Mães de soldados russos desmentem a versão do Kremlin sobre ação na Ucrânia

Hélène Prudhon

Durante as guerras na Tchetchênia, elas denunciaram as mentiras do Exército russo e do Kremlin. Hoje, as associações de mães de soldados estão trazendo à tona um aspecto da mal disfarçada guerra conduzida por Moscou contra Kiev. Oficialmente, nenhum soldado das forças regulares russas está participando da repentina contraofensiva vitoriosa dos separatistas nas regiões do sudeste da Ucrânia.

"Na verdade, podemos estimar que desde o início até 15 mil soldados foram enviados para lá", afirma Valentina Melnikova, presidente do Comitê de Mães de Soldados Russos. Foi uma avaliação feita a partir de suas redes de informação dentro dos regimentos. "Por enquanto, ainda não recebemos muitos chamados de mães ou de mulheres. Mas sabemos quantas tropas há em cada base militar, e quantos homens estão faltando", contou Melnikova ao "Le Monde", para justificar sua estimativa. Segundo ela, mais de 7.000 soldados russos hoje estão combatendo na Ucrânia, bem mais que a estimativa de 1.000 homens dada pela Otan.

Para além desses números, são, sobretudo, histórias individuais de famílias de soldados que têm contribuído para desmentir os discursos do Kremlin. Na Tchetchênia e nas cidades do noroeste do país, pais e familiares contaram ter enterrado um filho soldado que partiu discretamente para a Ucrânia e voltou em um caixão, em transferências organizadas em grande sigilo pelo Ministério da Defesa.

Na ida, os homens foram despachados muitas vezes sem saber qual seria seu destino final, através de uma passagem de fronteira onde tiveram que trocar de uniforme e esconder o número de registro dos tanques. Na volta, os documentos que acompanham seus corpos especificam o ferimento por bala como causa morte, mas não mencionam o lugar do óbito. Essa falta de informação, sobretudo sobre a volta de caminhões militares especializados em transporte de soldados mortos, tem preocupado as mães dos soldados, que não recebem notícias e temem pelo pior.

Crise na Ucrânia
Crise na Ucrânia

Ministério da Defesa russo fala que se trata de um "delírio"

O Ministério da Defesa desdenhou essas informações, que não são mencionadas nos noticiários da noite nos canais públicos de TV russos. Ele chegou a chamar de "delírio" as revelações de Ella Poliakova, diretora de uma associação de mães de soldados em São Petersburgo, dissidente do comitê de Valentina Melnikova. Ela havia mencionado que uma centena de soldados feridos teria chegado a essa cidade, tentando imaginar quais seriam as razões dessa movimentação.

Como membro do conselho consultivo dos direitos humanos criado pelo Kremlin, Poliakova causou um mal-estar ao usar a palavra "invasão" publicamente: "Quando multidões de pessoas, sob ordem de comandantes, a bordo de blindados, de veículos de transporte, e com armas pesadas, se encontram no território de outro país, atravessam a fronteira, para mim se trata de uma invasão."

Resultado: a ONG de Ella Poliakova acaba de ser classificada como "agente estrangeiro" nos termos da lei que, aprovada em 2012, obriga qualquer associação que conduza atividades com fins políticos e receba fundos não russos a se inscreverem e se apresentarem sob essa denominação. Outras associações contestadoras demais em plena crise ucraniana poderão ter o mesmo destino. "Mas as autoridades não ousarão encostar em nós!", garante Valentina Melnikova. Seu Comitê das Mães de Soldados, que não recebe fundos estrangeiros, é muito respeitado dentro da sociedade russa. Durante as guerras na Tchetchênia, ele já havia sido uma das poucas vozes independentes a denunciarem através de fatos os discursos do Kremlin. "Desde então, eles têm medo de nós", avisa Valentina Melnikova.

A cronologia da crise na Ucrânia
  • Divulgação/Instagram/esquire.com
    Como a crise começou?
    Em novembro de 2013, o então presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich, se recusou a assinar um acordo com a UE e fez pacto com a Rússia por um pacote de ajuda de US$ 15 bilhões de Moscou e pela redução do preço do gás russo. Milhares de pessoas foram às ruas para protestar e derrubaram o presidente. Moradores da fronteira alinhados com Putin então se rebelaram com o que chamam de golpe de Estado
  • Mykola Lazarenko/Serviço de Imprensa de Poroshenko/AFP
    Meses de crise e novo pleito
    Eleições extraordinárias na Ucrânia foram convocadas após a queda de Viktor Yanukovich, em fevereiro, e em meio ao conflito entre forças ucranianas e separatistas pró-Rússia, que já matou mais de 350 pessoas desde abril. Em maio, o milionário Petro Poroshenko, o "rei do chocolate", venceu em 1º turno. Ele apoia as ações militares contra o movimento separatista pró-Rússia e aderiu à UE
  • Alexander Khudoteply/AFP
    Movimento separatista
    Desde abril, separatistas ocupam prédios públicos em Lugansk, Donetsk e Slaviansk, no leste do país, fronteira com a Rússia, onde vivem cerca de 7 milhões de pessoas, quase 15% da população da Ucrânia, que falam russo e se alinham ao governo Putin. As áreas se autoproclamaram "repúblicas populares independentes" em maio.
  • Sergei Chirikob/EFA/EPA
    Troca de acusações
    O choque da Rússia com o Ocidente ressuscitou linguagem e práticas da Guerra Fria. A Ucrânia acusa a Rússia de patrocinar e dar armas aos rebeldes. Já Moscou diz que Kiev faz "operação punitiva" contra os separatistas, com atos criminosos. As relações entre os países estão abaladas desde que a Rússia reconheceu o levante --apoiado pelo Ocidente-- contra Yanukovich e, em seguida, anexou a Crimeia.
  • Jewel Samad/AFP
    Quem fica de cada lado
    A posição de países sobre a crise varia de acordo com a relação comercial que cada um tem com a Rússia. Os EUA impõem sanções e ameaçam. A UE depende do gás russo, mas ofereceu dinheiro à Ucrânia. A proximidade faz a Alemanha parecer comedida, enquanto a França é mais agressiva. O Reino Unido tenta falar alto, mas não tomaria medidas concretas contra a Rússia. A China permanece em silêncio.
  • Dmitry Lovetsky/AP
    Avião abatido
    O Boeing-777 de Malaysia Airlines caiu na região leste de Donetsk, palco dos combates separatistas. Após a queda, autoridades dos governos russo e ucraniano, além do representante da República Autoproclamada de Donetsk, negaram ter abatido o avião. Mas, especialistas dizem que mísseis terra-ar, guiados por calor e fornecidos pela Rússia aos rebeldes, seriam capazes de abater um avião comercial

Tradutor: UOL

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