Como um mal-estar levou uma mulher a participar de atentado na França

Soren Seelow

  • Christian Hartmann/ Reuters

    Polícia francesa investiga apartamento em prédio residencial em Boussy-Saint-Antoine

    Polícia francesa investiga apartamento em prédio residencial em Boussy-Saint-Antoine

"Eu o acertei perto do ombro, mas não estava mirando nenhuma área em especial. Não sou uma sádica, na minha cabeça. Para mim isso já é um negócio louco. (…) Acho que a faca entrou em seu ombro. Foi tudo muito rápido, eu me vi fazendo isso e me sentí estranha. Ele não estava esperando e recuou, sacou sua arma e eu fui embora correndo. Passei em frente às meninas correndo, dizendo que era um policial."

Na sede da Direção Geral da Segurança Interna (DGSI), no dia 9 de setembro, Sarah Hervouët, 23, reconta com detalhes os acontecimentos da véspera: ela saiu de um prédio em Boussy-Saint-Antoine (Essonne) acompanhada de duas cúmplices, Inès Madani, 19, e Amel Sakaou, 39, e atacou um policial escondido em um carro sem identificação oficial. Informada no mesmo dia sobre um plano de atentado iminente, a DGSI havia instalado algumas horas antes um dispositivo de vigilância em frente ao prédio.

Sarah Hervouët afirma que ela não sabia que sua vítima era um policial à paisana. Ela diz que o atacou meio que por acaso, sem pensar, por indicação de suas duas comparsas. As três mulheres, cada uma armada de uma faca, logo foram dominadas. A mais jovem, Inès, foi ferida nas pernas por um policial que, ao se sentir ameaçado, usou sua arma de serviço.

Foi só depois de interrogá-la que os investigadores descobriram que esta era a mulher mais procurada da França: Inès Madani havia abandonado no dia 3 de setembro um carro repleto de botijões de gás, que ela pretendia explodir perto da catedral de Notre Dame em Paris, e estava desaparecida havia quatro dias. Quando localizaram o apartamento de Boussy-Saint-Antoine suspeito de abrigar um novo comando, os policiais não sabia que ela fazia parte dele.

Quando Inès Madani deixou esse carro-bomba em Paris, Sarah Hervouët estava do outro lado do país, na casa de seus pais, em Cogolin, pequena comuna do departamento de Var próxima de Saint-Tropez. As duas jovens ainda não se conheciam, mas ambas já haviam expressado o desejo de morrerem como mártires. Foi por intermédio de um certo Rachi Kassim que seus planos mortíferos se uniram. Esse jihadista muito ativo nas redes sociais é suspeito de ter comandado a partir da zona sírio-iraquiana o assassinato do padre Jacques Hamel, em Saint-Etienne-du-Rouvray, em julho.

Christian Hartmann/ Reuters
Equipe participa de operação policial em Boussy-Saint-Antoine

Pseudônimo de "Maria Antonieta"

Durante sua custódia, Sarah Hervouët, que trabalhava como faxineira em um hospital psiquiátrico, foi a única das três cúmplices a se explicar sobre as motivações de sua ação. Seus depoimentos, e os de pessoas próximas a ela, desenham o perfil de uma jovem perturbada que encontrou no islamismo radical uma identidade onde se refugiar e no martírio uma saída para seu mal-estar.

Sarah Hervouët não tem nenhum contato com seu pai, um marroquino que voltou a viver no país, e foi adotada por um francês, que se instalou no Gabão. Sua mãe é uma francesa católica não praticante, assim como sua irmã mais nova. As duas meninas, quando crianças, acendiam velas na igreja. "Por volta dos 14 anos, Sarah começou a fazer besteiras", contou sua mãe aos investigadores. "Ela fazia escarificações no corpo. Ela queria se punir, tendo sigo magoada pela rejeição de seu pai biológico."

Ao sair dessa adolescência atormentada, Sarah Hervouët conheceu o islamismo, aos 21 anos de idade, através de uma amiga. Ela foi aos poucos se identificando com a situação dos muçulmanos no mundo e especialmente com a das crianças sírias. Em custódia, ela explicou: "O que me faz perder a cabeça é quando vejo crianças mortas. Então eu também fiz isso para vingar a morte de todas as crianças muçulmanas."

