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Como games podem ser uma janela para uma experiência alternativa de gênero

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Matt Baume

18/02/2017 04h00

AVISO DE SPOILER:

Este artigo revela elementos de surpresa nos jogos "A Normal Lost Phone", "Dragon Age: Inquisition" e "Gone Home".

A princípio, o game A Normal Lost Phone (Um telefone perdido normal) parece uma série de enigmas simples: o jogador é apresentado a um telefone perdido e deve xeretar nele para descobrir quem é o dono. Mas há algo mais acontecendo sob a superfície.

Examinando os e-mails, textos e apps de paquera, começa a surgir uma história. "Estou ficando um pouco cansado de minha família me dizer 'Agora você é um homem'", escreve Sam, o dono do telefone, de 18 anos. Parece uma queixa muito normal para um adolescente; mas então o jogador descobre uma segunda conta em um app de paquera. Sam se apresenta como uma menina, cuja descrição é semelhante à aparência masculina de Sam. Mais tarde, o jogador encontra uma mensagem de texto que ameaça: "Nunca mais ponha o pé neste clube, ou serei obrigado a contar seu segredinho para todo mundo".

Quando o jogador descobre no navegador um fórum para adolescentes que questionam o gênero, não causa surpresa ver que Sam escreveu: "Realmente não sei quem eu sou, e sinto-me meio perdido no momento".

A Normal Lost Phone foi desenvolvido pela Accidental Queens, uma pequena equipe que basicamente construiu um simulador de conheça-um-garoto-trans. O game, que pode ser jogado em computador ou em dispositivos móveis em aproximadamente três horas, apresenta cerca de 25 mil palavras de texto para descrever um mundo em que o jogador vê Sam lutar para romper com sua namorada, confessar seu medo de ser deserdado e investigar a terapia hormonal. Isso tudo se desenrola contra o pano de fundo de um mistério maior --por que Sam perdeu o telefone na noite de seu 18º aniversário, o que aconteceu com eles e eles estão bem ou aconteceu alguma coisa terrível?

"Quisemos passar uma mensagem sobre um tema específico, trabalhando especialmente na empatia que poderia ser expressa pelo jogador nesse tipo de jogo", disse Diane Landais, programadora e cofundadora da Accidental Queens, via e-mail. "Colocar o jogador como testemunha, em vez de um ator (como é mais comum nos videogames), nos permite apresentar uma situação não como um exemplo a seguir, mas sobretudo como toda uma situação a ser analisada. [...] Se há uma coisa que o game incentiva é a jogá-lo como você mesmo: não há personagem de jogo, não há avatar, só o jogador e seu telefone jogando como eles mesmos".

Esse é o último acréscimo a um gênero emergente de game que salienta experiências queer [excêntricas, ou alternativas] no contexto do jogo. Exemplos anteriores incluem Gone Home, em que os jogadores exploram o que a princípio parece uma casa assombrada vazia, mas vem a ser a casa de uma jovem que luta para compreender sua sexualidade. Nesse jogo, o turbilhão obscuro do ambiente reflete a tensão da personagem; assim como em A Normal Lost Phone, os jogadores nunca encontram outra pessoa, mas ficam sabendo sobre os personagens exclusivamente lendo materiais que eles deixaram para trás.

No game Dragon Age: Inquisition (Era do Dragão: Inquisição), o jogador encontra um personagem chamado Krem que mostra que ele amarra uma faixa em seu peito, o que pode levar a um extenso diálogo em que os jogadores podem fazer perguntas invasivas sobre a transição de Krem. Entre batalhas épicas, o game percorre muitas das perguntas difíceis que as pessoas "cis" [as que se sentem à vontade com seu próprio gênero] costumam ter; e ao fornecer um amigo trans simulado ele permite que os jogadores cisgênero façam perguntas sem o risco de ofender uma pessoa real. Crucialmente, Krem também é um gesto aos jogadores trans de que eles são bem-vindos no mundo do game.

17.fev.2017 - Reprodução do jogo "A Normal Lost Phone" - Accidental Queens - Accidental Queens
Reprodução do jogo "A Normal Lost Phone"
Imagem: Accidental Queens

É claro que esses jogos não escapam de controvérsias, com alguns jogadores se queixando de que a revelação de um roteiro bizarro em Gone Home representava "propaganda" e "enganação".

"Não sou homofóbico, mas não estou realmente interessado em roleplaying qualquer preferência sexual que eu pessoalmente acho... estranha", escreveu um jogador em um fórum.

Embora não seja uma reação ideal, mesmo essa relutância em se envolver pode ser um sinal promissor. A indústria de jogos da corrente dominante ficou um pouco atrasada em relação à televisão e ao cinema em termos de representar personagens LGBT; e agora que esse conteúdo de game está ficando mais inclusivo, o feedback dos jogadores remonta ao modo como o público reagiu às Ellens e Will e Graces do final dos anos 1990. Personagens gays na televisão causaram um frenesi nacional duas décadas atrás; foi por meio da visibilidade constante nesse período que Ellen passou de uma figura polarizante a uma âncora de programa de entrevistas da corrente dominante.

Sabemos que uma das melhores maneiras de mover o ponteiro da opinião pública sobre pessoas LGBT é simplesmente exposição e conversa. David Fleischer, do Laboratório de Liderança do Centro LGBT de Los Angeles, foi pioneiro na pesquisa de mensagens eficazes para atrair eleitores. Suas descobertas dependem muito da empatia: encontrar uma conexão entre pessoas que de outro modo talvez não se vissem cara a cara. Em seus estudos, entrevistadores iam de porta em porta, orientando as pessoas a se colocarem no lugar de alguém que é ou conhece pessoas LGBT. Suas conclusões foram que quando os eleitores são solicitados a imaginar a vida de pessoas de opções alternativas eles têm menor probabilidade de votar em políticas que prejudicariam essas pessoas.

De modo semelhante, games como A Normal Lost Phone, Dragon Age: Inquisition e Gone Home têm o potencial de superar um abismo ao permitir que os jogadores imaginem interações que de outro modo talvez não tivessem. Por meio dos games, eles podem aprender a se tornar aliados, saber que não estão sozinhos ou simplesmente como é conhecer alguém que é assumido.

Não há pesquisa para comparar o impacto das entrevistas de Fleischer com o impacto do conteúdo alternativo nos jogos. Mas eles estão fornecendo oportunidades semelhantes aos participantes: "Pensamos que há um potencial de educação real no conteúdo do game", disse Landais. "Nunca pretendemos que o jogo fosse jogado e desfrutado só por uma comunidade alternativa."

É claro, muitos provavelmente vão reagir como aquele usuário do fórum, afastando-se de um conteúdo que os faz sentir-se "estranhos". Mas Gone Home vendeu centenas de milhares de cópias, o que significa que centenas de milhares de jogadores passam horas na posição de uma pessoa preocupada com um membro da família que é lésbica. Esse é o tipo de penetração pública com que os pesquisadores só podem sonhar.