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Americana de origem chinesa enfrenta drama após acusação de espionagem nos EUA

Sherry Chen teve a acusação de espionagem retirada dias antes de seu julgamento - Maddie McGarvey/The New York Times
Sherry Chen teve a acusação de espionagem retirada dias antes de seu julgamento Imagem: Maddie McGarvey/The New York Times

Nicole Perlroth

17/05/2015 06h00

Na segunda-feira, 20 de outubro de 2014, Sherry Chen foi de carro, como de costume, para seu escritório no Serviço Meteorológico Nacional em Wilmington, Ohio, onde ela faz previsões de ameaças de inundação ao longo do rio Ohio. Ela estava com um pouco jet-lag, tendo retornado alguns dias antes de uma viagem à China. Mas enquanto se dirigia à sua mesa, diz ela, não tinha nenhum motivo para pensar que aquele não era um dia comum. Até que seu chefe a chamou.

Uma vez dentro do escritório, a porta dos fundos se abriu e entraram seis agentes do FBI.

Os agentes acusaram Chen, uma hidróloga nascida na China e hoje cidadã norte-americana naturalizada, de usar uma senha roubada para baixar informações sobre as represas do país e de mentir sobre um encontro com um funcionário chinês de alto escalão.

Chen, 59, que adotara o Meio-Oeste dos EUA e já havia recebido prêmios por seu serviço ao governo, era agora suspeita de ser uma espiã chinesa. Ela foi presa e levada, algemada, em meio a seus colegas de trabalho para um tribunal federal a 65 km dali, em Dayton, onde informaram que ela poderia pegar 25 anos de prisão e ter de pagar US$ 1 milhão em multas.

Sua vida entrou em parafuso. Ela foi suspensa sem pagamento do trabalho, e sua família na China teve que conseguir dinheiro para pagar sua defesa judicial. Amigos e colegas de trabalho disseram que tinham medo de visitá-la. Caminhões de televisão estacionaram do lado de fora de sua casa, esperando ver a suposta espiã estrangeira escondida à vista de todos no subúrbio de Wilmington, de 12.500 habitantes.

"Eu não conseguia dormir", disse Chen em uma entrevista recente. "Eu não conseguia comer. Eu não fiz nada, além de chorar por dias."

Então, cinco meses depois, o suplício terminou abruptamente. Em março, uma semana antes da data que ela deveria ir a julgamento, os promotores retiraram todas as acusações contra Chen sem explicação.

"Estamos exercendo o poder discricionário da promotoria", disse Jennifer Thornton, porta-voz do procurador federal do Distrito Sul de Ohio. Ela acrescentou que, no ano passado, o Departamento de Justiça apresentou 400 acusações e "informações criminais" – acusações relacionadas a acordos de confissão – e rejeitou 13 delas, inclusive a de Chen. O procurador federal não quis comentar sobre a investigação, mas resta pouca dúvida de que a Justiça está sofrendo pressão para seguir qualquer pista que possa estar relacionada com roubo de segredos industriais.

Nos últimos anos, funcionários do governo perceberam, cada vez mais alarmados, que hackers chineses e funcionários infiltrados estavam transferindo segredos industriais e outras informações confidenciais para fora dos Estados Unidos. O mantra, atualmente, é que existem apenas dois tipos de empresas no país: as que foram hackeadas pela China e aquelas que não sabem que foram hackeadas pela China.

Em 2013, o presidente Barack Obama anunciou uma nova estratégia para combater isso. A pedra fundamental foi intensificar as investigações e processos, assim, os processos do Departamento de Justiça de acordo com a Lei de Espionagem Econômica cresceram mais de 30% em relação ao ano anterior. Durante os primeiros nove meses de 2014, esse total aumentou mais 33%. Vale observar que mais da metade das acusações de espionagem econômica desde 2013 tiveram alguma ligação com a China, mostram documentos públicos.

