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Corrida do Rio para o futuro cruza com o passado escravo

Simon Romero

No Rio

11/03/2014 06h00

Cruzando o Atlântico após partir da costa angolana, os navios negreiros atracavam aqui no século 19 no enorme cais de pedra, entregando sua carga humana às "casas de engorda" na rua do Valongo. Cronistas estrangeiros descreviam a depravação no lotado mercado de escravos, incluindo as lojas que vendiam crianças africanas magras e doentes.

Os escravos recém-chegados que morriam antes mesmo de começarem a trabalhar nas minas do Brasil eram levados para uma vala comum próxima, onde seus corpos se decompunham em meio a pilhas de lixo. Com o crescimento das plantações imperiais, os coveiros do Cemitério dos Pretos Novos esmagavam os ossos dos mortos, para abrir espaço para milhares de cadáveres novos.

Agora, enquanto equipes de operários derrubam áreas do Rio de Janeiro para as obras visando a Copa do Mundo deste ano e os Jogos Olímpicos de 2016, descobertas arqueológicas impressionantes em torno dos canteiros de obras estão fornecendo um novo entendimento da distinção brutal da cidade como centro nervoso do comércio de escravos do Atlântico.

Mas enquanto as obras avançam nos arredores do porto negreiro descoberto --com projetos futuristas como o Museu do Amanhã, ao preço de cerca de US$ 100 milhões e projetado na forma de um peixe pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava-- a reforma urbana frenética está provocando um debate sobre se o Rio está negligenciando seu passado na corrida ávida para construir seu futuro.

"Estamos descobrindo sítios arqueológicos de importância mundial e provavelmente, muito mais extensos do que foi escavado até agora, mas em vez de priorizar essas descobertas, nossas autoridades prosseguem com a sua reconstrução grotesca do Rio", disse Sonia Rabello, uma jurista eminente e ex-vereadora.

A prefeitura instalou placas indicativas nas ruínas do porto negreiro e um mapa do circuito da herança africana, que os visitantes podem percorrer para ver onde antes funcionava o mercado de escravos. Mesmo assim, estudiosos, ativistas e moradores do porto argumentam que essas medidas são muito tímidas em comparação aos projetos urbanísticos multibilionários sendo executados.

Além do Museu do Amanhã, criticado por ser um empreendimento muito caro que desvia a atenção da história complexa do Rio, as empreiteiras estão trabalhando em uma série de outros projetos bombásticos, como um complexo de arranha-céus em homenagem a Donald Trump e um condomínio fechado de casas para os juízes olímpicos. 

Ao mesmo tempo, os descendentes dos escravos africanos, que ocupam como posseiros os prédios decrépitos em torno do antigo porto de escravos, estão se organizando em um esforço para obter os títulos de propriedade de suas casas, o que os coloca contra uma ordem franciscana da Igreja Católica Romana que reivindica a propriedade dos imóveis.

"Nós sabemos quais são nossos direitos", disse Luiz Torres, um professor de história de 50 anos e líder do movimento pelos direitos de propriedade. Com as ruínas do mercado de escravos próximo de sua casa como testamento, ele acrescentou, "tudo o que aconteceu no Rio foi moldado pelas mãos dos negros".

Estudiosos dizem que a escala do comércio de escravos aqui era impressionante. O Brasil recebeu cerca de 4,9 milhões de escravos pelo comércio atlântico, enquanto a América do Norte importou cerca de 389 mil no mesmo período, segundo o Banco de Dados de Comércio Transatlântico de Escravos, um projeto da Universidade Emory.

Acredita-se que o Rio tenha importado mais escravos do que qualquer outra cidade nas Américas, superando lugares como Charleston, nos Estados Unidos; Kingston, na Jamaica; e Salvador, no Nordeste do Brasil. Ao todo, o Rio recebeu mais de 1,8 milhão de escravos africanos, ou 21,5% de todos os escravos que chegaram às Américas, disse Mariana P. Candido, uma historiadora da Universidade do Kansas.

Os ativistas dizem que as descobertas arqueológicas merecem no mínimo um museu e mais escavações, apontando para outros projetos, como o Museu Internacional da Escravidão, na cidade portuária britânica de Liverpool, onde os navios negreiros eram preparados para as viagens; o Museu do Velho Mercado de Escravos, em Charleston, e o Castelo Elmina, um entreposto de comércio de escravos na costa de Gana.

"Os horrores cometidos aqui são uma mancha em nossa história", disse Tânia Andrade Lima, a arqueóloga chefe das escavações que revelaram Valongo, construído pouco depois que o príncipe regente de Portugal, d. João 6º, fugiu dos exércitos de Napoleão em 1808, transferindo a sede de seu império de Lisboa para o Rio.

O cais esquálido funcionou até os anos 1840, quando as autoridades o enterraram sob um cais mais elegante para a chegada da Europa da nova imperatriz do Brasil. Ambas as construções foram posteriormente cobertas por um aterro e por um bairro residencial vulgarmente conhecido como "Pequena África".

Muitos descendentes de escravos se estabeleceram na área onde antes funcionava o mercado de escravos, com as línguas africanas ainda faladas no local no início do século 20. Apesar do bairro ter sido reconhecido como berço do samba, uma das tradições musicais mais prezadas do Brasil, ele há muito tempo é negligenciado pelas autoridades.

