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A democracia não anda bem das pernas, diz ex-premiê britânico Tony Blair

Tony Blair foi primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007. Atualmente é representante do Quarteto no Oriente Médio, em nome de EUA, Rússia e União Europeia, em missões pela paz -- como o trabalho com os palestinos para prepará-los para a posição de Estado - The New York Times
Tony Blair foi primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007. Atualmente é representante do Quarteto no Oriente Médio, em nome de EUA, Rússia e União Europeia, em missões pela paz -- como o trabalho com os palestinos para prepará-los para a posição de Estado Imagem: The New York Times

Tony Blair

18/12/2014 06h00

Com muitos governos ocidentais democráticos em dificuldades para retomar o crescimento econômico e combater a desigualdade crescente, entram em debate as falhas e desafios do sistema

A democracia não anda bem das pernas. A impressão é a de que muitos sistemas não vêm funcionando bem: o Congresso dos EUA, o governo de coalizão do Reino Unido e muitos outros na Europa andam com dificuldades de tomar as decisões necessárias para se reencontrar com o crescimento econômico. Algumas democracias incipientes parecem, pelo menos a curto prazo, menos competentes para preencher as necessidades de seus cidadãos do que as autocracias.

Junte tudo isso e acrescente a natureza complexa dos desafios recentes -- o extremismo fazendo os países do Oriente Médio e outras regiões entrarem em convulsão; a crise financeira na Europa; o conflito no leste da Ucrânia e a anexação da Crimeia por parte da Rússia -- e não é surpresa que se veja a ascensão dos partidos de extrema-direita na Europa e um clima geral de mal-estar e decepção com a política democrática. De repente para alguns, o "putinismo" -- culto ao líder poderoso que segue a direção que lhe convém, ignorando qualquer oposição -- ganhou um forte apelo.

Nós nos tornamos condescendentes em relação à democracia. Ela continua sendo o sistema de escolha, continua representando o que as pessoas escolhem livremente -- mas sofre do que eu chamaria de "desafio de eficácia": seus valores são corretos, mas muitas vezes não funcionam. Em um mundo em constante mudança, onde países, comunidades e corporações têm que se adaptar para se manterem atualizados, a democracia parece lenta, burocrática e fraca. Nesse aspecto, deixa a desejar aos cidadãos de modo geral. Por que isso acontece e o que devemos fazer a respeito?

Nós nos esquecemos de que as teorias são boas somente se funcionam na prática; por isso, os aspectos técnicos dos sistemas democráticos são tão importantes. O princípio básico de que o povo deve eleger seu governo continua popular e obviamente correto, mas a implementação parece ter sido feita de forma incorreta. É hora de discutir como melhorar a democracia, como modernizá-la. Tradicionalmente, esse debate é dominado por questões de transparência e honestidade – como, por exemplo, a discussão no Reino Unido sobre o reembolso de despesas dos membros do Parlamento.

Putin - Alexei Druzhinin/Serviço de Imprensa do Governo/The New York Times - Alexei Druzhinin/Serviço de Imprensa do Governo/The New York Times
Vladimir Putin chega para posse como presidente da Rússia em 2012; ele mudou a lei para permanecer no poder depois de dois mandatos de presidente e um como premiê
Imagem: Alexei Druzhinin/Serviço de Imprensa do Governo/The New York Times

A decepção com os governos democráticos, porém, é realmente uma questão de o povo achar que as mudanças de que necessita não acontecerem com rapidez. É um desafio prático. E geralmente é colocado de outra forma: as pessoas dizem que o governo não as ouve. Na verdade, está ouvindo sim; o problema é que as vozes que chegam às autoridades estão dizendo coisas diferentes. Está faltando alguma coisa na tomada de decisões das lideranças fortes. Por quê?

De uns anos para cá, certas mudanças ocorridas nas democracias ocidentais diminuíram a eficácia do sistema.

Tanto nos EUA como no Reino Unido, como resultado dos limites impostos ao eleitorado, uma parcela dele acabou se tornando "propriedade" dos partidos -- ou seja, quem for nomeado pelo partido para concorrer, garante uma cadeira. Isso leva os possíveis candidatos a assumir posições que interessam aos membros ativos do partido, não ao público em geral. E o resultado é que os políticos estão se afastando do centro -- onde o público tende a se reunir -- em detrimento da criação de manobras.

Em um sistema como esse, a ênfase é na conquista de posições políticas, não na criação de soluções baseadas em evidências. De fato, o governo moderno é, acima de tudo, um negócio não-ideológico.

Além disso, a imprensa em muitos países ocidentais vem se tornando mais partidária, conforme o público convencional vai encolhendo e as organizações preferem manter a boa oportunidade comercial que representa agradar ao público cativo e conectá-lo a seus interesses específicos.

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  • As redes sociais empolgam, têm um efeito real e trazem mudanças positivas, mas são também o domínio dos falastrões -- e aqueles que mais gritam nem sempre merecem ser ouvidos

    Tony Blair

Também cresceu o número de grupos poderosos cujos interesses podem obstruir reformas substanciais e necessárias. Qualquer um que já tenha tentado reformar um sistema educacional, por exemplo, sabe das dificuldades dessa luta insana. A burocracia reage contra as mudanças. Os sindicatos dos professores são contra elas. O público é incitado a resistir a elas, mesmo quando representam seus próprios interesses. Cheguei bem perto de perder o cargo de primeiro-ministro não por causa de políticas de guerra ou paz, mas por causa de reformas educacionais. A luta por mudanças na saúde pública têm características semelhantes.