Foi nesse clima que os promotores prenderam Chen.

"Eles se depararam com uma pessoa de ascendência chinesa e com poucas provas de que que elas pudessem estar tentando beneficiar o governo chinês, mas está claro que houve um pouco de medo do comunismo e de racismo envolvidos", disse Peter J. Toren, ex-promotor federal que se especializou em crimes de computador e espionagem industrial. Ele agora é sócio da Weisbrod Matteis & Copley em Washington e autor de "Propriedade Intelectual e Crimes de Computador."

Entrevistas com Chen e seus ex-colegas de trabalho e uma revisão dos documentos judiciais, que incluem o equivalente a um ano de trabalho e e-mails pessoais de Chen, sugerem que os promotores estavam caçando provas de espionagem, fracassaram e se contentaram com acusações menores que mais tarde foram retiradas.

"O governo achava que tinha achado ouro com este caso", disse Mark D. Rasch, ex-promotor de crimes cibernéticos e de espionagem que analisou o caso. "O problema era que os fatos não se encaixavam muito bem com a lei aqui."

Um favor que deu errado

Chen, cujo nome é Xiafen, nasceu em Pequim. Desde cedo, ela tinha uma tendência para a engenharia. Um tio a incentivou a seguir carreira na arquitetura, mas ela disse que estava mais interessada na natureza abstrata da água e do ar. "Você não pode vê-los com os olhos", disse ela, animando-se. "É muito mais complexo do que isso. Eu achava fascinante.”

Ela se especializou em hidrologia em Pequim, casou-se e se mudou para os Estados Unidos para fazer um curso em recursos hídricos e climatologia na Universidade de Nebraska. Ela tornou-se uma cidadã norte-americana em 1997. Depois de trabalhar 11 anos para o Estado de Missouri, ela assumiu o cargo no serviço climatológico em Ohio em 2007.

Em Wilmington, ela e o marido, um especialista em eletrônica, mudaram-se para uma casa estilo chácara a uma distância curta do escritório, vivendo uma rotina confortável.

Pergunte a Chen sobre sua casa ou passatempos e ela não dirá mais do que uma ou duas palavras. Mas pergunte a ela sobre o fluxo de água ou sobre o rio Ohio e ela pode falar por horas. Cerca de 25 milhões de pessoas vivem ao longo da bacia do rio Ohio, que se estende por mais de 1.500 km, de Pittsburgh até Cairo, Illinois, onde se junta ao rio Mississippi. Ao longo do caminho, ele passa por eclusas e barragens administradas pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA. Chen desenvolveu um modelo para prever inundações ao longo do rio Ohio e de seus afluentes. O modelo exige que a coleta contínua de informações sobre os níveis de água e chuvas, e sobre a forma como os operadores de barragens e eclusas respondem ao fluxo da água.

Chen era conhecida por ser obstinada na busca de dados para suas previsões. Ela teve síndrome do túnel do carpo na mão direita por causa de oito anos clicando repetitivamente com o mouse. Thomas Adams, que contratou Chen no Serviço Meteorológico Nacional em 2007, disse que seu fascínio pelos dados faziam com que ela fosse perfeita para o trabalho.

"Sherry é e sempre foi dedicada a conseguir os dados corretos – e isso é muito importante", disse Adams, lembrando que um centímetro de água pode fazer a diferença entre um dique funcionar ou falhar.

Chen voltava para Pequim todo ano para visitar seus pais, e foi assim que seus problemas começaram. Durante sua viagem em 2012, um sobrinho disse que seu futuro sogro estava envolvido numa disputa com funcionários públicos por causa de um encanamento de água.

O sobrinho sabia que um dos ex-colegas de hidrologia de Chen, Jiao Yong, havia se tornado vice-ministro de Recursos Hídricos da China, que supervisiona a maior parte da infraestrutura de água do país. Segundo Chen, o sobrinho pediu que ela contatasse Jiao, na esperança de que ele fosse capaz de ajudar o pai de sua futura esposa. Chen disse que relutou em fazer isso, uma vez que não tinha visto Jiao em muitos anos, mas o contatou.

