Paris começa a arquivar mensagens das ruas para vítimas dos atentados

  • Charles Platiau/Reuters

    Memorial perto do Bataclan reúne objetos e flores para as vítimas dos atentados em Paris

    Memorial perto do Bataclan reúne objetos e flores para as vítimas dos atentados em Paris

Mensagens colocadas nos locais dos ataques de novembro estão sendo coletadas, ao contrário das de janeiro

Uma citação de Voltaire cobre um exemplar do "Pequeno Príncipe". Nas prateleiras dos Arquivos de Paris, um pouco da memória dos atentados foi posta para secar. Uma dezena de caixas ainda esperam para ser abertas, reunidas sob a mesma etiqueta: "Sq. Bataclan. 10/12/2015. Bd. R. Lenoir". Do lado de dentro, centenas de mensagens em homenagem às vítimas, recolhidas na quinta-feira (10) em frente ao Bataclan.

Naquela manhã, garis de Paris foram limpar o bulevar em frente à casa de shows, repleto de flores murchas. Entre eles, usando o mesmo colete amarelo fosforescente, Audrey Ceselli recolhe um cartaz escrito "Je suis Paris" ("Eu sou Paris"). Ela é arquivista e não joga fora nem escolhe nada: ela "salva" tudo aquilo que é colocado em risco pelas intempéries.

O macaco de pelúcia ficará mais um pouco; as cartas e desenhos serão entregues a seu colega, "lá no furgão". Vincent Tuchais examina e classifica cada peça de acordo com o grau de umidade. Emilie Legrand, a restauradora da equipe, suspira diante das caixas, como se fossem pacientes a serem recuperados, já que na verdade "está tudo muito molhado".

Uma amostra para a História

Ela prefere não ler nada, para não se deixar levar. Já Vincent não consegue evitar, "sobretudo as mensagens de crianças". Mais acostumado a coletar documentos administrativos do século passado, ele tem a impressão de que ali está sendo "criada uma matéria que contará a História daqui a cem anos". Pois o objetivo é esse: preservar uma amostra da História de Paris, para onde já entrou essa noite de novembro de 2015 que levou a vida de 130 pessoas.

De qualquer forma, "a ideia não é acabar com os locais de homenagem", avisa Guillaume Nahon, diretor dos Arquivos de Paris, mas sim "preservar", "manter" e "conservar". Ele sabe que é difícil para algumas pessoas ver as mensagens sendo levadas embora. Então ele explica o quanto for preciso sua operação de resgate aos moradores do bairro e às câmeras de televisão. Ele começou o trabalho de conservação logo após os atentados, e em total discrição, tirou as primeiras fotos dos memoriais, quando ainda não se falava em tocá-los.

Sévérine Coupé, uma parisiense muito apegada ao bairro, sentiu a necessidade de passar em frente ao Bataclan "antes que levassem tudo". Ela entendeu que a varrição era necessária, mas gostaria de saber "o que fariam" com as homenagens.

Em Porte de Lilas tem início uma corrida já a partir da primeira caixa descarregada, contra o relógio, a umidade e o mofo. Mathilde Pintault já trabalhara com arquivos complicados, como o da prisão de Santé, um trabalho que durou dois anos. É teoricamente mais simples dessa vez, segundo ela. Mas do ponto de vista emocional é mais pesado. Ainda que ela tenha acionado seus "automatismos" profissionais para se proteger, a quantidade a impressiona.

É preciso dizer que as mensagens já lotaram a sala de triagem, que virou uma sala de secagem. "Quantas caixas você ainda precisa esvaziar?", pergunta Gérard Chaslin, o encarregado do armazenamento. A restauradora Emilie Legrand se pega rindo, de nervoso. Mal começaram a primeira caixa, e já não há mais espaço no mata-borrão colocado sobre as mesas. Já as prateleiras vão se enchendo tão rápido que Eric Tandou, o segundo encarregado de armazenamento, começa a acrescentar pranchas.

"Lugar, a gente encontra"

Uma pessoa propõe que anexem uma sala de reunião. Outra, que se congele parte dos documentos, um método utilizado em grandes inundações. Mas os arquivos da capital não são equipados para uma operação dessas. Que seja, "lugar a gente encontra", afirma Nahon.

O trabalho está só começando para suas equipes, que depois da secagem terão de remover a poeira, classificar e digitalizar. E se trabalharem com pressa, a precipitação pode acabar custando caro, pois qualquer choque térmico pode propiciar o surgimento de fungos.

Uma vez salvas as mensagens, elas constituirão um corpus inédito na França, pois nada havia sido arquivado após os atentados de janeiro. Para preencher a lacuna, a biblioteca de Harvard começou uma coleta este verão [no hemisfério norte] e, em seguida, os Estados Unidos.

A Prefeitura de Paris confessa que foi pega de surpresa. Algumas fotos foram tiradas, mas nada de muito organizado. "Nós nos arrependemos", admite Bruno Julliard, primeiro adjunto. "Não sabíamos o que fazer da primeira vez".

Essa segunda onda de atentados infelizmente permitiu que eles compensassem, conservando a memória das homenagens colocadas em cerca de 30 pontos diferentes, que incluem os locais dos ataques de novembro e também a Place de la République e os muros de Paris, onde os artistas também deixaram suas marcas, compondo uma coleção de interesse social e científico.

Alguns sociólogos já começaram a se interessar pelo fundo que começa a ser constituído. É o caso de Gérôme Truc, pesquisador associado do Centro de Estudos de Movimentos Sociais do EHESS. Em Paris, ele descobriu aquilo que já havia notado após os atentados de Nova York, Madri e Londres: o amor e a vida são mencionados com mais frequência que "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", e há muitas e muitas mensagens escritas na primeira pessoa do singular.

É impossível prever quanto tempo levará até que tudo seja inventariado. Ninguém imaginava que haveria tantas mensagens escondidas por baixo de suas flores murchas. E ninguém sabe quantas ainda serão colocadas nesses memoriais efêmeros.

Em Madri, após os atentados de 2004, o trabalho de arquivamento durou seis anos.

Tradutor: UOL

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