O mundo, porém, está se alterando muito rápido, e atualizar os sistemas de governo é essencial.

O impacto da falta de reformas é sentido pelo público. O povo precisa de serviços melhores, gerar maiores expectativas, mas como diz qualquer político, não quer pagar por elas. Assim, a ausência de mudanças, principalmente em época de orçamentos enxutos, torna tudo incrivelmente difícil. Com isso, acontece o paradoxo curioso da liderança moderna: é preciso haver reforma para satisfazer as demandas públicas, cada vez mais exigentes, embora o público possa facilmente ser mobilizado para se opor a elas. O resultado é que os políticos acabam evitando as mudanças, o que aumenta a decepção dos eleitores com o processo político.

Veja, por exemplo, países europeus como França, Itália, Espanha e Grécia, que estão lutando para reformar seus sistemas fiscais para alterar a distribuição de benefícios públicos ou diminuir as redundâncias sistêmicas; a reação pública contra a mudança é intensa, embora não haja alternativa. Enquanto isso, a União Europeia é incapaz de tomar medidas para estimular o crescimento, que é o acompanhamento essencial da reforma.

Analise as mudanças do setor privado nos últimos vinte anos; veja quais são as principais companhias em termos de capitalização de mercado e como elas desbancaram empresas antigas. É assim que o mundo funciona, menos no governo. Continuamos operando da forma antiga -- incapazes de mudarmos devido, em parte, à burocracia de cima para baixo que gerencia o status quo em vez de mudá-lo.

A tecnologia por si só poderia mudar a forma como operam a educação e a saúde pública; poderia revolucionar o ensino e o aprendizado. Poderia criar novos métodos de diagnóstico e tratamento. Nos melhores lugares isso já acontece, mas não na maioria. E é essa disparidade de eficácia a verdadeira causa da decepção política e o motivo pelo qual as pessoas correm atrás de soluções populistas que, na verdade, não são soluções. É isso que precisamos mudar.

Para piorar, no momento em que mais se precisa de liderança, o número de líderes políticos parece ter encolhido. Quantos deles -- e por que não, quantos seguidores em um Parlamento ou Congresso -- vivem atitudes responsáveis e concretas fora da política? Hoje em dia é muito comum para um jovem interessado no assunto se formar, começar a trabalhar como analista ou pesquisador e daí pular direto para a disputa de um cargo público.

Eu passei apenas sete anos no setor privado antes de me aventurar na política, mas foi uma época crucial, que me ensinou muita coisa. Aprendi como funciona o setor e as pessoas, o que foi extremamente útil quando, mais tarde, passei a governar -- mas principalmente aprendi a diferença entre as ideias políticas acadêmicas e aquelas que podem ser aplicadas no "mundo real".

Para completar -- e só um ex-político pode dizer isso -- os políticos não são tão bem pagos como aqueles que são bem-sucedidos no setor privado. Isso obviamente restringe os atrativos da carreira em uma época em que mais precisamos de personalidades vibrantes, vigorosas e variadas.

Índia - Dibyangshu Sarkar/AFP/Getty Images - Dibyangshu Sarkar/AFP/Getty Images
Os eleitores compareceram em números recordes nas eleições gerais da Índia em maio, garantindo à oposição nacionalista hindu o comando do país em tempos de baixo crescimento e revolta com a corrupção
Imagem: Dibyangshu Sarkar/AFP/Getty Images

O resultado de tudo isso, para aqueles que chegam ao topo em uma democracia, é que pode ser muito difícil realizar alguma coisa -- daí o "desafio da eficácia". Ele é ampliado pelas redes sociais que, por si só, são um fenômeno revolucionário. As ondas de emoção sobre determinados temas costumavam ir ganhando força aos poucos; hoje, se transformam em tsunami em questão de dias, horas até. O desejo dos políticos de causar impacto geralmente esconde o valor do equilíbrio.

Para os verdadeiros líderes, isso é desorientador. Afinal, é preciso equilibrar a autoridade com a opinião pública, ser firme à frente dela, mas sem exageros. Ele ou ela tem que saber analisar os sentimentos com sutileza, mas esse julgamento é ainda mais difícil se você governa através do Twitter, por exemplo. As redes sociais empolgam, têm um efeito real e trazem mudanças positivas, mas são também o domínio dos falastrões -- e aqueles que mais gritam nem sempre merecem ser ouvidos.

A resposta para essa indisposição democrática talvez seja, em parte, uma mudança na relação entre governantes e governados. O povo tem que aceitar que governar envolve escolhas difíceis e os políticos devem ser respeitados por tomá-las, e não criticados. Pode ser também que envolva uma mudança de regras -- por exemplo, permitindo um intercâmbio maior entre os setores público e privado. Poder ser que os parlamentos tenham que funcionar de maneira diferente; em alguns países, podem ser até necessárias algumas mudanças constitucionais.

Chegou a hora de discutir o tema abertamente. O simples direito de votar não é suficiente: os sistemas precisam mostrar resultados para o povo. No momento, não é o que acontece. Não podemos dar aos eleitores a escolha entre ditadura e populismo. Se realmente acreditamos na democracia, agora é a hora de melhorá-la.