O Dia da Consciência Negra é comemorado anualmente no Brasil em 20 de novembro, para que se reflita sobre as injustiças da escravidão. Em 2013, Sonia Rabello, a jurista, apontou que o prefeito do Rio, Eduardo Paes, que está supervisionando a maior reforma da cidade em décadas, não compareceu à cerimônia no Valongo, onde os moradores deram início a uma campanha para que fosse reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco. Complicando o debate sobre como o passado do Rio deve ser mantido ao lado da reconstrução frenética da cidade, algumas famílias ainda vivem sobre os sítios arqueológicos, ocasionalmente escavando por conta própria o patrimônio do Brasil.

"Quando vi pela primeira vez os ossos, eu achei que eram resultado de um assassinato horrível envolvendo inquilinos anteriores", disse Ana de la Merced Guimarães, 56, a proprietária de uma pequena empresa dedetizadora que vive em um velho casarão, onde os operários que faziam uma reforma descobriram restos mortais em uma vala comum em 1996.

Na verdade, Merced Guimarães vivia sobre uma vala comum de escravos mortos que foi usada por décadas, até por volta de 1830. As estimativas variam, mas estudiosos dizem que até 20 mil pessoas foram enterradas ali, incluindo muitas crianças.

Merced Guimarães e seu marido optaram por permanecer na propriedade, abrindo uma pequena organização sem fins lucrativos no local, onde os visitantes podem ver partes da escavação arqueológica. As autoridades têm planos de construir um projeto de veículo leve sobre trilhos na rua deles, o que pode levar a mais descobertas.

"Este foi um local de crimes inomináveis contra a humanidade, mas também é onde vivemos" disse Merced Guimarães em sua casa, queixando-se que os órgãos públicos têm dado pouco apoio à sua organização.

Washington Fajardo, um assessor do prefeito do Rio em questões de planejamento urbano, disse que alguns passos importantes foram dados no sítios arqueológicos, incluindo a designação do porto de escravos como área de proteção ambiental. E ele disse que um plano que está sendo considerado criaria um laboratório arqueológico urbano onde os visitantes poderiam acompanhar os arqueólogos estudando os materiais nos sítios.

Fajardo também enfatizou que em outro novo empreendimento no porto, o Museu de Arte do Rio, mais da metade dos funcionários são moradores da área.

"Nós gostaríamos de fazer mais", ele disse, referindo-se ao cemitério de escravos. "É complexo porque há pessoas morando sobre o sítio. Se elas quiserem permanecer, nós temos que respeitar o desejo delas."

Por todo o Rio ocorreram outras descobertas. Perto da ampliação de uma linha do metrô, os pesquisadores encontraram recentemente relíquias pertencentes a Pedro 2º, o último imperador do Brasil antes de ter sido derrubado em 1889. E perto do porto de escravos, os arqueólogos encontraram canhões que supostamente faziam parte de um sistema de defesa marítima com quatro séculos de idade.

Mas nenhuma das descobertas foi tão chamativa quanto o cais de Valongo em 2011 e as escavações anteriores do cemitério sob a casa de Merced Guimarães. Além das grandes pedras do próprio cais, os arqueólogos encontraram itens que ajudaram a reconstruir o cotidiano dos escravos, incluindo peças de cobre que seriam talismãs e dominós usados em jogos de azar.

 Entre o porto de escravos e o cemitério, os visitantes também podem ver a Ladeira do Valongo, onde os depósitos do mercado de escravos do Rio antes horrorizavam os viajantes estrangeiros. Um visitante, Robert Walsh, um clérigo britânico que veio ao Brasil em 1828, escreveu sobre as transações.

 "Eles são avaliados pelo comprador em diferentes partes, exatamente como já vi açougueiros avaliando um bezerro", ele disse. "Às vezes via grupos de mulheres bem-vestidas aqui, comprando escravos, da mesma forma que já vi senhoras inglesas fazendo compras em nossos bazares." 

 O legado da escravidão é claro por todo o Brasil, onde mais da metade de seus 200 milhões de habitantes se define como negro ou mestiço, dando à nação mais pessoas de origem africana do que qualquer outro país fora da África. No Rio, a grande maioria dos escravos veio do que atualmente é Angola, disse Walter Hawthorne, um historiador da Universidade Estadual de Michigan.

"O Rio foi uma cidade africana culturalmente vibrante", disse o dr. Hawthorne. "Os alimentos que as pessoas comem, seus cultos, a forma como se vestem e mais foram em grande parte influenciados pelas normas culturais angolanas."

 O Brasil aboliu a escravidão em 1888, o tornando o último país das Américas a fazê-lo. Agora, a abordagem relativamente relaxada em relação às descobertas arqueológicas está gerando dúvidas sobre quão dispostas as autoridades estão em revisitar esses aspectos da história brasileira.

 "Os arqueólogos estão expondo as bases de nossa sociedade desigual, enquanto estamos testemunhando uma tentativa perversa de transformar a cidade em algo que lembra Miami ou Dubai", disse Cláudio Lima Castro, um arquiteto e estudioso de planejamento urbano. "Nós estamos perdendo uma oportunidade de nos concentrarmos em detalhes em nosso passado, e talvez até mesmo aprender com ele."

Taylor Barnes contribuiu com reportagem.