"Você tem raiva da França?", perguntou o policial.

"Sim, porque ela bombardeia países que não fizeram nada. Tem soldados franceses estuprando crianças no Mali, é absurdo."

Para ir ajudar seus "irmãos" e cumprir sua hégira (migração para a terra do islã), Sarah Hervouët tentou ir até a Síria em março de 2015. Ela deveria se casar no local com um certo "Abou Saad", um jihadista da cidade de Nimes especializado em recrutamento de jovens francesas nas redes sociais. Detida na fronteira da Turquia com a Síria, ela foi proibida desde então de deixar o território.

Convencida pela propaganda online da organização Estado Islâmico, a jovem desenvolveu uma raiva inextinguível contra a França e François Hollande, que ela considera responsável pelo destino de seus irmãos muçulmanos e pela proibição feita a ela de cumprir sua hégira. Ela também encontrou no discurso jihadista uma maneira de sublimar seus impulsos suicidas.

Durante a semana que antecedeu seu ataque, Sarah Hervouët, usando o pseudônimo de "Maria Antonieta", conversou através do Telegram com Rachid Kassim, que a incentivou a cometer o ataque. Seguindo as instruções do jihadista, ela redigiu seu testamento, cartas de adeus à sua família e gravou um vídeo de lealdade ao Estado Islâmico intitulado: "Operação Abu Mohamed al-Adnani". O título de sua missão, que lhe foi sugerido por Rachid Kassim, faz referência à morte do porta-voz do EI, morto no final de agosto por um drone.

Suas cartas de despedida, escritas a canetinha vermelha e preta em um caderno quadriculado com um capricho infantil, são as de uma jovem que está se preparando para morrer. A primeira era destinada à sua "mamãe" [os erros de linguagem foram mantidos na transcrição a seguir]: "Não me odeie pelo que vou faze (sic), fui procura (sic) uma Casa no paraízo (sic), para o Fiel as portas da morte são as portas da Verdadera (sic) Vida, te amo muito". A outra foi escrita para seus dois pais ausentes: "papai1...papai2...amo vocês e não tenho raiva de vocês. Que Deus Nos Guia."

"Sempre que abordamos o tema do pai, nós sentimos que você fica irritada, o que acontece?", pergunta o oficial durante a custódia, antes de mencionar na ata: "A senhora H. Sarah volta a chorar e não responde à pergunta."

O policial lhe pergunta se ela queria continuar o interrogatório. "Vai passar", ela afirma. "Voltando à carta para meu pai, quando digo que não tenho raiva deles, estou falando da ausência deles. (...) Eu não aguentava mais essa vida. Pensando bem, tenho uma boa vida, mas é um mal-estar interno. É complicado."

Por Telegram, Rachid Kassim sugeriu primeiro à jovem que ela cometesse o ataque dentro de sua comuna. Ele pediu que ela comprasse uma pistola de plástico e entrasse em um local público, como a prefeitura de Cogolin. "Ele dizia que, com a tensão atual na França, as pessoas entrariam em pânico e a polícia chegaria rápido ao local. Ele me disse que se eu agitasse a pistola na frente dos policiais, eles atirariam em mim", ela conta.

O pequeno manual de suicídio através da polícia convenceu a jovem, que no entanto decidiu não cometer o ato em sua região: "Eu disse que não poderia fazer isso, que não conseguiria. Na verdade eu tinha ido semana passada à prefeitura de Cogolin para ver como eu me sentia lá, e não me senti bem. Voltei para casa e vomitei, foi então que eu disse a ele que sentia muito e que não ia conseguir fazer", ela declarou no dia 9 de setembro.

Richard Kassim lhe propôs então colocá-la em contato com duas garotas que se preparavam para perpetrar um ataque em Paris, longe de sua casa.

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"Um verdadeiro interrogatório"

Sarah Hervouët avisou a sua mãe que ela queria ir à capital visitar uma "amiga". Ela arrumou suas coisas (uma troca de roupa, escova de dentes, o taser que ela sempre carregava consigo para se proteger e a pistola de plástico pedida por seu recrutador) e pegou um trem noturno na quarta-feira.

