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Como uma menina pode se tornar uma mulher independente na Índia?

Priyanka Chopra é atriz, cantora e ativista humanitária - Guess Inc. by Bryan Adams/The New York Times
Priyanka Chopra é atriz, cantora e ativista humanitária Imagem: Guess Inc. by Bryan Adams/The New York Times

Priyanka Chopra

19/12/2014 06h00

Quando eu tinha nove anos, não via a hora de chegarem as férias de verão. Alguns dias antes de elas começarem, eu me sentei à mesa da sala de jantar para discutir o que queria fazer -- mas minha mãe colocou a mão dela gentilmente sobre a minha e me interrompeu, dizendo que já tinha outros planos. Queria que eu acompanhasse ela e meu pai na ronda semanal que faziam nos vilarejos vizinhos. Nem preciso dizer que fiquei arrasada.

Meus pais, médicos do Exército indiano, passavam praticamente todo o tempo livre cuidando daqueles que não tinham acesso nem meios para se consultarem. Fiz birra e fiquei de bico, mas minha mãe estava irredutível; às seis da manhã de um sábado, partimos.

Eu fiquei responsável pela farmácia, preparando os remédios para distribuição, trabalhando em um espaço improvisado, sob o toldo puxado de uma ambulância emprestada pelo hospital onde minha mãe clinicava. Ainda azeda, não me lembro de quase nada do primeiro dia; com o passar do tempo, porém, comecei a me envolver.

E descobri tanta coisa! As menininhas, obviamente doentes, não recebiam tratamento; suas mães tinham muito medo de falar sobre os problemas das filhas, só se preocupavam com os filhos. Minha mãe tentava convencê-las a permitir que as garotas se consultassem; meu pai tentava convencer os maridos; às vezes funcionava, outras não. Eu não entendia muita coisa que era dita, nem tudo o que acontecia.

No quarto dia, comecei a chorar no caminho de volta para casa. As meninas estavam sendo castigadas? Perguntei aos meus pais o que elas tinham feito de errado. E eles tentaram me explicar, da melhor maneira possível, o estigma que cercava -- e ainda persegue -- as meninas do nosso país. Mas como dizer isso a uma menina de nove anos? O que entendi foi que os pais com quem estávamos lidando achavam que os filhos eram melhores que as filhas. Aquilo me magoou. Não entendia por quê, mas, a partir daquele momento, jurei ajudá-las como pudesse.

Afeganistão - Sergey Ponomarev/The New York Times - Sergey Ponomarev/The New York Times
Aluna da Escola Feminina Mir Ali Ahmad na província de Parwan, no Afeganistão -- um dos países onde as meninas têm dificuldade de acesso à educação
Imagem: Sergey Ponomarev/The New York Times

Aquela experiência, e o tempo que passei trabalhando com meus pais após aquela viagem, me levaram a usar meu nome e minha voz para apoiar a educação e a autonomia feminina. Eu também fui menina, de família modesta, mas tive pais amorosos que me educaram e me deram a oportunidade de lutar pelos meus sonhos. Trabalhei muito, mas hoje sou independente financeiramente e tenho sucesso na carreira que escolhi. Se eu consegui, qualquer menina também consegue!

Elas podem chegar lá, mas não sozinhas.

Sim, eu sei, você já ouviu essas histórias antes e deve estar pensando: "lá vem essa história de menininhas coitadinhas, de novo não!" Mas eu peço que me dê um minuto para contar como podemos deixar de reagir apenas balançando a cabeça em relação a uma situação tão triste e fazer progressos, não só em 2015, mas nos anos seguintes.

Depois de mais um ano em que a educação feminina foi manchete pelos motivos errados -- o sequestro pelo Boko Haram de mais de 250 garotas na Nigéria foi simplesmente horrendo -- o ano se encerra com uma menina sendo notícia pelas razões certas, ou seja, reconhecida por seus esforços. Em outubro, Malala Yousafzai, estudante e ativista, e o indiano Kailash Satyarthi receberam o Prêmio Nobel da Paz por "sua luta contra a repressão de crianças e jovens e o seu direito à educação", segundo o comitê norueguês, que também observou que Malala é um exemplo de como as crianças e os jovens podem melhorar sua situação.

É possível fazer de 2015 um fator de mudança para as meninas ao redor do mundo. Como a própria Malala disse: "Vamos pegar nossos livros e canetas, eles são nossas armas mais poderosas. Munida deles, uma criança, guiada por um professor, pode mudar o mundo. A educação é a única solução".

Comprovei essa verdade mais uma vez ao me sentar, não faz muito tempo, com um grupo de meninas em Maharashtra, no oeste da Índia. Elas participam do Deepshikha, um programa do Unicef e do Barclays Bank que ajuda garotas das áreas rurais e favelas urbanas a construir seu próprio futuro. Eu estava ali porque queria conhecer suas experiências, dificuldades, seu aprendizado, basicamente tudo o que pudessem compartilhar.