A secretária de Jiao marcou uma conversa de 15 minutos no escritório dele no centro de Pequim, e Jiao disse que tentaria interceder. No fim da conversa, ele também mencionou que estava em meio ao processo de financiar a reforma do antigo sistema de reservatórios da China e estava curioso sobre como esses projetos eram financiados nos Estados Unidos.

Foi uma pergunta casual, disse Chen, mas ela ficou com vergonha de não saber a resposta.

Quando ela voltou para Ohio, decidiu se informar melhor. Mais tarde enviou um e-mail a Jiao com links para sites, mas nada diretamente relevante para a pergunta dele.

Ela também pediu a ajuda de Deborah H. Lee, então chefe da divisão de gerenciamento hídrico no Corpo de Engenheiros do Exército, com quem Chen tinha trabalhado em vários projetos ao longo dos anos.

As cópias de e-mails incluídas nos documentos do processo mostram que Lee indicou a Chen o site de sua instituição e disse a ela que se o ex-colega tivesse mais perguntas, poderia contatá-la diretamente. Chen então enviou um segundo e último e-mail a Jiao, instruindo-o a ligar para Lee diretamente se tivesse mais perguntas.

Pouco depois de sua troca de e-mails com Chen, Lee relatou a correspondência para o pessoal de segurança do Departamento de Comércio, a agência acima do Serviço Nacional de Meteorologia. "Temo que exista uma tentativa de coletar uma coleção ampla de manuais de controle hídrico do Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA em prol de interesses estrangeiros", escreveu Lee.

Lee não quis comentar sobre suas motivações para enviar o e-mail. Em setembro passado, ela saiu do Corpo de Engenheiros do Exército para trabalhar na Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos EUA (NOOA). Um porta-voz da NOAA disse que nem Lee nem a agência comentariam sobre o que eles consideraram um "assunto pessoal".

Se Jiao estava tentando recrutar Chen, ele estava fazendo isso de uma forma muito desanimada. Ele levou uma semana para responder ao primeiro e-mail. "Olá, Xiafen: e-mail recebido", ele escreveu, em inglês. "Obrigado pela informação que você me encaminhou. Vou analisá-la.” Seu segundo e-mail foi ainda mais breve: “Muito obrigado.”

Essa foi a extensão de sua correspondência, de acordo com as descobertas de um mandado de busca para investigar os registros de e-mails pessoais e profissionais de Chen.

Ao buscar uma resposta para a pergunta de Jiao, Chen entrou no banco de dados do Inventário Nacional de Barragens. Esse banco de dados, que é mantido pelo Corpo de Engenheiros do Exército, está disponível para os funcionários do governo e pessoas comuns que solicitem uma senha. Um pequeno subconjunto de dados do site – seis dos 70 campos de dados – só está disponível para funcionários do governo.

Como funcionária do governo, Chen tinha acesso completo ao banco de dados. Mas ela não tinha uma senha; o governo começou a exigir senhas em 2009, depois da última vez que Chen tinha utilizado o serviço. Então ela pediu ajuda a Ray Davis, colega da baia ao lado da sua. Davis, que já tinha fornecido as instruções de senha e login para todo o escritório, enviou a senha para ela por e-mail.

Chen não encontrou muita informação útil para Jiao mas baixou dados sobre represas de Ohio que achou que poderiam ser relevantes para seu modelo de previsão. Para Jiao, ela incluiu um link para o banco de dados em seu segundo e-mail e observou que "a base de dados é apenas para usuários do governo, os usuários que não são do governo não podem baixar nenhum dado do site." Se ele tivesse alguma dúvida, ou precisasse de informações, ela disse a ele, deveria entrar em contato com Lee – que tinha acabado de delatar Chen como uma possível espiã.