Rachid Kassim transmitiu suas coordenadas a Amel Sakaou, que abrigava Inès Madani em seu apartamento em Boussy-Saint-Antoine desde o fracasso do atentado a carro-bomba. Quando chegou à estação de Austerlitz, na manhã de quinta-feira, Sarah Hervouët enviou um SMS para as duas mulheres: "O pássaro chego (sic.)".

A recepção reservada a ela por suas novas "irmãs", que lhe deram instruções para encontrar o apartamento, não foi exatamente o que Sarah Hervouët esperava. As duas comparsas vasculharam seu telefone e descobriram dois números de funcionários da DGSI, herdados de sua tentativa frustrada de ir para a Síria. Suspeitando que ela fosse uma agente infiltrada, elas a revistaram totalmente, destruindo seu telefone com facadas e desmontaram sua pistola de plástico, crentes de que havia um microfone escondido.

"Elas pediram que eu recitasse suratas, como um teste, e eu me recusei. Isso durou boa parte da manhã, foi um verdadeiro interrogatório", conta Sarah Hervouët aos investigadores. "Amel me disse que não importava o que acontecesse, independentemente do tipo de operação, eu seria a primeira a atacar, para provar que eu estava do lado delas."

Essa paranoia foi confirmada durante a custódia pela própria Inès Madani. "Tenho uma boa notícia para nós a ser compartilhada com vocês: Sarah não faz parte da DGSI", informou, em certo tom de piada, o oficial de polícia encarregado de seu interrogatório.

Durante toda a quinta-feira, Inès Madani e Amel Sakaou mantiveram contato com Rachid Kassim pelo Telegram, esperando ansiosamente por instruções suas. O ataque, cujo alvo e modus operandi permanecem desconhecidos até hoje, estava previsto para o mesmo dia.

Durante a revista no apartamento, os investigadores encontraram garrafas de Schweppes ao lado de pavios de papel. "Acho que isso ia ser usado no plano, mas elas não me diziam nada", explica Sarah Hervouët. "Elas disseram que era para um local de culto, mas elas mudavam de opinião com frequência. Elas falaram em atacar uma sinagoga, mas sem maiores detalhes."

O plano de atentado, em grande parte improvisado, acabou sendo acelerado no final do dia. A filha de Amel Sakaou ligou para ela para avisar que a estação de Boussy-Saint-Antoine estava cheia de "tiras". Em dez minutos, as três mulheres saíram do apartamento, cada uma munida de uma faca, e se encontraram no estacionamento.

Sarah Hervouët afirma que o ataque contra o motorista de uma caminhonete branca, que no fim era um policial, foi decidido no último minuto: "As garotas olharam para a direita e depois para a esquerda e disseram: 'Vamos atacar um carro'. Havia uma caminhonete branca com um homem dentro. Elas conversaram entre si e se perguntaram se o motorista seria árabe. Entendi que elas não queriam que atacássemos árabes. Na verdade não houve líder na história. As duas é que dirigiram. Amel me disse: 'Vamos atacar o carro. Vai, faça o que você tem que fazer'. Eu concordei e foi então que ela me deu a faca."

E qual seria a principal missão desse comando improvisado de mulheres? Para Rachid Kassim, parecia que essa operação montada às pressas procurava compensar o fracasso do atentado com botijões de gás de Inès Madani, quatro dias antes. Esta, em custódia, confirmou o despreparo desse segundo ataque: "Não tínhamos realmente um plano."

Quanto a Sarah Hervouët, que havia se juntado ao comando naquela mesma manhã, ela afirma que sua vontade era de morrer: "Na verdade o que eu queria era o martírio. Queria que alguém atirasse em mim. O que eu devia fazer era matar ou ferir alguém e continuar andando até que a polícia chegasse e, quando eu levantasse a mão na direção de um policial, ele atiraria em mim." Quando foi detida, a jovem começou a chorar gritando "Allahu Akbar". Ela pode ser condenada à prisão perpétua.

Tradutor: UOL

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