Depoimento: "Os refugiados de hoje são como meu pai fugindo do nazismo"

Guy Sorman

  • Alexander Zemlianichenko/AP

    13.ago.2015 - Imigrantes em um bote chegam a ilha grega após cruzar a Turquia

    13.ago.2015 - Imigrantes em um bote chegam a ilha grega após cruzar a Turquia

Às vezes é necessário fazer comparações entre coisas que não são comparáveis, ainda que seja para despertar consciências entorpecidas. Entre 1933 e 1940, milhões de refugiados da Alemanha, da Polônia e de países bálticos que tentavam fugir do nazismo se depararam com fronteiras fechadas.

Eles se chamavam Nathan, Samuel ou Rachel. Nathan, por exemplo, teve visão e fugiu da Alemanha já no verão de 1933, cinco meses depois que Adolf Hitler assumiu o poder. Ele quis ir para os Estados Unidos, mas teve o visto recusado. Tentou a Espanha e também foi barrado. Meio que por acaso, ele foi parar na França, que não o acolheu mas também não o expulsou. Foi só a partir de 1938 que o governo Daladier, oriundo da câmara da Frente Popular, entregou aos alemães os judeus que tentavam entrar na França.

Nathan sobreviveu ao regime de Vichy, engrossando as fileiras esparsas da Resistência nos Pirineus, ao lado de republicanos espanhóis sobreviventes da guerra civil. Nathan teve dez irmãos e irmãs, todos assassinados nos campos de concentração nazistas, e sua mãe morreu de fome no gueto de Varsóvia. Esses 6 milhões de vítimas do Holocausto não provocaram – exceto entre o povo judeu – uma grande comoção, até o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961.

O extermínio dos judeus antes havia sido imerso no inconsciente coletivo, como uma espécie de acidente colateral da guerra mundial. Franklin Roosevelt e Winston Churchill, que estavam a par da situação deles já em 1933, sempre se negaram a permitir que aquilo que ainda não era chamado de Holocausto os desviasse de sua estratégia global: a derrota dos nazistas e a aliança com o regime de Josef Stalin.

Os refugiados de hoje

Falemos sobre aquilo que não guarda nenhuma relação com o que o antecedeu: a fuga de milhões de refugiados da Síria, do Iraque e da Eritreia. Não tem relação porque Latifa, Ali e Ahmed não estão sendo massacrados com a mesma eficácia industrial com a qual Samuel, Nathan e Rachel foram? Sem relação por quê? Deve-se acreditar que esses correm o risco de se afogarem no Mediterrâneo, de morrerem sufocados dentro de um caminhão, de morrerem de sede em uma estrada grega, porque Ali, Latifa e Ahmed são turistas ou estão simplesmente em busca de um emprego na Inglaterra?

Não, eles também estão fugindo do extermínio, correndo o risco de morrerem afogados porque sabem que a alternativa é serem envenenados com gás, metralhados, bombardeados, ou morrerem de fome. Não é o Holocausto, ou pelo menos ainda não. Como será chamada, daqui a alguns anos, essa maré humana que está arrebentando na Europa? Como se justificará em nossos livros de História e em nossos lamentos oficiais esse êxodo que os europeus, tanto os povos quanto seus governos, estão tentando reduzir a uma "crise" técnica que exigiria somente alguns ajustes legais na definição do status de refugiado?

Se Nathan ainda estivesse vivo, não duvido por um instante que ele reconheceria em Ali ou em Ahmed seu próprio rosto, seu próprio destino, sua própria angústia. Nathan reconheceria todos os argumentos que, na sua época, foram apresentados contra ele nessas mesmas fronteiras: a situação econômica na Europa Ocidental não permitia integrá-lo, a opinião pública não era favorável aos estrangeiros, já havia muitos judeus e outros metecos para que um governo se arriscasse a acolher mais deles. Nathan não estaria exagerando a ameaça que pairava sobre ele e seu povo? Esse Hitler acabaria vindo à razão...

A Europa, uma massa mestiça

Será que o ditador da Eritreia, Issayas Afewerki, Bashar al-Assad, os bandos islamitas que estão devastando todo o Oriente Médio virão à razão? Ninguém, no Ocidente, está agindo para que isso aconteça. A única iniciativa já considerada, por François Hollande, para bombardear o quartel-general de Bashar al-Assad, foi bloqueada – em 2013 – por Barack Obama, esse partidário dos acordos de Munique. O único chefe de governo que atualmente está de fato tendo uma ideia real do drama e propondo soluções humanitárias à altura dessa tragédia é Angela Merkel. Como alemã, ela sabe e não se esconde atrás de argúcias jurídicas ou econômicas. Ela sabe que Ahmed é o Nathan 75 anos depois.

Já sabemos quais são as objeções aparentemente racionais: essa gente que não é europeia não conseguiria se adaptar e a economia não poderia absorvê-la. Mas isso que parece ser verdadeiro é falso. Esses "refugiados", aceitos na Europa, estariam contribuindo com sua educação e sua força de trabalho: a maior parte deles é de jovens e empreendedores, como mostra o fato de terem deixado seus países. A migração é uma seleção trágica que privilegia os fortes sobre os fracos. Os Estados Unidos sempre se desenvolveram mais rápido que a Europa graças ao dinamismo trazido pelos imigrantes, enquanto a Europa vai declinando à medida em que envelhece.

A integração cultural seria impensável, não é? A objeção parece sutil, mas estranhamente pressupõe que a Europa seja uma joia sem manchas, pura do ponto de vista cultural, étnico e religioso. A Europa, na verdade, é uma massa mestiça, um caldeirão de culturas que juntas compõem a civilização europeia.

Lembrei que um ex-premiê, Michel Rocard, quando teve de enfrentar uma onda migratória menor, vinda da África, achou que solucionaria o problema ao declarar que "a Europa não podia acolher toda a miséria do mundo". A resposta para isso é que até o momento, a Jordânia, o Líbano e a Turquia acolheram 3 milhões de "refugiados" e a Europa... 300 mil. É por isso que sinto vergonha pela Europa, por seu egoísmo, por sua miopia histórica, por sua arrogância pequeno-burguesa. É por isso que hoje Ahmed é meu irmão e Latifa, minha irmã.

Porque Nathan, vejam só, era meu pai.

(Guy Sorman é professor, colunista e autor de "O Ano do Galo – Verdades Sobre a China" e "A Economia Não Mente")

Tradução: UOL 

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