Quase 25% da juventude mundial está desempregada, o que, segundo o Unicef,  representa 1,2 bilhão de adolescentes -- sendo que 243 milhões vivem na Índia. Esses jovens têm potencial de transformar a sociedade se investirmos neles -- e, no entanto, a taxa de desemprego dessa faixa etária só faz aumentar, já estando muito mais alta que a dos adultos. Para as mulheres jovens, as dificuldades se multiplicam porque não só têm menos oportunidades de trabalho, como também enfrentam a discriminação, a pressão do casamento precoce, a violência e a pobreza. E a Índia não é a única.

Sentada ali, ouvindo os relatos daquelas meninas -- trágicos, sim, mas poderosos -- pensei no progresso que fizemos. Quando o Unicef lançou o Deepshikha com o governo local e várias ONGs, em 2008, visitei um dos centros de treinamento, uns dois anos antes de me tornar embaixadora para promover os direitos infantis. Naquela visita, percebi os avanços feitos não só pela iniciativa, mas pelas garotas.

Um dos aspectos mais poderosos do Deepshikha é o compartilhamento do conhecimento comercial e financeiro: as "prerikas", jovens com experiência nessas áreas, treinam outras meninas em suas comunidades, ajudando-as a desenvolver suas capacidades e a autoconfiança necessária para alcançarem a independência financeira. A autonomia é a base dessa iniciativa.

Esse tipo de trabalho tem consequências positivas em toda a comunidade. A história de Sadhana é só um exemplo. Ela faz parte do Deepshika em seu vilarejo, em Maharashtra, onde a conheci, há alguns meses.

Conversamos sobre sua vida, ela me convidou para ir à sua casa. Com mais quatro irmãs, a garota nasceu de pais que achavam que filhas mulheres eram um peso e, por isso, lhes eram totalmente indiferentes. Das moças não se esperava um futuro produtivo, feito por escolha própria, mas sim casamentos arranjados e muitos filhos. Há alguns anos, porém, o pai ficou doente e, paralítico, não podia mais sustentar a casa. Sadhana assumiu seu lugar e hoje não só sustenta a família, como tem um serviço de alfaiataria de sucesso. E seu pai me disse que Sadhana se tornou o filho que ele nunca teve. Eu lhe respondi dizendo que ele não precisava de filhos, já tinha as meninas!

Sadhana hoje ensina as irmãs e, ao lado de outras jovens da comunidade que também se aventuraram no comércio, fazendo salgadinhos e/ou artesanato, montou uma cooperativa, na esperança de expansão. O objetivo é garantir e reforçar a situação econômica de suas famílias. Além do trabalho remunerado, Sadhana e as outras integrantes do Deepshikha tentam melhorar a qualidade de vida de suas famílias e comunidades, compartilhando seus conhecimentos sobre educação básica e higiene e defendendo os direitos femininos. Elas levam tudo o que aprenderam a outras jovens carentes.

O Deepshikha já envolve 65 mil jovens em Maharashtra e está sendo estendido a todo o Estado -- muitos outros, aliás, tradicionalmente desfavoráveis à emancipação feminina, estão investigando como começar o programa.

As jovens na Índia, Paquistão e outros países não têm medo de lutar pelo que acreditam ser seus direitos. Há inúmeras Malalas por aí, garotas que sabem que mudarão de vida se puderem estudar.

"Não me importo de ir à escola e me sentar no chão; a única coisa que quero é estudar. Não tenho medo de ninguém", disse Malala.

O melhor de tudo isso é que, aonde quer que eu vá, sempre descubro que os esforços de melhorar a vida das meninas nunca é isolado; o objetivo é sempre ajudar sua família e a comunidade como um todo. As meninas, por sua vez, querem se ajudar para progredirem com aqueles de quem gostam -- e é aí que o efeito dominó positivo se faz ver.

No entanto, nada disso é novo. Jane Austen já tinha consciência do fato há 200 anos: "Se uma garota receber educação e uma chance de se estabelecer no mundo, terá todos os meios de se sustentar, sem depender de ninguém".

Como fazer isso? Da mesma forma que as meninas, nossos esforços não podem se voltar apenas para o indivíduo.

Muitos homens e mulheres comuns se unem para fazer de programas como o Deepshikha um sucesso. Além do trabalho deles, as grandes empresas contribuem com fundos; os governos trabalham para mudar as leis e facilitar iniciativas como essa; gente como eu, que tem presença pública, usa a influência para gerar conscientização ao redor do mundo.

Pequenos gestos ajudam, coisas que qualquer um pode fazer. Você também pode contribuir para projetos como o Deepshikha -- ou pagar a mensalidade escolar de uma, ou várias meninas; doar seu tempo a uma organização que trabalhe com garotas, ou ser tutor de uma delas; ensinar inglês e lições de vida a meninas carentes. Use seu conhecimento profissional -- seja em marketing, finanças ou qualquer outra área de atuação -- para ajudar as ONGs a criarem programas sustentáveis. Descubra o que é mais viável e faça alguma coisa.

As meninas na Índia e no resto do mundo precisam de sua ajuda para ter esperança de um futuro melhor, e tornar não só 2015, mas os anos seguintes em um verdadeiro fator de mudança para elas e suas comunidades.