Quando Davis foi interrogado mais tarde por funcionários do Departamento de Comércio, ele disse que não se lembrava de dar uma senha a Chen. Ela disse que não se lembrava de ter recebido uma. E eles não acreditam ter feito nada de errado, de acordo com relatórios sobre suas entrevistas.

A senha, contudo, viria a assombrá-la mais tarde. Quase um ano depois da delação de Lee, Chen foi visitada em seu escritório por dois agentes especiais do Departamento de Comércio. Eles a interrogaram durante sete horas sobre a senha e seu encontro de 15 minutos com o funcionário chinês.

Questionado sobre a última vez que ela tinha encontrado Jiao, ela respondeu: “foi a última vez que visitei meus pais, acho que em maio de 2011."

Em setembro de 2014, Chen e seu marido foram parados ao embarcar num avião da United Airlines de Newark, New Jersey, com destino a Pequim. Sua bagagem foi retirada e revistada. Chen disse que eles por fim tiveram autorização para voltar ao avião, que tinha ficado detido por mais de uma hora.

Foi depois de voltar daquela viagem que ela foi presa, em outubro. No tribunal de Dayton, foi acusada de quatro crimes, inclusive de ter baixado ilegalmente dados sobre “infraestruturas essenciais do país” de um banco de dados restrito do governo – o Inventário Nacional de Barragens – e por ter feito declarações falsas.

A falsa declaração se referia a dizer aos agentes que tinha visto Jiao em 2011, não em 2012. Quatro outras acusações foram acrescentadas mais tarde.

Ela foi solta no mesmo dia e colocada em licença administrativa não remunerada.

Peter R. Zeidenberg, sócio da Arent Fox em Washington, que representou Chen, disse achar significativo o fato de o governo ir atrás de Chen por usar a senha de um colega e não do colega que lhe deu a senha – e do escritório todo. (Nem Davis nem qualquer outro funcionário atual do Serviço Nacional de Meteorologia quis dar declarações para a reportagem.)

Adams, o ex-colega de trabalho, disse acreditar que a ascendência chinesa de Chen teve um papel nisso. "Se tivesse sido você ou eu, ou alguém de ascendência europeia que tivesse emprestado a senha de outra pessoa", disse ele, "eles teriam dito: 'não faça mais isso'." Ele acrescentou: "esta é a gratidão que o governo mostrou pelo trabalho duro e a dedicação dela como funcionária pública federal. É vergonhoso."

Uma semana antes de o julgamento começar, Zeidenberg solicitou uma reunião com Carter M. Stewart e Mark T. D'Alessandro, dois procuradores federais do Distrito Sul de Ohio.

"Por que", perguntou Zeidenberg, “se ela fosse uma espiã, voltaria da China e diria a seus colegas: 'encontrei esse cara na China e é isso que ele quer saber'? Por que ela diria ao cara da China: 'aqui está o telefone da minha chefe'? Por que ela pediria uma senha por e-mail? Por que faria isso?"

Zeidenberg disse que os promotores ouviram. Em 10 de março, um dia depois de seu encontro, eles retiraram as acusações.

"Graças a Deus", Zeidenberg acrescentou.

Os benefícios e a remuneração de Chen foram restaurados, mas ela está esperando para saber se o Departamento de Comércio permitirá que ela volte ao trabalho. Sara Ryan, advogada do departamento encarregada do caso de Chen, disse que não discutiria o assunto. Representantes do departamento não retornaram os contatos da reportagem.

Questionado se ele achava que Chen deveria ter seu emprego de volta, Adams, seu ex-colega, disse estar dividido. "Quero que ela volte para o emprego dela o mais rápido possível", disse ele. "Mas, por outro lado, também espero que ela nunca volte para lá. Depois da forma como ela foi tratada, ela deveria se preocupar se o governo desistiu disso."

Tradutora: Eloise De Vylder