Programa de Informação e Atenção a Homossexuais e Transexuais da Comunidade de Madri. Em 13 anos, esse centro atendeu a 10.582 pessoas, 17% delas estrangeiras. Muitas solicitaram asilo.

A legalização, há dez anos, do casamento entre pessoas do mesmo sexo transformou, sobretudo a capital espanhola e outras grandes cidades como Barcelona, em uma espécie de paraíso terreno dos homossexuais oprimidos do outro lado do Mediterrâneo, mas também da América Latina. O bairro de Chueca é a utopia possível para os perseguidos naquelas sociedades, onde ser gay, lésbica ou transexual é uma doença, um pecado ou uma abominação do diabo.

Ejid Yetene, um congolês de 26 anos, continua à espera de ser reconhecido como refugiado político, e já está há sete anos em Madri. "Meu pai me torturava: primeiro me batia com o cinturão, enquanto dizia que eu ia contra a lei de Deus, que era um seguidor de Satanás porque gostava de outros rapazes... Tive sorte. Muitos que conheci não podem mais contar, como Denzu e Allain, dois amigos que desapareceram, simplesmente! Quem vai investigar um envenenamento ou um crime de um gay na África?", explica enquanto toma um suco de laranja na Praça de Chueca, epicentro do movimento LGBT na Espanha. "Pirei na primeira vez que vi o Orgulho! Na África? Impensável, esqueça!", ri.

Ao longo da conversa, Yetene intercala a paixão que todos os africanos têm pelo futebol e, também em seu caso, pela música, do rap ao hip-hop. É assim, descontraído, que se atreve a enfrentar os pesadelos que ainda o atormentam. "O pior era quando meu pai me besuntava com pimenta vermelha amassada pelo corpo todo: no pênis, no ânus... Dizia que era um remédio tradicional para me curar, enquanto eu me contorcia com o ardor. Doía! Ele me fez isso oito ou dez vezes, sem que os policiais e militares que o viam dissessem nada", relata Yetene.

Apesar de se sentir "livre" e à vontade em Madri, ele pede que o fotografem de costas. Não quer ser reconhecido. "A comunidade africana na Espanha continua sendo muito conservadora. A mensagem das igrejas evangélicas não tem nada a ver com a atitude do novo papa. Para não falar no wahabismo, a visão mais rigorosa do islã. Um gay é a encarnação do mal. O pecado feito carne", adverte Ródenas. Com um adendo: se os gays têm dificuldade para sair do armário, ser mulher e lésbica na África ou no Oriente Médio é heresia.

Osmond Ayo, um nigeriano de 38 anos, foi ativista em seu país, que aplica a sharia (lei islâmica interpretada de forma extrema) no norte, onde ser gay se paga com a morte. Por usar uma pulseira arco-íris, o símbolo universal do LGBT, Ayo passou sete meses na prisão. Uma multidão quase o linchou quando a mulher que sua família escolheu para sua esposa o pegou na cama com seu namorado. Ayo pagou US$ 500 em 2008 a um amigo da infância, "de uma máfia", para que o embarcasse como clandestino em um cargueiro. "Ele me enganou. Pensei que fosse para o Canadá e apareci em Barcelona, sem falar uma palavra de espanhol", conta, enquanto narra como, por capricho do destino, acabou se instalando em Leganés [região metropolitana de Madri].

Ayo teve um papel destacado na festa do Orgulho de 2014 em Madri. "Manifestei-me pelas pessoas que não podem se manifestar em seus países. Por exemplo, na Nigéria, onde na zona cristã você pode pegar 14 anos por gostar de alguém do mesmo sexo, e dez se fizer parte de uma organização ou se não delatar alguém por sua condição sexual... No meu país quase me mataram e na Espanha me aceitaram. Tenho orgulho de ser o que sou", afirma.

"Madri é uma cidade aberta, nada a ver com minha terra", diz Karim, marroquino de Tetuã de 40 anos. Ser homossexual também é um crime em seu país. "Não sou afeminado, e consegui manter em segredo de minha família. É melhor, eles não entenderiam", acrescenta. Karim culpa a religião e a cultura.

A felicidade de Ayo não é total. Ele continua aguardando que a Espanha lhe dê asilo. O sírio Fady, cuja vida mudou quando se recusou a casar-se com a mulher que sua família havia escolhido - "tentei gostar de mulheres, mas não consegui" -, teve mais sorte. Mas continua precisando de pílulas para dormir "cinco horas por noite", quando consegue. Se não, relembra as vezes que seus pais lhe davam de comer separado para que não se aproximasse de seus irmãos. "Comia sozinho para não os contaminar", lamenta.

Mapa mundial da homofobia

Pena de morte:Arábia Saudita, Irã, Mauritânia, Sudão, Iêmen, estados do norte da Nigéria, de maioria muçulmana, que aplicam a sharia, e sul da Somália.

De 14 anos de prisão a perpétua:Antígua e Barbuda, Bangladesh, Barbados, Guiana, Malásia, Paquistão, Serra Leoa, Sri Lanka, Tanzânia, Trinidad e Tobago, Uganda e Zâmbia.

Até 14 anos de prisão:Angola, Argélia, Belize, Botsuana, Butão, Camarões, Emirados Árabes Unidos, Eritreia, Etiópia, Gâmbia, Gaza, Gana, Guiné-Conakry, Índia, Jamaica, Quênia, Kuwait, Líbano, Libéria, Malavi, Marrocos, Moçambique, Mianmar, Nigéria, Omã, Papua-Nova Guiné, Catar, República Centro-Africana, Senegal, Síria, Somália, Sudão do Sul, Togo, Tunísia, Turcomenistão, Uzbequistão e Zimbábue. Além desses, uma dúzia de países-ilhas do Caribe e do Pacífico.

Limbo jurídico:as legislações de Afeganistão, Lesoto, Namíbia e Suazilândia não especificam o tempo de prisão. Egito, Líbia e Rússia não têm legislação "especificamente homofóbica", segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros ("LLGA" na sigla em inglês). No caso da Rússia, restringe-se a liberdade de expressão e de associação.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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